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Vestígios de que?: bolsões, caches, cachettes, escondites e lixeiras

A prática de enterrar diferentes tipos de objetos foi observada no registro arqueológico de vários grupos culturais em períodos distintos (BAUDEZ 1999; BONNARDIN ET AL. 2009; CUMMINS & HASLAM 2006; GOMES 2010; GOMES 2012; GOMES, LUIZ 2013; QUINN 2004; SCHAAN 2010; STANTON, BROWN, PAGLIARO 2008; WALKER 1995; WINTER 1976). De forma abrangente esses tipos de depósitos fazem parte do que Schiffer denominou de deposição cultural (1996), que representa todo os processos responsáveis pela transferência dos artefatos do contexto sistêmico para o contexto arqueológico.

Entre esses processos, Schiffer lista a quebra, a perda, o abandono, o desgaste, sepultamento dos mortos e práticas de deposição variadas. Para o autor, o descarte ocorre quando os artefatos se tornam impossibilitados de performar suas funções, sejam utilitárias sejam simbólicas, quando representam uma ameaça, e quando a reutilização não é possível ou desejada. Dependendo dos artefatos encontrados, como estão associados, e do seu grau de integridade, várias interpretações já foram oferecidas para o ato de enterrar utensílios, alimentos e restos mortais humanos e animais.

Bonnardin e colaboradores (2009) apresentam que, entre as pesquisas apresentadas no XXIXº Encontro Internacional de Arqueologia e História de Antibes, uma definição comum é que o termo depósito (dépôt) não foi utilizado para designar atos intencionais de deposição. As acumulações de objetos observadas nos registros arqueológicos podem ser resultantes de eventos e situações aleatórios, por isso, um primeiro aspecto importante é reconhecer a intencionalidade do contexto de deposição em análise, que pode ocorrer em diferentes meios, seja ao ar livre, sob o solo, água ou outros ambientes.

Esclarecida a intencionalidade do depósito, o propósito do mesmo ainda pode ser difícil de se inferir. Hayden e Cannon (1983) apresentam exemplos etnográficos na região das terras altas maias onde depósitos de lixo em buracos representam uma reutilização da função primária concebida para esses fossos escavados. Os buracos apresentavam tamanho (de 20cm a 300x900cm de diâmetro), profundidade (20 a 200cm) e tipo de materiais variados (orgânico, terra, vidro, pedra, cerâmica quebrada, etc.).

Baudez (1999) oferece um exemplo de como a presença ou ausência de algum item pode alterar a interpretação do tipo de depósito e como a classificação escolhida

107 afeta a forma como pensamos que os elementos enterrados estavam relacionados: quando ossos humanos são encontrados nos depósitos, normalmente são designados de sepultamentos, caso, por qualquer tipo de motivo, os ossos não estejam mais presente, são classificados como um local onde o objetos foram depositados (caches). Quando um depósito é classificado como sepultamento se torna pré-estabelecido que os restos mortais são mais importantes que os outros itens que possam estar associados, enquanto em um cache, os ossos humanos não são necessariamente mais importantes que os outros elementos depositados.

No sítio de Tierras Largas, no Vale de Oaxaca, Winter (1976) identificou a presença de fossos em forma de sino (bell-shaped pits) associados a residências e túmulos que formavam o que o autor denominou de agrupamento doméstico. Os fossos continham pólen de milho, mós e mãos-de-mó, vasilhames, fragmentos de estatuetas, madeira carbonizada, ossos. O diâmetro da base normalmente variava entre 1m e 1,5m enquanto a abertura era menor e restrita e poucos excediam o volume de 4m³. A hipótese apresentada atribui como principal função dos fossos o armazenamento de alimentos, entretanto foi observado que alguns deles foram reutilizados como containers de refugo e/ou sepulturas. Quinn (2004) também levantou a hipótese de que essas estruturas subterrâneas seriam utilizadas para o armazenamento de excedentes para os bolsões do sítio Porto de Santarém, devido a presença restos alimentares assim como de cerâmica. Tentando estabelecer uma divisão entre os diferentes contextos de abertura de buracos para a deposição de material.

Marcio Castro (2009) identificou nos sítios Lago do Iranduba e Laguinho vários tipos de manchas no solo decorrentes de buracos escavados que podem ter sido utilizados para atividades de cocção (produção cerâmica ou cozimento de alimentos); depósito (silo para alimentos ou descarte de lixo); e talvez como espaço para a formação intencional de terra preta. Diferentes tipos de feições no mesmo sítio foram encontrados no complexo Açutuba (LIMA 2008) como silos; buracos de esteio; piso composto por cerâmica, lítico queimado e laterita, que podem ser áreas de descarte próximas de unidades habitacionais; e manchas de solo alaranjadas com concentrações cerâmicas. Enquanto as feições do tipo silo tem 40cm de diâmetro e 20cm de profundidade, as do tipo buraco de esteio são menores (15cm de diâmetro) e mais profundas (30 a 50cm); já as manchas alaranjadas não tem forma definida.

Castro (2009) aplicou uma metodologia diferente na análise das feições. A classificação considerou a morfologia e o volume utilizando a nomenclatura baseada na

108 matemática de formas tridimensionais. A partir disso, foi possível obter o cálculo aproximado do volume de cada feição. Com esses dados, o autor também correlacionou outras informações, como o conteúdo presente nas feições, a coloração Munsell do sedimento, e em qual profundidade iniciavam.

A observação dessa última variável também se mostrou importante para outro sítio no município de Iranduba, na Amazônia Central. No sítio Hatahara foi identificada a presença de várias feições, além de sepultamentos (MACHADO 2005; REBELLATO 2007; PY-DANIEL 2009) no sítio Hatahara, que se encontravam tanto nos montículos quanto nas áreas entre os montículos, alguns desses depósitos tinham seu início em solo de terra preta, outros em solo mosqueado, e inclusive no latossolo amarelado. Algumas dessas feições, que eram formadas majoritariamente por vestígios faunísticos e fragmentos cerâmicos, estavam associadas a sepultamentos. A composição de certas feições no Hatahara sugere que são decorrentes de estruturas de combustão (MACHADO 2005)

Das 32 feições encontradas no sítio Laguinho (CASTRO 2009), foi possível relacionar quatro com a função de cozimento, que tem em comum a presença de carvão, sendo que em algumas também foram identificadas cerâmica, fauna e trempe. O tipo de feição mais identificado no sítio Laguinho foram feições eram pequenas (16 exemplares), com volume máximo de 32 litros, profundidade variando entre 6 e 64cm, e diâmetro entre 12 e 47cm, e são mais superficiais em relação aos outros tipos identificados, iniciando entre 31 e 70cm de profundidade.

Feições do tipo estruturas de combustão também foram encontradas em outros sítios na Amazônia Central: Sítio Boa Esperança, localizado nas proximidades do lago Amanã (COSTA 2012); e Sítio Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (LIMA 2008), próximo ao Rio Manacapuru, ambos no atual estado do Amazonas. No sítio Boa Esperança (COSTA 2012) um conjunto de cerâmicas, carvões e bolotas de argila queimada estavam em uma mancha marrom e circular com aproximadamente 80cm de diâmetro, que contrastava com o latossolo ao redor. Outra feição arqueológica identificada no mesmo sítio também apresentava carvões, bolotas de argila queimada, cerâmica, além de fragmentos de trempe, sendo que seu diâmetro era de 90cm.

Costa (2012) chama atenção para o fato de que os fragmentos cerâmicos parecem ter sido colocados com cuidado e que o processo de quebra parece ter sido anterior ao depósito. Outro fator interessante é que alguns fragmentos cerâmicos dessa feição foram remontados com outros depositados em uma terceira feição localizada ao

109 sul da segunda. Os tipos de materiais observados nessa terceira feição são semelhantes aos presentes na segunda, assim como sua localização na estratigrafia, entretanto seu diâmetro é de 40x20cm. A quantidade de material na segunda feição era maior do que na terceira, e quase todo estava concentrado nas duas feições, em comparação ao presente nas unidades onde as manchas estavam.

Já as estruturas de combustão do sítio Nossa Senhora do Perpétuo Socorro tinham como elementos comuns a composição formada de pequena quantidade de fragmentos cerâmicos, grande quantidade de carvão e sedimento de coloração cinza escuro. Foram identificadas 84 feições nesse sítio, de formas e diâmetros variados. Por exemplo, Lima (2008) descreve que uma dessas estruturas tinha uma base abrupta, de forma quadrada, muito profunda e que apresentava indícios de ter sido reutilizada, enquanto outra estrutura de combustão apresentava formato mais arredondado e tinha vestígios faunísticos de pequenas dimensões e em baixa quantidade. A autora observou que as manchas indicavam a ocorrência de combustão in situ e que elas ocorriam em pares, com uma de diâmetro maior e outra de tamanho menor.

Guapindaia (2008) apresenta para o contexto do sítio Aviso I, localizado em uma área de encosta entre três platôs no município de Oriximiná, feições relacionadas a fogueiras que estavam associadas com manchas circulares com diâmetro variando entre 10 e 15cm, que foram interpretadas como marcas de esteios de casa. As fogueiras foram identificadas devido a concentrações de carvões que eram maiores do que os identificados no resto da camada arqueológica, enquanto os buracos de esteio apresentavam solo de coloração mais escura e diferente textura em comparação com o solo ao redor. Enquanto no sítio Boa Vista, as margens do rio Trombetas, na área denominada de Mancha Azul foram identificados dois bolsões de solo escuro, distantes entre si por aproximadamente 80m. Neles, a camada de terra preta era mais profunda e havia material orgânico, lítico e fragmentos cerâmicos com muita decoração.

Algumas das feições descritas por Moraes (2006) no sítio Lago do Limão, no meio curso do rio Ariaú, Moraes (2006) foram classificadas como buracos de esteio. Manchas semelhantes também foi identificadas em outros sítios da região. Uma feição em particular no sítio Lago do Limão era formada por duas manchas escuras, sendo uma delas com diâmetro maior, mas com profundidade menor, enquanto a mancha interna, localizada no centro, era mais profundidade, entretanto tinha menor diâmetro. Outra era denominada localmente como "curral de tartaruga de índio" e media 12x6m, com profundidade de 1,2m. Essa grande mancha estava ainda cercada por buracos com solo

110 mais escuro, que provavelmente seriam decorrentes das estacas do curral. Entretanto devido a grande quantidade de material histórico misturado com o pré-colonial, o autor não descartou a possibilidade de que o buraco escavado seja decorrente de uma atividade mais recente.

Para o sítio Osvaldo, localizado no interflúvio entre os rios Negro e Solimões, Portocarrero (2006) apresenta um contexto de concentrações de materiais presentes em manchas de terra preta. A quantidade de material arqueológico e a profundidade da terra preta são maiores nessas concentrações. Com isso, as mesmas foram interpretadas como lixeiras, sendo que a denominada de Concentração 1 estava localizada na área mais elevada do sítio, apresentava maior profundidade de terra preta, maior quantidade de material cerâmico e maior percentual de paredes de vasilhas decoradas. Devido a isso, e também pela presença de uma estatueta cerâmica com representação antropomorfa zoomorfizada na Concentração 1, Portocarrero levantou a hipótese de que neste setor poderia habitar membros da sociedade com status social superior e que o material cerâmico poderia ser decorrente de cerimônias coletivas.

Nessa mesma perspectiva, várias pesquisas já levantaram a possibilidade de que alguns tipos de feições observadas pode estar relacionadas a rituais (BAUDEZ 1999; STANTON, BROWN, PAGLIARO 2008; WALKER 1995). Os acontecimentos ritualizados que geraram o material descartado foram explicados a partir de motivações diversas desde oferendas, a lixo cerimonial, e resíduos de uma festividade. Tais explicações foram cotejadas com outras hipóteses, se opondo a uma presumida natureza doméstica (STANTON, BROWN, PAGLIARO 2008), funerária (FARR, EPPICH E ARROYAVE 2008). A semelhança dos depósitos também é considerada como um possível ato intencional motivado por um princípio cosmológico comum ( BAUDEZ 1999).

Stanton, Brown e Pagliaro (2008) apresentam sua leitura dos depósitos maias tendo como base as ações relacionadas com os processos de formação dos contextos observados no registro arqueológico. para sustentar a hipótese que estes seriam decorrentes de rituais de terminação performados em diferentes situações como durante a reconstrução de estabelecimentos ou abandono dos mesmos. Farr, Eppich e Arroyave (2008) compartilham da mesma interpretação de que os escondites nos sítios maias seriam estruturas rituais, designando ritual de dedicação para aqueles relacionados com a construção de novas edificações, enquanto os de terminação nos momentos de destruição ou como um ato de reverência. Esses rituais ocorriam em construções

111 públicas, privadas, comunitárias e domésticas, e em ambos, os mesmos tipos de objetos poderiam ser utilizados.

Já Baudez (1999) atribui aos depósitos maias do sítio Tikal e Sata Rita Corozal a função de recriação simbólica do universo. Neste sítio, apesar dos depósitos apresentavam os mesmo tipos de objetos presentes em outros lugares, nele o material estava subdividido em dois níveis, disposição em camadas semelhante a observada no Grande Templo de Tenochtitlan, onde foi levantada a possibilidade de significarem a reprodução do universo. Essa divisão corresponderia a uma representação do mundo, divido entre o inframundo, superfície terrestre e o céu. Assim, por exemplo, alguns dos objetos atuando na recreação cósmica seriam as conchas e animais marinhos, que corresponderiam as águas do inframundo e da superfície, enquanto os artefatos em jade significariam as águas celestes. Nos depósitos também seriam compostos por uma parte ritual sacrifical representada por utensílios de formas complexas em sílex e jade e por ferrões de arraia.

Pela semelhança no conteúdo depositado entre os caches e as sepulturas, Baudez questiona se essa similaridade não seria decorrente de ambos comporem a mesma categoria, que seria a de oferendas à terra. Assim, os dois casos estariam regidos pela mesma crença mitológica mesoamericana da Terra como devoradora de cadáveres, sejam eles objetos, sangue vertido ou cadáveres inumados. Ao recriar o mundo por meio desses conjunto de objetos, uma nova vida estaria sendo dada, seja para edificações seja para os mortos.

Walker (1995) diferencia os distintos caminhos percorridos pelos objetos que foram depositados como sacrifícios daqueles que foram descartados como lixo cerimonial. Enquanto os sacrifícios apresentam objetos ainda em estado de serem utilizados que foram desviados de seus contextos de uso e tiveram o restante de sua vida-útil aproveitada para uma ação ritual, já o lixo cerimonial é composto por objetos cuja vida-útil terminou, seja por desgaste, quebra, ter se tornado obsoleto ou devido a morte de quem os possuía, eles perderam, portanto, sua função tecnológica e não tem possibilidade de ser reutilizados ou reciclados. Quando descartado o lixo cerimonial pode ainda ser intencionalmente quebrado ou queimado..

Walker chama atenção para os objetos que em seu contexto sistêmico foram utilizados como oferendas votivas, mas que entraram no contexto arqueológico como lixo cerimonial. Nesse aspecto, o autor leva em consideração os padrões de deposição de refugos proposto por Schiffer (1972). Schiffer divide os refugos primeiro em relação

112 a se passaram ou não pelo processo de descarte, este último é denominado de refugo de fato, enquanto o primeiro é subdividido em refugo primário e secundário. No primário, ocorre a deposição do artefato no lugar onde foi utilizado, enquanto no refugo secundário, o objeto é transportado para outro local diferente do de utilização.

Clayton, Driver e Kosakowsky (2005) ao analisarem o conteúdo do Depósito Especial 1 do sítio maia de Blue Creek, no noroeste de Belize tiveram como problemática a consideração se tais despojos seriam primários ou secundáros. Os depósitos do período Clássico Terminal normalmente foram interpretados como descartes primários de rituais de terminação. Ao considerar o número de potes inteiros, as formas dos vasos e os dados estratigráficos, os autores concluem que o depósito é decorrente do transporte de restos de uma festividade que ocorreu em outro lugar, portanto de origem secundária.

A possibilidade de ocorrência dos dois tipos de evento, descarte primário ritual e secundário de lixo, na mesma estrutura de depósito é apresentada por Cummins e Haslam (2006) ao analisarem os contextos na região de Bosqué , no Vale de Copan. O tipo de feição comumente encontrado, chamado de basurero, era interpretado como uma criação intencional de lixeiras, não obstante, alguns tipos de objetos encontrados, a exemplos de vasos grandes e quase inteiros, trazia dúvida sobre o tipo de atividade que produziu os depósitos. Com isso, os diferentes fossos apresentam concomitantemente artefatos de caráter utilitário e simbólico. Os autores, portanto contra-argumentam a suposta função única e engessada dos basureros, e defendem que os mesmos tinham um propósito dinâmico que poderia estar relacionados com os rituais que necessitavam transformar os espaços domésticos em recintos sagrados.

Enquanto a presença de objetos rituais e de lixo comum em um mesmo fosso nos sítios Aldeia e Carapanari, na região do Tapajós, foi interpretado por Gomes (2010) como um descarte não diferenciado entre o lixo doméstico e utensílios utilizados em situações de rituais cotidianos, tais como os de cura. As afinidades entre os rituais domésticos e de maior grau de formalização foram destacados por Raymond (1993) para a cultura Valdivia, no sudoeste do Equador, onde foi conjecturada a influência dos rituais domésticos, que ocorriam desde o período formativo, nas cerimônias realizadas nos recintos especializados do período Valdivia Tardio. As estruturas cerimoniais do período Tardio se assemelhavam em sua arquitetura com os ambientes domésticos, e os assentamentos, à moda da organização nas residências, separavam o espaço comunal do ambiente para a realização dos rituais comunitários, além da presença de artefatos

113 semelhantes, como estatuetas e vasos cerâmicos nos contextos domésticos e exclusivamente cerimoniais.

Os contextos analisados, portanto, apontam que alguns depósitos provavelmente apresentam utensílios que foram usados em contextos sistêmicos distintos, entretanto seguiram o mesmo percurso ao entrar no contexto arqueológico. Em suas reflexões iniciais, Raymond (1993) discorre sobre a tendência dos estudos arqueológicos em separar o material encontrado em cerimonial e não-cerimonial, enquanto esse tipo de dicotomia nem sempre está presente no registro arqueológico, e em consequência, na mente das pessoas que deixaram esses vestígios. Com isso, apesar de que possivelmente algumas cerimônias utilizarem objetos exclusivamente de função ritual, muitas podem ter recorrido a utensílios ordinários, utilizados em outros contextos.

Vários dos exemplos mencionados remetem as questões já apontadas anteriormente sobre a inferência que fazemos das funções dos objetos e dos critérios utilizados para essas inferências. Nesse sentido se determinados objetos são interpretados como "domésticos/utilitários" e aparecem junto com artefatos "rituais", tanto os "domésticos" não podem ganhar caráter de "ritual", quanto os "rituais" tem sua importância diminuída se tornando fruto de "rituais menores" ou responsáveis por "sacralizar" um espaço. Não queremos com isso dizer que não existam rituais menores ou sacralização dos espaços, mas precisamos estar ciente dos critérios que utilizamos e da armadilha teórica que possa existir ao dicotomizarmos algo como ritual ou doméstico, principalmente porque na arqueologia é quase uma conclusão direta que os objetos não-ordinários tem que ser rituais.

Enfatizemos novamente o caso dos Wayana (VELTHEM 2003), além de mais um exemplo etnográfico, as máscaras xinguanas dos apapaatai (BARCELOS NETO 2004; MACEDO 2006), para pensar sobre objetos "domésticos, "rituais" e suas características. Os Wayana distinguem seu lixo dependendo se eles são combustíveis ou incombustíveis, pertencem aos mortos ou aos vivos, aos tipos de restrições que tem, e se podem ou não sair do local de onde estão sendo utilizadas. Em nenhum momento van Velthem menciona se cada um desses tinha um tipo de característica específica, ordinários ou não-ordiários, claro que isso pode ser uma questão dos problemas que a pesquisadora tinha em mente, ou isso também pode ser algo relevante para os Wayana. Mas temos as observações feitas por Barcelos Neto sobre as características das máscaras rituais dos Wauja. Na concepção deste grupo, os objetos rituais atualizam a agência dos apapaatai, seres que perderam a forma humana e que podem assumir forma de animais,

114 monstros, artefatos, espíritos, xamãs, etc. (MACEDO 2006), e portanto estão impregnados de múltiplas agências. Não há uma relação fixa entre um tipo de máscara, com determinada forma e decoração, com um apapaatai, ou seja o mesmo apapaatai, pode vestir diferentem tipos de máscara, assim como um mesmo tipo pode ser vestido por diferentes apapaatai, afinal, como afirma Barcelos Neto (2004, p.56), não são as máscaras que são tipos de apapaatai, mas são eles que escolhem vesti-las, a identidade