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fundamental

Débora Amaral da Costa (Labapec-UFF, SME-RJ) debora.costa888@gmail.com

RESUMO: O presente capítulo é um desdobramento dos resultados de uma tese que aborda a representação social como um fenômeno dinâmico e dotado de funções. A partir dos conceitos desenvolvidos na pesquisa em questão, refletimos sobre o papel das representações sociolinguísticas no ensino, no contexto da educação básica.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino; Representação; Identidade.

Uma educação pela pedra: por lições; Para aprender da pedra, frequentá-la;

Captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria Ao que flui e a fluir, a ser maleada; A de poética, sua carnadura concreta; A de economia, seu adensar-se compacta: Lição da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra educação pela pedra: no sertão (de dentro para fora, e pré-didática

No sertão a pedra não sabe lecionar, E, se lecionasse, não ensinaria nada; Uma pedra de nascença, estranha à alma. João Cabral de Melo Neto

INTRODUÇÃO

João Cabral de Melo Neto, em seu famoso poema “A educação pela pedra”, apresenta duas maneiras de se proceder à aprendizagem: uma de fora para dentro e outra de dentro para fora. Além da direção, outras características distinguem os modelos, sendo a primeira responsável por lição de moral, de poética e de economia, cuja resistência necessita ser maleada. No segundo caso, trata-se de uma educação de dentro para fora, pré-didática, que nada ensina.

Através desses versos, refletimos sobre objetivos, expectativas e metodologias empregadas no ensino de língua portuguesa, no contexto da educação básica do setor público. Por vezes, a necessidade de se repassar conteúdos para que os alunos obtenham êxito em exames e a frustração frequente por parte do professor, que não consegue perceber a evolução e o sucesso do seu grupo, revelam algumas representações sobre o ensino segundo as quais o movimento se dá primordialmente de fora para dentro, isto é, espera-se que o corpo discente receba e assimile conceitos e procedimentos sem que antes se percebam demandas pré-existentes, e por isso pré-didáticas, que são acessadas somente quando se busca compreender esse ensino de uma perspectiva de dentro do sujeito para fora dele.

Essa educação de dentro para fora pode ser realizada, dentre outras alternativas, por meio da observação de representações linguísticas cristalizadas no universo escolar, materializadas nas atitudes e nos discursos dos estudantes. Compreendê-las pode permitir ao professor uma prática docente mais significativa para a realidade com a qual este se relaciona, tendo em vista o contexto atual de ensino, cujo principal exemplo é a língua portuguesa nas escolas públicas brasileiras, o qual tem sido marcado por índices insatisfatórios de rendimento em avaliações nacionais.

Pauliukonis (2014) acredita que um grande desafio para o ensino de língua seja a articulação entre conhecimento gramatical e necessidade de aprimoramento da capacidade de ler e de produzir textos coerentes. Almeida Filho (2016) afirma que o ensino de línguas se confundiu, ao longo da história, com o estudo da gramática, esvaziando esse ensino dos atos sociais de reconfiguração de identidade na alteridade nele envolvidos. Segundo o pesquisador, os programas de graduação descuidam, em muitos casos, da formação de novos professores e da formação continuada na extensão. Em sua opinião, ao contrário do que comumente se pratica, o currículo deveria contemplar as forças políticas que podem incidir de vários modos na preparação e no aperfeiçoamento de professores e de futuros professores.

Uma incongruência frequente é a indistinção entre gramática internalizada, normativa e descritiva, que fortalece uma representação social segundo a qual o estudante desconhece a própria língua. Tal imaginário pode gerar insegurança linguística e fracasso no desempenho escolar. Por parte do professor, em muitos casos, a exigência de que os alunos dominem a modalidade escrita padrão parece ignorar os fatos históricos que nos legaram compêndios gramaticais baseados em textos literários portugueses e alguns brasileiros de séculos passados.

Ademais, a democratização do acesso à escola sem a garantia de manutenção da qualidade do ensino, bem como as condições históricas de formação dos professores, no Brasil, e a realidade atual da maior parte das escolas públicas, com salas superlotadas, desconfortáveis e com inadequações das instalações físicas, contribuíram para o quadro atual de baixa proficiência linguística dos alunos no nível formal da língua. Apesar desse quadro insatisfatório, é consensual a ideia de que o conhecimento da variedade padrão tem uma função de acesso a diferentes espaços sociais, como o mercado de trabalho e a profissionalização. Por esse motivo, o seu ensino é bastante relevante para a plena inserção desses estudantes na sociedade.

Além das estatísticas oficiais, a mídia frequentemente aponta para as dificuldades que muitos alunos apresentam para ler e escrever textos fluentes. Essa configuração da sociedade brasileira atual traz à tona a necessidade de se promover um ensino de língua

portuguesa que reconhece e valoriza as questões sociais mais amplas, pautado em teorias transdisciplinares, ou mesmo indisciplinares (Moita Lopes, 2006). Considerando essa relação entre discurso e estrutura social, o presente trabalho está inserido, de forma interdisciplinar, no âmbito da Linguística Aplicada, além de recorrer a arcabouços teóricos da Análise Crítica do Discurso, da Sociolinguística e da Sociologia.

O objetivo deste capítulo é propor uma reflexão acerca da relação entre as representações sociolinguísticas e os processos de construção de novas identidades no processo de ensino- aprendizagem da língua portuguesa, por parte de alunos. Esse tema emerge da necessidade de se construir novas alternativas teórico-metodológicas que permitam aos estudantes uma aprendizagem da própria língua que seja mais adequada à realidade nacional e às especificidades locais, como por exemplo a necessidade de se compreender, de forma eficiente, uma diversidade de gêneros discursivos, nas modalidades oral e escrita, tanto do universo da comunicação básica quanto constituintes de determinadas atividades laborais, para que possam assumir uma participação mais ativa na sociedade.

Uma vez compreendidos os principais processos de construção de identidades e observadas as representações sociais mais recorrentes sobre aprendizagem de língua portuguesa na educação básica e pública, buscamos uma relação entre os objetivos formais de aprendizagem e os aspectos socioculturais envolvidos na prática pedagógica, no âmbito de uma Linguística Aplicada ideológica, que considera a centralidade das

questões sociopolíticas e da linguagem na constituição da vida social e pessoal, conforme

observou Moita Lopes (2006, p.22). Consideramos que a concepção dos sujeitos como heterogêneos, dotados de práticas discursivas e de histórias, que se combinam em processos de construção de identidades, situa o presente artigo na perspectiva ideológica da linguística aplicada e no viés crítico dos estudos discursivos.

Como arcabouço teórico para essa abordagem, Signorini (2017) aponta a linguística aplicada como área que tem apresentado contribuições expressivas para o ensino da língua portuguesa, dentre elas uma inflexão metarreflexiva e crítica dada às

políticas e aos objetos de ensino, um compromisso político e ético com a diversidade

para que os aprendizes melhor compreendam e possam participar de processos de

indexicalização escalar, que os posicionem mais favoravelmente nos espaços-tempos em que atuam (SIGNORINI, 2017, p. 1244-1246).

No mesmo sentido, Bezerra e Reinaldo (2018) pontuam que a pesquisa em Linguística Aplicada tem fornecido suporte para o estudo de práticas linguísticas nos mais

variados contextos sociais [...], desde as últimas décadas do século XX1. No âmbito da Análise Crítica do Discurso, Fairclough (1992) também valoriza o aspecto social em sua teoria, ao integrar uma análise linguisticamente orientada a um pensamento político relevante para discurso, sugerindo um quadro teórico tridimensional que seja útil para as pesquisas científicas sociais e especificamente para o estudo da mudança social.

Para relacionar a investigação de ordem social aos procedimentos de análise linguística, propusemos (COSTA, 2020) o conceito de representação sociolinguística, que se refere aos estudos relativos a fenômenos linguísticos que operam nas representações sociais. Acreditamos que os trabalhos sobre representação, em estudos de linguagem, frequentemente se detêm na observação de representações linguísticas, ou seja, aquelas que são construídas em relação a uma língua qualquer. No caso da representação sociolinguística, são considerados tanto os procedimentos de investigação linguística quanto as relações sociais e culturais relativas ao contexto de pesquisa. Nessa perspectiva, acredita-se que o pesquisador, ao se relacionar com os sujeitos, exerce influência nos dados e que as posições sociais interferem na interação, na produção, na coleta e na análise de corpus.

Esse posicionamento é congruente com os estudos de Fairclough (1992), quando escreve que os sujeitos não estão passivamente posicionados, mas são capazes de agir e de negociar suas relações com os tipos de discursos com os quais eles interagem. Esses discursos são materializados no uso da língua como uma forma de prática social. É um modo de ação, um modo de representação e uma forma com a qual as pessoas podem

1 Tradução minha. Fragmento original: “Research on Applied Linguistics (AL) has given support to the study of language practices in most varies social contexts, guided by contributors from cultural and social studies since the last decades of the 20th Century”. (BEZERRA; REINALDO, 2018, p. 253)

agir no mundo e sobre os outros. Há uma relação dialética entre discurso e a estrutura social, pois o discurso é restringido pela estrutura social, além de ser uma prática, não só de representar, mas de constituir e construir o mundo.

Fairclough (1992) aponta três aspectos dos efeitos construtivos do discurso: ele contribui para a construção de identidades sociais (função identitária da linguagem), auxilia na construção de relações sociais interpessoais (função relacional da linguagem) e coopera na construção de sistemas de conhecimentos e de crenças (função ideacional da linguagem). O discurso é, ainda, um modo de prática política e ideológica. Estabelece, sustenta, naturaliza e muda relações de poder.

O discurso concebido como texto propicia um modelo mais amplo de análise, que inclui vocabulário, gramática, coesão, coerência, força dos enunciados, a estrutura textual e intertextualidade, o sentido potencial de um texto e a sua interpretação. O discurso percebido como prática enfoca a produção, a distribuição e o consumo. Na produção e na interpretação encontram-se os aspectos sociocognitivos de coerência (propriedade das interpretações) e de força (cuja ambivalência é reduzida pelo contexto), além da intertextualidade manifesta (outros textos são explicitamente mencionados) e da interdiscursividade ou intertextualidade constitutiva (construção heterogênea de textos com elementos da ordem do discurso ou interdiscurso, nas vertentes de orientação francesa).

A coerência, enquanto propriedade externa ao texto, é influenciada pelas representações sociais, entidades discursivas fluidas e dinâmicas, construídas coletivamente e, de certa fora, cristalizadas no imaginário social. Com essa definição em mente, formulamos a seguinte questão: como o estudo linguístico de representações dos estudantes sobre a própria aprendizagem pode contribuir com o embasamento teórico para uma prática de ensino efetiva, que considere os processos de identidades nesse contexto específico?

Para buscar possíveis respostas, refletiremos sobre estratégias de ensino- aprendizagem de língua portuguesa para estudantes da rede pública de ensino, da educação básica, que incluam em suas práticas questões sociológicas, como os processos

de reconstrução de identidades, bem como as representações sociais mais difundidas sobre o próprio desempenho e sobre as diferentes variedades da língua portuguesa. Para esse fim, apresentaremos um relato de experiência, enquanto professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, que participa de um programa voluntário de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio.

REPRESENTAÇÕES SOCIOLINGUÍSTICAS NO ENSINO DE