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Por que se descarta o que se descarta onde se descarta?: um método para

Que a arqueologia lida majoritariamente com o "lixo" deixado pelas populações do passado mais ou menos remoto, não é novidade para quem pratica tal ofício e também para alguns curiosos sobre o assunto. Igualmente, é de conhecimento difundido entre os arqueólogos que uma importante referência sobre o tema do processo de formação do registro arqueológico foi escrita em um extenso livro por Michael Schiffer (1996) no final da década de 80. Schiffer declarou no prefácio de sua obra que seu objetivo era suprir a necessidade de reflexões sobre os princípios do processo de formação do registro arqueológico nos contextos pré-históricos, que vinham sendo amplamente ignorados nas duas décadas anteriores à produção de seu livro.

Entre os processos de formação, Schiffer apresenta tanto as influências de ações humanas/culturais quanto de eventos naturais que interagem na criação e transformações no registro arqueológico. Destacamos aqui o que o autor denominou de processo de formação cultural, principalmente as deposições culturais. Depósito e depositado parecem ser termos com significado abrangente para os artefatos que entram no contexto arqueológico18 em decorrência de diferentes fatores, a exemplo de processos de perda, brincadeiras de crianças, abandono, sepultamento dos mortos, caches rituais, etc.. Dentro dessa definição, estão outros dois conceitos trabalhados por Schiffer: contexto arqueológico e contexto sistêmico. O primeiro diz respeito aos artefatos que estão interagindo apenas com o ambiente natural, entretanto, com a resalva de que eles podem ser reinseridos no contexto sistêmico. Este portanto, se apresenta

18 "After use, artifacts may be reused or deposited. In the latter case artifacts enter archaeological context,

where they interact with the natural environment and, at various time, can reenter systemic context.". SCHIFFER, Michael. 1987. Formation process of the archaeological record. University of Utah Press, p.14. Mais para frente, o autor apresenta uma definição de depósito que, entretanto, considera insuficiente: "A deposit is a three-dimensional segment of site (or other area of analytical interest) that is distinguished in the field on the basis of observable changes in sediments and artifacts (...) According to this view, the boundaries of a deposit can be delineated in the field so as to ensure that the materials it contains are the product of a discrete depositional event or process." Ibidem, pp. 255-256

como o oposto do contexto arqueológico, visto que representa o momento no qual os artefatos participam de um sistema comportamental (SCHIFFER 1996, p.3).

Quando um artefato entra no contexto arqueológico, ele pode representar um refugo primário, secundário, ou refugo de fato. Refugo primário são os artefatos descartados em seus locais de uso ou em locais relacionados com as atividades nas quais os objetos estão inseridos, a exemplo dos locais de manufatura. Enquanto refugo secundário abrange os artefatos que foram descartados em outro lugar que não seja o de uso. Por último, refugo de fato representa os objetos, estruturas, instalações e outros tipos de materiais que foram deixados devido ao abandono de uma área sem terem sido descartados.

Refletindo sobre a aplicabilidade dos conceitos apresentados por Schiffer para os bolsões do Porto, vários questionamentos surgiram tanto considerando o bolsão em si (um buraco escavado) quanto os materiais neles presentes. Considerando que os materiais descartados nos bolsões participaram de uma certa cadeia e tiveram determinada função que momentaneamente foi encerrada quando depositados nos bolsões, é possível também estender a existência de uma cadeia e determinada função para os bolsões, ou seja, eles foram abertos para colocar coisas, assim, quando preenchido, o bolsão finalizou sua função e pode ou não ser fechado. Nesse sentido, se o material nos bolsões não fosse em nenhum momento recuperado, o mesmo já estaria inserido em um processo deposicional de descarte, mas os buracos poderiam continuar "ativos" enquanto novos objetos fossem depositados. Com isso, parte do conjunto bolsão+material, pode não ter sido "descartado" (bolsão), enquanto o outro já ser parte do depósito cultural (material).

Já em relação ao conteúdo desses bolsões (cerâmica, lítico, carvões, vestígios ósseos), pode haver uma mistura de refugos primários e secundários no mesmo espaço? Ou seja, alguns desses objetos já poderiam "fazer parte do solo", ou melhor dizendo, estarem em seus locais de uso, como refugo primário, enquanto outros foram transportados (refugo secundário)? Os buracos foram escavados no local onde várias atividades estariam ocorrendo e os objetos foram jogados quando não mais necessários (refugo primário)? Teríamos um processo "multi-formacional" do registro arqueológico nos bolsões?

Outro termo considerado relevante para essa pesquisa é descarte, que, simplificando as palavras de Schiffer (1996, p.47), pode ser definido como o processo pelo qual artefatos entram no contexto arqueológico, por não mais performarem suas

funções (utilitárias ou simbólicas), e por não serem reutilizados para outras funções.

As palavras que aqui destacamos são essenciais para o posicionamento adotado sobre a natureza dos bolsões, melhor esclarecendo, esses objetos foram descartados? Nesse sentido, à priori, os bolsões não serão considerados como uma forma de descarte, segundo a definição dada por Schiffer, visto que: (1) não sabemos se, mesmo que enterrados, além de quebrados em sua maioria, os artefatos nos bolsões não continuaram a performar sua função; (2) nem se, ao serem enterrados, isso não seria uma forma de reutilização19?; (3) nem mesmo se, caso os buracos escavados ficassem abertos por algum tempo, os objetos neles contidos poderiam ser recuperados e reutilizados em outras funções (utilitária ou simbólica)? (4) os bolsões, mesmo que cumprido seu "uso" por estar "cheio", poderia ter outra função de, por exemplo proteger os indivíduos contra os objetos20. Resumindo, os bolsões e os materiais neles contidos podem não ter sido descartados, mas apenas estariam performando outros tipos de funções.

As repostas para tais perguntas parecem estar além do que conseguiremos responder, mas esta ausência de conclusões neste momento não deve impedir que as indagações sejam feitas para gerar reflexões futuras e comparações com outros contextos arqueológicos e etnográficos.

Nos distanciando um pouco da linha de reflexão sobre tipos de descarte, a definição de Schiffer apresentada anteriormente para o que é descarte nos remete a outro ponto bastante comum e nem sempre questionado na arqueologia: função utilitária e simbólica. Fazendo referência a um trabalho escrito em conjunto com o arqueólogo norte-americano William Rathje, Schiffer (1996, p. 14) menciona que há três tipos de funções principais para um artefato: (1) tecnofuncional, que foi relacionado com atividades como extração, processamento e estocagem de recursos, além de manutenção de determinada tecnologia e cumprimento das necessidades biológicas do ser humano; (2) socio-funcional, que simbolicamente influencia as interações sociais; e (3) ideofuncional, que simboliza ideologia e transmite outras informações. Schiffer enfatiza que um objeto pode desempenhar mais de uma função. Mas considerando que existem vários tipos de culturas com concepções de mundo distintos, parece importante que os

19 No quinto tópico deste capítulo se verá alguns exemplos envolvendo objetos enterrados que, para

alguns casos, foram interpretados como oferendas, e inclusive, como uma forma de recriar simbolicamente o universo.. Tais exemplos nos suscitam a pensar na possibilidade de que estes objetos poderiam estar continuamente desempenhando um (novo?) papel utilitário/simbólico.

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Van Velthem (2003) menciona vários tipos de objetos que eram processados ou descartados em locais específicos, pois exigiam algum tipo de resguardo.

arqueólogos considerem que em algumas essas funções podem nem existir separadamente.

Mas retornando para a questão dos depósitos culturais, sendo que nos próximos parágrafos esse tema irá se relacionar com os "tipos" de funções dos objetos, a leitura de Schiffer contribuiu não somente para ponderar sobre a natureza dos bolsões no sítio Porto que aparentemente não se enquadram em algumas das categorias apresentadas por Schiffer, que inclusive estava ciente sobre o limite de algumas delas21, mas também indicou elementos que podem ser observados na comparação dos bolsões com outros tipos de feições, e também para tentar diferenciar os quatro contextos de bolsões que foram escavados em uma das áreas do sítio Porto. Esses elementos foram mencionados pelo autor ao tratar sobre a variabilidade artefatual, que pode ser mensurada em quatro dimensões: (1) formal, que trata das propriedades mensuráveis físico-químicas, como tamanho, peso, cor e forma; (2) espacial, que diz respeito à proveniência e densidade artefatual diferenciada; (3) frequencial, que representa o número de ocorrência de um tipo particular de artefato; e (4) relacional, que se refere aos padrões de co-ocorrência dos artefatos (SCHIFFER 1996, pp. 15-21).

Outra leitura relevante para pensar os objetos, locais e motivos para o descarte de objetos foi o trabalho etnográfico de Lúcia van Velthem (2003) entre os Wayana da Terra Indígena Paru de Leste, norte do Pará. Velthem descreveu vários detalhes sobre o cotidiano e práticas desse grupo indígena que podem servir para reflexões sobre os contextos arqueológicos. A escolha do espaço da aldeia está tanto ligada a fatores de ordem econômica (água limpa, terras para cultivo, abundância de combustível) e de ordem cosmológica. Os espaços da aldeia e seus arredores são específicos para determinados tipos de atividades, havendo locais de predominância feminina ou masculina, individual ou coletiva, que estão submetidas ou não a restrições e resguardos, há ainda espaços onde certos objetos não podem adentrar.

Os objetos também sofrem processos de descarte diferenciados, alguns sendo abandonados no interior ou ao redor das casas; na periferia residencial semi-encobertos pela vegetação; deixados para apodrecer na beirada da aldeia próxima aos rios; lançados inteiros nos rios; queimados; enterrados com os mortos; inclusive um longo processo

21 Schiffer ao mencionar na página 18 de sua obra que os processos de transporte e deposição dos objetos

podem ser repetidos muitas vezes, há diferentes possibilidades de associação entre essas duas atividades que não são abrangidas pela classificação dos refugos em primário ou secundário.

realizado com objetos de indivíduos falecidos que envolve a queima, abandono na periferia da aldeia, quebra e lançamento no rio.

Cada uma dessas formas de descarte recebe um nome específico, relacionado com o espaço onde foi deixado para "apodrecer". A escolha desses espaços e formas de descarte está vinculada a natureza dos objetos e os tipos de cuidados que se devem ter na disposição final deles. Como exemplo de um objeto "doméstico" mas com restrições que possivelmente seriam interpretadas por nós como de natureza "ritual", temos os cestos e outros objetos para o transporte de alimentos, que dificilmente sequer entram no núcleo habitacional, e que precisam ser deixados para "apodrecer no local de pesca".

Tal perspectiva de descarte põe em questão muitas das inferências que nós arqueólogos fazemos sobre os significados de nossos contextos arqueológicos. Para o tema que estamos aqui tratando, o descarte de objetos "rituais", a cosmovisão Wayana nos apresenta que um objeto não precisa ter sido utilizado em um ritual para necessitar ser descartado separado de outros, de uma certa forma e em um certo lugar, na verdade, para eles, todo tipo de objeto, dependendo da sua natureza, tem um destino último específico. E uma das lições mais importantes para nós arqueólogos, é que isso não está necessariamente associado ao tipo de decoração do objeto, a sua "exoticidade" e, principalmente, ao nosso desconhecimento sobre a função dos mesmos. Parece que precisamos rever as categorias que estamos utilizando há algum tempo, seja pelos limites que elas apresentam, e que já foram mencionados (HODDER 1982), mas principalmente porque os exemplos nos apresentam a existência de percepções distintas da nossa e que são tão válidas como categorias explicativas quanto as influenciadas pelo pensamento europeu22.

Considerações semelhantes foram feitas por Hayden e Cannon (1983) em sua pesquisa etnoarqueológica nas terras altas Maias. Conforme as necessidades de cada residência e da natureza do refugo, o material a ser descartado pode ser dividido e jogado em locais diferentes, dentro ou fora dos espaços residenciais. Os autores observaram que um mínimo esforço é realizado quando se descarta objetos com pouco potencial de obstrução ou de uso, diferentemente do que ocorre com os objetos que apresentam características opostas.

22 Diferentes pesquisas etnográficas nos servem de inspiração para repensarmos a dicotomia existente

entre os objetos "rituais" e "cotidianos" ( ver por exemplo Lagrou 2009; Viveiros de Castro 2002; Silva, 2013). Muitos dos objetos que seriam classificados por nós como "não rituais", nas sociedades ameríndias fazem parte da redes simbólicas e das relações com seres deste e de outros planos.

Os primeiros foram denominados pelos autores como refugo casual, representando refugos orgânicos, como ossos, cinzas e pequenos restos inorgânicos, são geralmente descartados em áreas próximas, que podem ser utilizados para pequenas produções agrícolas domésticas. Já a segunda categoria diz respeito ao "refugo amontoado", incluindo fragmentos cerâmicos, de lâminas de machado, que podem ter sido reunidos para serem utilizados algum dia ou porque os possuidores pretendiam descartar, mas ainda não tiveram a oportunidade. Os objetos com algum potencial de reutilização ou de obstrução, normalmente passam por várias etapas de descarte provisórias até a deposição final, diferentemente do que ocorre com os objetos perigosos que são imediatamente descartados. As formas de descarte descritas pelos autores não estão ligadas aparentemente a nenhum aspecto simbólico, mas a fatores como esforço, valor e obstáculo, que os objetos possam representar, entretanto, são interessantes para refletir sobre a conveniência e fatores práticos guiando as escolhas, inclusive sobre a possibilidade de objetos sendo acumulados ao longo do tempo em um espaço e depois serem transportados e descartados em outro local.

Observando atenciosamente os exemplos etnográficos de van Velthem (2003) e etnoarqueológicos de Hayden e Canon (1983) se tornou mais claro uma importante observação introduzida por Mills e Walker (2008) no que diz respeito a "estruturação" dos depósitos, em outros termos, o propósito de estarem no registro arqueológico do jeito que estão. Diferenciando-se da proposta de Richards e Thomas (1984) de deposição estruturada como propositalmente criados e simbolicamente motivado, Mills e Walker, assim como outros autores do livro por eles organizados, defendem que todos os tipos de depósito são estruturados de alguma forma. Com isso todos os depósitos tem um propósito de terem sido tratados da forma como foram ao entrarem no contexto arqueológico, dessa forma até o ato de "não fazer nada" seria uma escolha.

Mas voltando para o ato de descartar, a natureza dos objetos (matéria-prima, tamanho, peso) e o local de descarte são dois elementos comuns presentes nas reflexões de Schiffer, van Velthem e Hayden e Canon, e que se mostraram de extrema relevância para o estudo dos bolsões. A partir disso, a pergunta feita no subtítulo deste tópico chama atenção para três elementos: (1) os artefatos; (2) o espaço onde estão; e (3) os motivos dos objetos estarem onde estão. Com isso, a pergunta foi elaborada no sentido de refletir sobre as diferenças e semelhanças no descarte dos objetos encontrados nas diferentes áreas que foram escavadas no sítio Porto de Santarém. Destaque maior foi dado para as áreas onde foram encontradas feições arqueológicas, visto que "bolsão" é

apenas uma denominação correntemente utilizada na arqueologia de Santarém para se referir a uma feição arqueológica.

2.2. Girando a ampulheta de uma ocupação tapajônica: as escavações no sítio