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Segundo Caetano (2006), Poder e regra de Direito não são elementos completamente separáveis e mantêm íntimas relações: o poder cria o Direito e as regras jurídicas positivas têm por única fonte o Poder. O Poder, diz o Autor, é Direito em potência ou em acto e o Direito é Poder realizado. Existe permanente tensão construtiva entre o Direito e o Poder, discutindo-se a precedência de um sobre o outro (Pires, 1998).

No seu Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Caetano (2006) começou por caracterizar as sociedades primárias, resultantes dos factores elementares da sociabilidade (parentesco, vizinhança, profissão), destinadas à satisfação de fins determinados. Estas sociedades primárias são emanação de Poder social e criam Direito pré-estadual. Por sua

vez, a sociedade política é apresentada como o grupo mais amplo que abrange as sociedades primárias, criando entre elas possibilidades de colaboração, mediante regras de conduta que se imponham aos membros das sociedades primárias.

A sociedade política é, assim, um quadro de qualificação dos vários Poderes sociais em que o Direito elaborado ou reconhecido pelo Estado surge como uma espécie de “prótese”, “recomposição da harmonia prestabilista”, resolvendo as insuficiências do apetrecho instintivo de cada indivíduo ou grupo, vertebrando a sociedade (Pires, 1998).

Verifica-se, assim, um espaço, também, de tensão entre o Direito do Estado e o Direito das comunidades primárias, um baseado em princípios democráticos, de transparência, de informação e de participação na expressão de uma vontade geral, maioritária em assembleias representativas, outro baseado num Direito aristocrático, oriundo da elite dos juristas ou das práticas governativas das altas burocracias do Estado ou ainda advogando uma arquitectura liberal da sociedade, com um Direito que corresponda a uma maior ausência do Estado (Hespanha, 2007). O Estado, diz, Gabardo (2003) nunca deteve o monopólio de normalização social.

O Turismo, enquanto facto social e susceptível de instrumentalização por poder ou poderes de diversa natureza (incluindo o poder político), participa nesta tensão ou dialéctica construtiva de “direitos”, podendo e devendo o Direito que o regula ser entendido neste enquadramento.

Esta perspectiva enquadra-se numa definição realista do Direito (Hart, 2007, Dworkin, 1984) em que se devolve do Estado para a sociedade a constituição do Direito, como “Direito da vida”, enraizado, praticado, reconhecido como tal, vigente, que vive dum “saber alegadamente enraizado numa interpretação do consenso social” (Hespanha, 2007).

Igualmente, na visão da Economia Institucional, como afirma Hodgson (1994), o “poder reside mais na rotina sem incidentes do que no exercício consciente da vontade” ou, secundando Williamson (1985), o “poder pode ser difícil de definir, mas fácil de

Como diz Caupers (1994), o valor do Direito advém-lhe da sua radicação na consciência social. Citando Zipelius (1984,cit.por Caupers, 1994), refere que o Estado, fonte de poder, é limitado pelo Direito, porque o seu poder é condicionado pela ideia de Direito que o legitima. Estes Autores distinguem o Poder enquanto facto ou instituição e o Direito como condição do seu exercício.

Ross (1997) por sua vez, afirma que o Poder e o Direito não são realidades opostas. O Poder não é algo que se encontra por detrás do Direito, mas que funciona por intermédio do Direito. Segundo Roig (2005), o Direito oferece ao poder uma perspectiva de eficácia externa, ou seja, a potencialidade de recorrer ao uso da força para sua imposição, mas também uma perspectiva interna, qual seja, a de instância organizadora, controladora e racionalizadora do interior do próprio Poder.

Peces-Barba (1999) apresenta a relação Poder-Direito, como duas faces da mesma moeda, em que o Poder é considerado causa, mas também efeito do Direito. O Poder é considerado como facto fundador básico do Direito, sustentado pela pressão social do grupo ou grupos que a exercem. O Direito completa tal facto, através de norma ou normas fundadoras identificadoras de Poder, que permitem assinalar, não só normas jurídicas válidas, conformes formal e materialmente com a norma fundadora básica, mas também os critérios de eficácia real que sustentam tal norma.

Hart (2007) conceptualiza tais normas fundadoras como “regras de reconhecimento”, ou seja, as que especificam características que, traduzidas na norma, revelam uma indicação afirmativa indiscutível de que se trata de uma regra do grupo que há-de ser sustentada pela pressão social que este exerce.

As “regras de reconhecimento”, diz este Autor, são reconhecíveis no plano empírico por observação da sua vigência, são descritivas da vida jurídica efectiva (law in action), podem ser reconhecidas como factos sociais ou meta-normas e constituem, em todo o caso, enunciados substanciais do fundamento de obediência ao Direito (o consenso comunitário).

Dworkin (1984) refere que tais regras de reconhecimento podem ater-se a valores morais, a princípios que podem ser identificados, também, por uma interpretação doutrinal, sistemática, teleológica, finalista, das normas jurídicas, tendo em vista apurar uma melhor identificação dos valores institucionais que melhor enquadram o conjunto da história institucional de um certo sistema jurídico.

Tais “regras de reconhecimento” podem traduzir-se, por exemplo, em regras secundárias que valem como regras primárias, dada a insuficiência de pressão social difusa que caracteriza as regras primárias. As regras secundárias, através de normas especiais, excepcionais, à medida da situação concreta (Moncada, 2001) ou de valor hierárquico inferior, podem derrogar regimes de regras primárias (leis gerais ou abstractas), dada a falta de certeza que estas carecem ou, inclusive, transformarem-se em regras primárias ou de as alterarem, por um acto de reconhecimento emitido pelo titular da regra primária.

Neste contexto, as regras que reconhecem espaços autónomos de negociação de direitos entre as partes através de contratos e que permitam a estas efectividade na criação e realização de Direito, por omissão ou subsidiariedade das regras primárias (Mamede, 1995), ou ainda que permitam a estas resolver problemas de interpretação e resolução de conflitos, são outra forma importante de reconhecimento da existência de regras de reconhecimento que traduzem exercício de poder por grupos sociais.

Neste rol de “sinais de reconhecimento”, alguns Autores (Nabais, 1994, Esquivel, 2004) chamam a atenção para a persistência do contrato como instituição fundamental para a regulação de relações sociais, relações de facto que se traduzem, quer na dispensa de formalismos normativos no processo de produção de decisões públicas, quer de privatização material das próprias decisões, em que grupos organizados utilizam o poder normativo do Estado para alcançar seus fins próprios.

A perspectiva de Leis-Contrato nos territórios (Nabais, 1994), ou seja, leis que têm por substância contratos de gestão de territórios por entidades privadas, ou contratos que acabam por ser assumidos com força normativa pelo legislador, em que a sua modificação

modificação ou revogação seja editada por relevante motivo superveniente de interesse público, têm interesse acrescido para o enquadramento da relação entre Poder -Direito nos territórios.

Na lógica da acção colectiva, os pequenos grupos têm ascendente sobre os grandes grupos (Olson, 2002), pois o incentivo à contribuição para o bem colectivo é maior, na expectativa de um incentivo proporcionado pelo bem colectivo mais próximo do incentivo privado. Em Turismo, o processo de produção depende das características físicas, sociais e económicas de cada lugar (Costa, 1996), pelo que este localismo deve ser tido em conta na pressão de grupos sociais mais pequenos para o exercício de poder.

O poder é, assim, o “cimento federador “ do sistema jurídico (Sueur, 2001), constituindo um meta-conceito que ultrapassa os limites da distinção académica entre direito público e direito privado, sendo transversal entre a Economia e o Direito, suficientemente pluralista para abranger na sua análise os poderes públicos e privados e cujas variáveis de análise são fundamentais para compreender o funcionamento das instituições, entre as quais, a regulação, movidas por uma lógica política de captura e manutenção do poder (Menard, 2005).

Uma simples leitura empírica da realidade territorial portuguesa demonstra a predominância do contrato e a existência de uma continuidade entre tarefas públicas e tarefas privadas (Gonçalves, 2005), o que vai abrir caminho ao aparecimento de regras de reconhecimento, pelo Direito, de existência de poder, o que se verifica, por exemplo, na contratualidade subjacente a concessões de uso privativo no domínio público em zonas de forte intensidade turística (ex: orla costeira, praias, jogo, marinas) atribuídas a entidades privadas e/ou locais, por contrapartida do pagamento de taxas que constituem um meio de restituir à comunidade uma parte dos benefícios (Poder) que esta lhe assegura, através da atribuição de direitos de uso privativo (Moniz, 2005).

Os processos de auto-coordenação colectiva, ou seja, produção dentro da economia pelos próprios interessados, com mecanismos de co-regulação, instâncias de regulação, que conjugam a intervenção do Estado e agentes económicos interessados ou auto- regulação

privada oficialmente reconhecida, com reconhecimento público do sistema de regulação privada e graus variáveis de relação com a regulação pública (preempção, substituição, adição) ou de instrumentos (auto-regulamentação, auto-execução, auto-disciplina) (Moreira, 1997), também não podem deixar de ser consideradas nesta revisão das relações Poder – Direito.

A evidência empírica baseada na importância reconhecida por organismos internacionais (Organização Mundial de Turismo, União Europeia), bem retratada por Font (2002) ou Go e Govers (2000) a sistemas de verificação ambiental, de certificação de qualidade, acreditação ou reconhecimento na área do Turismo e dos destinos turísticos, é outra vertente das relações Poder-Direito na área do Turismo a considerar de extrema importância.

O Direito assume-se, assim, como um poderoso instrumento de racionalização na organização de poder, distribuindo e partilhando direitos entre grupos de diferentes âmbitos de interesse nos territórios e com marcada intensidade das relações locais que marcam o processo de produção e consumo turístico.

A relevância de tais “espaços de poder” poderá ser importante para o entendimento da maior eficácia, maior flexibilidade e maior economia da regulação, em que geralmente os protagonistas (regulador e regulado) poderão sair ganhadores, o que constitui um arranjo de soma não nula (Moreira, 1997). Alguns Autores (Machete, 2001) alegam inclusive que, em política, a eficiência é actividade técnica, não controlada jurídicamente em que predominam normas de certa Ciência ou Arte na melhor execução das leis.

A eficiência resulta da maior facilidade de relacionamento com grupos organizados do que com indivíduos isolados (Ryan, 2002) ou da propensão do Estado para obter a colaboração de grupos de interesse, quanto mais difícil for a administração de um sistema de intervenção num determinado sector (Keeler, 1987, cit. por Moreira, 1997).

que permita estruturar a eficiência pelo Direito ao acesso, titularidade, exercício e controle de poder por grupos sociais e económicos, sentido que confirme uma ordem intelígível nas relações entre Direito e Turismo em zonas de forte intensidade turística, marcada por uma existência de intensidade de uso de regras de reconhecimento desse poder.

Assim, na visão do Direito como equilibrio, prótese, costura institucional no consenso contraposto de interesses de grupos sociais com o poder político estadual nos territórios, dispomos uma figura (figura 2), que se pretende um pequeno observatório das tendências do Direito entre esses interesses nos territórios.

Figura 2

DIREITO-PODER POLÍTICO E GRUPOS SOCIAIS NOS TERRITÓRIOS

PODER POLÍTICO ESTADUAL GRUPOS SOCIAIS

Normas gerais e abstractas em forma de Lei.

Maioria na tomada de decisões. Prevalência de Planos ordenamento/

desenvolvimento de valor hierárquico superior. Conceitos técnicos e indeterminados a favôr de entidade pública.

Prevalência de estruturas processuais com mecanismos de mediação/comunicação/ integração de grupos sociais.

Monopolização do estabelecimento, aplicação e execução normas por entidade pública.

Indivisibilidade financiamento a favôr de entidade pública.

Rigor na aplicação da lei. Protecção de bens colectivos. Defesa de identidades colectivas.

Direitos dos indivíduos (abstracto), com direitos negativos de protecção contra interferência.

Normas especiais, excepcionais ou

particulares que aditam ou contrariam regras gerais, com deslegalização.

Unanimidade na tomada de decisões.

Planos de valor hierárquico inferior que contrariam os planos superiores (contra- corrente).

Co-regulação, auto-regulação privada

publicamente reconhecida ou independente. Relevância do contrato e da autonomia técnica substancial assente no conhecimento especializado local e colectivo de grupos. Delegação de execução/ investidura de funções públicas gerais para entidades locais e/ou privadas com contratação financiamento. Divisibilidade financiamento por associados ou participantes.

Equidade na aplicação da lei.

Valorização de resultados pela acção. Identidades culturais particulares.

Direitos dos grupos (concreto) com prestações positivas a seu favôr.

Esta dialéctica ou tensão construtiva é bem patente na expressão de Coelho (1992), quando afirma que o território é factor de divisibilidade, a Administração factor de unidade.

Estaremos, pois, atentos na análise de dados do nosso ordenamento jurídico e de ordenamentos jurídicos internacionais (Capítulos 5 e 6) à manifestação das estruturas agrupadas de sinais de reconhecimento de poder, e, em especial, dadas as características já apontadas (particularismo, localismo) ao Turismo, de poder adquirido, exercido e controlado por pequenos grupos sociais nos territórios, reconhecido pelo Direito.

Tentar-se-à, também, investigar e demonstrar em estudos de caso (ex: estudo de caso Algarve no Capítulo 7), como o modo de produção da oferta turística é consequência do reconhecimento, pelo Direito, da existência de sinais de Poder concedidos a grupos sociais, que procuram, pela prestação de serviços colectivos e individuais, o controlo de territórios (espaços delimitados), visando a obtenção de fontes (ex: receitas económicas) e instrumentos eficientes (direitos sobre actividades, pessoas e recursos) para titularidade e exercício desse mesmo Poder. Para legitimar o Poder, os serviços são considerados turísticos.

Concretizada a relação Poder – Direito e alegada a eficiência, enquanto exercício funcional e sistémico de procura de poder por determinadas organizações, como caminho possível na interpretação das relações inteligíveis entre Direito e Turismo em áreas caracterizadas pela deslocação e/ou permanência de turistas, a nossa investigação carece de uma abordagem, com recurso aos contributos da Economia Institucional.

Assim, antes de abordarmos o conceito de “território turístico”, vamos apresentar um sub- capítulo designado como “ Turismo, Direito, Poder e Territórios” e que funciona como codificação holística e sistémica de todos os conteúdos referidos neste capítulo. Vamos abordá-lo de seguida.