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PARTE I A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS: PERSPECTIVAS

2.2. Políticas públicas e teoria do Estado

O estudo das políticas públicas tem contribuído, de modo particularmente fértil, para relançar o debate sobre a natureza e o papel do Estado, dominado, até aos anos 1970, por duas grandes tradições científicas - as abordagens estatal e pluralista que traduziam duas visões quase antagónicas da acção pública.

A abordagem estatal, que entende a sociedade como um produto do Estado, aparece, no essencial, como uma tradição europeia, data do século XIX e está

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aparelhos político-administrativos, dispondo de poderes e competências cada vez mais latos. As suas raízes estão na filosofia alemã e no marxismo-leninismo, ganhando mais tarde uma orientação sociológica com os trabalhos de Durkheim e de Weber. Podemos resumir esquematicamente esta visão do estado através de alguns problemas centrais colocados por esta abordagem.

Para os vários autores que defendem esta perspectiva, o Estado é o resultado de uma acção dialéctica com a sociedade. Produzido por ela, ele participa também na sua produção: a sociedade moderna não existe sem o Estado. A principal consequência desta centralidade do Estado é que as lógicas que suportam a acção do Estado não podem ser deduzidas das diferentes lógicas sociais. Como refere Hegel, a acção do Estado transcende os interesses particulares múltiplos da sociedade civil para concorrer à definição de um interesse comum ou geral.

Na esteira de Hegel, Marx introduz uma nova perspectiva da relação Estado- sociedade, preconizando que é a luta de classes que explica o Estado e o seu aparelho de repressão, o qual não é mais do que um instrumento da classe dominante. Na teoria marxista, é o aparecimento das classes, e das suas lutas constantes, que explicam a génese e a evolução do Estado, o que significa que o desaparecimento das classes deve provocar automaticamente a extinção do Estado.

Esta perspectiva não é no entanto partilhada por autores como Durkheim e Weber. Para o primeiro, o Estado, analisado no contexto de uma crescente divisão do trabalho, adquire um estatuto e uma essência directamente ligados à evolução social. Ou seja: «à medida que as sociedades se desenvolvem, o Estado também se desenvolve; as suas funções são cada vez mais numerosas, penetram em todas as outras funções sociais que ele concentra e unifica.» (DURKHEIM, 1975: 170).

Analisando o problema da dominação, Max Weber estabelece um quadro tipológico ideal carismático, tradicional e racional definindo o Estado, numa perspectiva evolucionista, como a forma de dominação racional. O aparecimento e a evolução do Estado são concebidos por referência a um processo de racionalização, marcado pela formação progressiva de um aparelho burocrático. Nesta acepção, o Estado é definido como «uma empresa política de carácter institucional desde que e na medida em que a sua direcção administrativa reivindica, com sucesso, na aplicação de regulamentos, o monopólio da coerção física legítima.» (WEBER, 1971: 57).

Estas abordagens constituem a base da generalidade das teorias que valorizam o papel central do Estado nas relações sociais e alimentaram uma corrente

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de análise particular quanto à natureza de intermediação contemporânea entre o Estado e os grupos de interesse na produção da acção política, a do neocorporatismo . Aceitando a centralidade do Estado e a sua natureza monopolística no exercício da dominação, os defensores desta perspectiva analisam a acção do Estado num contexto mais alargado do que o do quadro institucional do aparelho político-administrativo, concebendo-o como o produto de uma relação institucionalizada entre um número limitado de actores públicos e privados.

A abordagem pluralista, que entende o Estado como o produto da sociedade, está intimamente ligada aos trabalhos americanos centrados sobre a análise dos processos de decisão (DAHL, 1961). Ao contrário da abordagem estatal, ela organiza- se em torno da ideia segundo a qual o Estado é o resultado de processos sociais irredutíveis. O Estado é assim o produto da interacção entre grupos livremente constituídos e estabelece uma forma de véu totalmente permeável aos interesses e à competição de grupos que caracterizam as lógicas sociais.

Esta perspectiva não deixa de ter consequências importantes do ponto de vista da análise da acção pública. Para os defensores do paradigma pluralista, o conteúdo de uma política será o resultado das diferentes pressões exercidas pelos grupos de interesse implicados. Isto quer dizer que os grupos de interesse em questão existem independentemente da sua relação com o Estado. Eles são o produto da concorrência que se exerce entre os diferentes candidatos à representação das múltiplas comunidades de interesses que constituem a sociedade, que se afrontam num mercado de representação e entram em relação com o Estado, das mais variadas formas, para fazer valer o seus pontos de vista no processo de decisão.

Numa tal perspectiva, a noção de interesse geral não faz grande sentido, na medida em que a acção do Estado não pode ser associada ao mero resultado aleatório de uma livre competição entre os interesses particulares. Nesse sentido, ela alimentou as análises inspiradas da sociologia do interesse e da escola da escolha racional e do Public Choice, para as quais a acção pública é difícil, em razão da concorrência de interesses, a partir do momento em que ela não permite o livre funcionamento do mercado político e a expressão das preferências dos actores.

Estas duas perspectivas têm vindo a ser marginalizadas, ao longo da última década, em detrimento de uma corrente de análise, por vezes designada por abordagem cognitiva, que procura estudar as políticas públicas como matrizes cognitivas e normativas constituindo sistemas de interpretação do real, no seio dos quais os diferentes actores públicos e privados inscrevem a sua acção. Para além das

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diferenças que subsistem, as abordagens que se inscrevem nesta nova perspectiva científica possuem um ponto em comum, e que é o de estabelecer a importância das dinâmicas da construção social da realidade, na determinação dos quadros e das práticas socialmente legítimas num dado momento (BERGER e LUCKMANN, 1986).

De um modo simplificado, os diferentes modelos propostos repousam, desde logo, na convicção de que existem valores e princípios gerais que definem o que se poderia chamar uma visão do mundo particular. Eles comportam, em segundo lugar, a ideia de que em cada sector ou território existem princípios específicos, que podem declinar, de modo variável, os princípios mais gerais. Em terceiro lugar, o conjunto dos elementos cognitivos e normativos determina considerações práticas sobre os métodos e os meios mais apropriados para realizar os valores e os objectivos definidos. Finalmente, o conjunto da matriz implica a escolha de especificações instrumentais, que visa orientar os instrumentos escolhidos numa direcção precisa e coerente com as indicações deduzidas dos outros elementos.

A abordagem cognitiva procura ultrapassar o dilema do determinismo e do voluntarismo, propondo uma grelha de análise que combina uma certa forma de determinismo estrutural (os actores políticos não são completamente livres das suas escolhas) e uma certa forma de voluntarismo (as escolhas políticas não são completamente determinadas pelas estruturas). Esta perspectiva assenta na ideia de que uma política pública opera como um vasto processo de interpretação do mundo, ao longo do qual, pouco a pouco, uma visão do mundo se vai impondo, sendo aceite e depois reconhecida como verdadeira pela maioria dos actores do sector , porque ela permite aos actores compreender as transformações do seu ambiente, oferecendo- lhes um conjunto de relações e de interpretações casuais que lhes consente descodificar os acontecimentos com os quais eles se confrontam.