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A polícia associada à cidade civilizada

No documento HOMERO DE GIORGE CERQUEIRA (páginas 89-93)

CAPÍTULO 3. O LIMITE DA FORÇA E A FORÇA DO LIMITE

3.1. A polícia associada à cidade civilizada

A polícia, como surgimento do poder estabelecido pelo povo, está associada à cidade civilizada. Para compreender essa associação, é preciso compreender como se deu o início da própria civilização, de seus conflitos e suas relações. As famílias, os clãs, as tribos, os grupos de interesses e as comunidades territoriais sempre tiveram os seus líderes, os chefes religiosos ou os mais velhos para decidir sobre os assuntos conflitantes da sua civilização.

Em nota em O mal-estar da civilização, Freud (1997b) data o início da civilização no dia em que o homem dominou a força do fogo urinando nele, ou seja, quando controlou a descarga pulsional por meio de uma renúncia consentida, operada com a sua própria água. Seria preciso, ainda, que essa renúncia não fosse a expressão de uma vontade de rivalizar com o fogo e de destruí-lo. É esse princípio que ele retoma e desenvolve, ao analisar o roubo do fogo perpetrado por Prometeu à custa dos deuses.

Sigmund Freud (1997b, p. 43) recorda ainda:

Se remontarmos suficientemente às origens, descobriremos que os primeiros atos de civilização foram a utilização de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção de habitações. Entre estes, o controle do fogo sobressai como uma realização extraordinária e sem precedentes, ao passo que os outros desbravam caminhos que o homem desde então passou a seguir, e cujo estímulo pode ser facilmente percebido.

Nessa constatação freudiana, aprende-se que o fogo adquiriu seu sentido e sua função de tornar a noite dia. O fogo só subsistiu para manter pela sua presença; com ele, o homem pôde conquistar um instrumento capaz de dominar o reino animal, aquecer o alimento, combater outros animais e seus inimigos, e ver os caminhos na penumbra noturna.

Os grupos sociais começaram a se fixar nas terras, a utilizar instrumentos criados pela razão, a usar a criatividade para preparar o solo, plantar e colher o próprio alimento. Os grupos estipularam coerência, estilo, forma, conservação, gosto, dando certa organização mental ao mundo por mais aventureira, risível, selvagem, sanguinária e terrível que fosse, como também criaram oráculo, magia, diabos e demônios, sacrifício humano, culto orgiástico, inquisição, auto-de-fé, rito de possessão, processo de bruxaria, florescimento de envenenamentos e abominações.

Dessa maneira, com a evolução dos grupos sociais, ficaram determinadas as normas de convívio social e estabelecidos os costumes, as tradições e os hábitos sociais, incluindo as rotinas do cotidiano. Em muitas sociedades, alguns homens tinham a tarefa de proteção, caça de animais e liderança do grupo.

Como os grupos sociais foram crescendo desorganizadamente, houve a necessidade de designar pessoas para cumprir e fazer cumprir os costumes, as tradições e as normas de sociabilização, enfim uma parte iria representar os demais e manifestar a vontade coletiva para o bem comum. Nesse contexto original, pode- se perceber que havia três aspectos essenciais nos grupos sociais: força física, uso interno e autorização coletiva.

Na civilização atual, o estabelecimento da força física ainda é cedido e autorizado coletivamente para determinados grupos sociais, como a polícia. A competência exclusiva da polícia constitui o uso de força física, real ou por ameaça para afetar o comportamento. A polícia se distingue não apenas pelo uso da força, mas por possuir autorização para usá-la.

Como afirma H. Arendt (1970, p. 42):

O que investe de poder as instituições e as leis de um país é o apoio do povo, que por sua vez é a continuação daquele consenso original que produziu as instituições e as leis [...] Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a força viva do povo deixa de apoiá-las. É o que Madison quis dizer quando afirmou que todos os governos se fundam, em última instância, na opinião.

Naturalmente, essa tese poderia ser interpretada como se o poder constituísse aspecto distinto do exercício da mesma dominação política. O poder significa, então, o assentimento dos participantes mobilizados para fins coletivos e, portanto, sua disposição de apoiar a liderança política.

O policial — e apenas o policial — está equipado, autorizado e é requisitado para lidar com qualquer exigência na qual a força deva ser usada para contê-la. Mesmo quando não usa de força, ela está por trás de toda interação que acontece. A essa capacidade de disposição sobre meios que permitem influenciar a vontade de outrem, Max Weber chama de “poder” e H. Arendt reserva, para tal caso, o conceito de “violência”.

Já foi visto que a polícia, como surgimento do poder estabelecido pelo povo, está associada à cidade civilizada. Embora os policiais não sejam os únicos agentes da sociedade com permissão para coibir as pessoas de modo a controlar seu comportamento, eles seriam irreconhecíveis como policiais se não tivessem essa autoridade.

Para retomar os ensinamentos freudianos, mas centralizados na análise de sua obra O mal-estar da civilização, Freud (1997b) esboça uma teoria do laço, pode- se mesmo dizer do contrato social. Ele explica que a lei do mais forte só pode ser ultrapassada se reunir uma maioria mais forte que qualquer indivíduo isolado e se conservar sua coesão diante de cada indivíduo. A força dessa comunidade impõe o direito contra a violência bruta. Essa utilização da agressividade contra ela mesma — isto é, contra a própria comunidade — deve ser estabelecida por uma autoridade exterior: uma polícia extremamente eficaz, eficiente, comprometida com os desejos

da comunidade, educadora dos princípios de bons costumes, exercitando a materialização da lei criada pelos representantes da comunidade (FREUD, 1997b, p. 49).

Diante da necessidade de se ter uma Força Policial, a Assembléia Francesa redigiu e votou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, identificada com a nação; a sociedade, por seu intermédio, enunciava ao mesmo tempo a necessidade de uma Força Pública, o mandato estritamente limitado que lhe dava a necessidade de uma vigilância em relação a essa força.

Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tentou-se superar o paradoxo da relação entre a força e o direito. Enunciou-se que não haveria outra razão de ser e outra missão para a polícia senão a de ser portadora da capacidade de recorrer à força diante de um atentado aos direitos do homem e do cidadão.

O artigo 12 dessa Declaração coloca que, como os direitos do homem e da mulher podem ser postos em perigo pela força, é necessário instituir uma força superior que tenha por única razão assegurar a garantia do povo. De modo inverso, não haveria necessidade de agentes de defesa social utilizarem a força para praticar violência contra o cidadão desrespeitando a lei, a ordem, a ética e os princípios de humanidade.

A formação da Força Policial é o sistema na facilitação da cultura, estabelecendo-se, portanto, o espaço e o tempo desse conhecimento transmitido de uma geração a outra. Também é atribuída à lei o sentido da cultura policial e, em seguida, a medida da eficácia policial, cujo critério de avaliação depende, por exemplo, do número de fatos delituosos elucidados ou do número de presos recolhidos às prisões.

Ao Estado, enfim, cabe regulamentar os seus agentes policiais, controlando- os por meio de órgão externo para evitar abusos, assim como estudar, pesquisar e desenvolver currículos e avaliações eficazes na formação dos policiais para torná- los cidadãos responsáveis na prestação do serviço público e bem servir à sociedade.

Esses agentes, instituídos pelo Estado, estão autorizados a regular as relações interpessoais dentro da comunidade por meio da aplicação da força física. Estabelece-se, assim, o monopólio da violência necessária para restabelecer a ordem diante da desordem social dando conta da liberdade da sociedade.

Desse modo, a polícia, durante todo o contexto da civilização, nada mais é que um mecanismo de distribuição, na sociedade, de uma força justificada por uma situação. O papel da polícia abrange grande parte dos problemas humanos relacionados a litígios sociais, cuja solução necessita (ou pode necessitar) do emprego da força, conforme o lugar e o momento em que tais problemas venham a surgir. Como as atividades têm um caráter heterogêneo, são bem variadas; por exemplo: conduzir o prefeito ao aeroporto, prender um bandido, retirar um bêbado de um bar, conter uma multidão, cuidar de crianças perdidas, administrar primeiros- socorros, separar brigas de casal, entre outras.

No documento HOMERO DE GIORGE CERQUEIRA (páginas 89-93)