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Ao longo de meu percurso, minha prática consistia em observar a matriz curricular e, a partir dos conteúdos estritamente linguísticos, buscar os textos, conceber as

atividades e selecionar o léxico a ser aprendido. Ainda que trabalhasse com um forte caráter lúdico, por meio de jogos, buscando a motivação dos alunos, permanecia em mim certa desconfiança no que dizia respeito ao porquê e mesmo ao que ensiná-los. Compreendia, é claro, a necessidade de uma progressão nos conteúdos, mas ao mesmo tempo percebia ser arbitrária a decisão de aprendermos todos, ao mesmo tempo, por exemplo, como dizer “saia”, “calça” e “casaco” (mas não “touca” e “camiseta”).

Decidi, então, assumir um risco: partir um tema que pudesse interessar tanto aos alunos quanto a mim, de modo a estabelecer junto a eles um contrato sobre o que poderia / deveria ser aprendido. Considerando a etapa de desenvolvimento dos estudantes (entre 8 e 9 anos), na qual se identifica uma evolução do pensamento abstrato e a importância do “faz-de-conta”, optei pelo tema dos super-heróis.

Sabendo do grande poder de mobilização das músicas junto às crianças, nosso ponto de partida, elemento disparador para o tema, foi o videoclipe da música “Super-

pouvoirs pourris”, do cantor francês Aldebert. Na canção, somos apresentados a um tio

que, junto aos seus sobrinhos, se gaba de seus superpoderes. Estes, no entanto, não passam de habilidades de um ser humano normal, como ler seus próprios pensamentos e abrir portas automáticas com a mente.

Num primeiro momento, exibi apenas o videoclipe da música, sem o som, para que os alunos pudessem adivinhar o tema da aula. Graças à estética do clipe, que lembra a das histórias em quadrinhos, não houve dificuldade em entendê-lo. Em seguida, realizamos rapidamente um brainstorming de superpoderes, de modo a ativar os conhecimentos prévios dos alunos sobre o tema – e preparar o terreno para a quebra de expectativa provocada pela letra da música.

Em seguida, expus algumas imagens impressas do videoclipe e desafiei os alunos a, em conjunto, associarem-nas a versos impressos da música. Desafio por se tratar de uma letra autêntica, com raras adaptações, contendo um vocabulário e certas estruturas que não haviam sido previamente estudados. Ainda que com algumas dificuldades iniciais, vi despontarem estratégias de compreensão leitora, através da associação de palavras mais ou menos transparentes ao contexto imagético.

Finalizada a tarefa, em tom teatral, anunciei aos alunos o que cada “superpoder” significava. Surpresos, eles questionaram: “Mas isso não são superpoderes!” “Isso todo o mundo faz!”. Entre os risos e as decepções, compreendemos juntos a noção de “super-

pouvoirs pourris”, apresentada no título da canção, e criamos a de “supernormal”. Em

seguida, solicitei a cada um que se desenhasse como um “supernormal” – o que nos possibilitou, inclusive, discutir o que seria, de fato, a normalidade. Importante destacar igualmente que nosso objetivo não passava pela compreensão total da música, mas sim pela introdução do tema.

Posteriormente a essa etapa, anunciei aos alunos a razão pela qual falávamos desse assunto: depois de um “supernormal”, criaríamos nossas próprias versões de “super- heróis”. Para isso, argumentei, seria preciso adiantar: do que precisamos saber para criar um super-herói em francês, já que estamos numa aula dessa língua? Do que um super-herói precisa? Com essa pergunta, busquei permitir aos alunos serem sujeitos de seu aprendizado, decidindo sobre aquilo que precisariam/gostariam de aprender: um ingrediente a mais de “necessidade” e “motivação”.

Ao longo de minha prática, baseei-me na contribuição de Rocha (2007) sobre os critérios para seleção do conteúdo a ser ensinado. Ao selecionar o que seria estudado e em que ordem, levava em conta

[a] demonstrabilidade (facilidade de se atribuir sentido às palavras), a similaridade com a Língua Materna, a brevidade (tamanho da palavra), a regularidade de forma, a carga semântica na aprendizagem (o fato de a palavra estar relacionada a outras já conhecidas) e a relevância da palavra para a criança. (ROCHA, 2007, p. 294)

Se nas experiências anteriores tinham maior peso os três primeiros critérios, dessa vez, minha experimentação recaiu sobre atribuir uma maior importância à relevância, na perspectiva da própria criança. Com isso, experimentei deixar os próprios estudantes me dizerem aquilo que julgavam ser útil perante nosso projeto – um projeto que fazia sentido para todos os envolvidos naquele espaço compartilhado.

Com isso, dedicamos as aulas seguintes a descobrir em língua francesa os superpoderes (voar, tornar-se invisível, lançar fogo), os elementos (água, fogo, gelo, terra...) e o

vestuário de super-heróis, com vistas à criação de um perfil escrito e desenhado dos personagens. Note-se, no entanto, que, desses três temas, apenas o terceiro se encontra listado na matriz curricular enquanto objeto do saber. Isso porque, conforme aponta Barbosa (2004), um programa de ensino “geralmente diz respeito a um percurso que já está previamente estabelecido, um instrumento rígido, de autoridade, que inclui os objetivos gerais de um sistema centralizado, em vez de ser somente um ponto de referência” (p. 10). Uma tal perspectiva sugeriria um questionamento tal como “mas

para que um aluno deveria aprender a nomear os superpoderes e os elementos?”. Numa

perspectiva de projetos, parece-me que esse “para que” aponta para a possibilidade de

experienciar a língua adicional/estrangeira: aprendo para fazer e dizer algo que faça

sentido para mim, ao menos nesse momento.

De maneira quase natural, ao abordarmos o vestuário especial de super-heróis (capa, máscara, luvas, collants...), vimos surgir a necessidade de descobrir como se dizem em francês as roupas do cotidiano – afinal, os super-heróis da fantasia e os supernormais da escola têm em comum um maillot (uniforme). Assim, em meio a uma atividade envolvendo t-shirts, pantalons, jupes e chaussures de verdade, surge a ideia de um novo projeto: realizar um desfile de moda. Nesse encadeamento de ideias e projetos, descobrimos mais uma motivação para aprender: para realizá-lo, seria preciso definir os papéis de cada aluno (modelo ou apresentador) e prever as competências envolvidas na elaboração de um desfile. No entanto, aproximávamo-nos do fim do ano letivo e não dispúnhamos de muito tempo para reforçar as estruturas necessárias. Por essa razão, optamos por duas competências básicas: saber apresentar os modelos – competência já adquirida em anos anteriores – e descrever as roupas que usam, em suas formas e cores.

Dividindo a turma em grupos de três alunos, sendo dois “modelos” e um “apresentador” em cada um, deixei que cada aluno refletisse sobre a roupa que gostaria de apresentar aos demais. Em seguida, cada grupo se ocupou de desenhar um croqui dos modelos, como forma de estruturar sua apresentação – que já tomava ares de “coisa séria”. Encontrávamos, assim, uma forte motivação em aprender: a necessidade de se

adquirir o léxico e as estruturas linguísticas combinadas, aliada à vontade de se expressar através do vestuário, quebrando a rotina do uso do uniforme em sala de aula.

Nas aulas seguintes, através de jogos e dinâmicas, revisamos o que sabíamos sobre a apresentação e introduzimos os novos elementos. Como culminância, poucas aulas depois, estendemos um tapete vermelho dentro da sala de aula e nos permitimos imaginar, ver e sermos vistos; enfim, explorar o que nossas novas ferramentas nos possibilitavam realizar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de ouvir os alunos e deixar-me atravessar por suas contribuições foi inquietante. Essa inquietação parece estar intrínseca à nova perspectiva adotada, já que, nela, “o professor passa a ocupar o papel de cocriador de saber e de cultura, aceitando com plena consciência a ‘vulnerabilidade’ do próprio papel, junto à dúvida, ao erro, ao estupor e à curiosidade” (RINALDI, 1995 apud BARBOSA, 2004).

A liberdade de não dispor de um mecanismo rígido de mensuração daquilo que foi e/ou deveria ter sido aprendido (a exemplo das grandes avaliações internacionais, que avaliam resultados em língua portuguesa e matemática) parece permitir uma tal perspectiva, isto é, dá lugar à experimentação, à possibilidade do erro e de novas tentativas. Mais do que isso, permite explorar os diversos caminhos, “admitir que existem muitas possibilidades de ser pelas quais o homem é tocado, [sendo] múltiplas as possibilidades de atividade, de experiência” (LOBÃO, 2007, p. 48)

Não se trata aqui de afirmar a melhor maneira de se proceder dentro de sala de aula. Seria autoritário, senão ingênuo, propor uma receita infalível – uma vez que a própria perspectiva adotada admite a possibilidade da falha. Tal como aponta Hernández (2001, p. 3) “os projetos de trabalho não são um método, uma pedagogia ou uma fórmula didática baseada numa série de passos”. Seriam, a meu ver, antes, uma ruptura com “o paradigma de um ensino em que o professor é detentor do conhecimento e os alunos são ‘receptores’, ou seja, passivos no processo de aquisição” (WENZEL, 2017, p.

33). São, igualmente, a vontade de permitir ao aluno “querer dizer a sua palavra, poder dizer a sua palavra (...)”, o que “requer certa compreensão e segurança de que tal palavra tem sua importância, de que se trata de uma experiência relevante, ou seja, precisa ter valor” (LOBÃO, 2007, p. 23).

Por estar sujeita a falhas, uma perspectiva de projetos se abre à reformulação e à crítica. Nos casos relatados, por exemplo, num balanço posterior, notei a dificuldade de estabelecer diálogos interdisciplinares explícitos – de modo que nossa experiência se limitou às quatro paredes da sala de aula de língua francesa. Ainda assim, esse lugar de vulnerabilidade, de permeabilidade no que tange ao diálogo com o outro, faz compreender a constante necessidade de reformulação – do projeto, do conteúdo, da própria prática docente. Enfim, aprendemos todos: os alunos, por adquirirem e porem em prática conhecimentos e habilidades (não apenas linguísticas) com vistas a uma criação que lhes dizia respeito; o professor, pela possibilidade de repensar minha prática, atualizar-me e “transformar a compreensão do mundo através do estudo contínuo e coletivo junto com as crianças”, de modo a ser possível “revisar [meu] modo de ensinar e, com isso, transformar [minha] própria história como sujeito educador” (BARBOSA, 2004, p. 12).

REFERÊNCIAS

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implantação do ensino