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PARTE II- ETNOGRAFIA: ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 3. ASPECTOS TEÓRICOS

3.2 POSSÍVEIS DIÁLOGOS COM A EDUCAÇÃO

"Muitas coisas separam antropólogos e educadores, mas muitas outras os unem. [...] No diálogo entre antropologia e educação, a questão parece ser: a aventura de se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um conhecimento que não é o nosso. Nessa encruzilhada, os não-antropólogos buscam um "olhar antropológico" pelo qual se guiarão nos mistérios da pesquisa de campo. Por sua vez, a antropologia e os antropólogos se vêem em grandes dificuldades, quando são chamados a tratar dessa realidade cujo nome é educação, seja por não conhecerem, ou ainda, por deslegitimarem um certo percurso do passado da antropologia" (GUSMÃO, 1997, p. 9-10).

A partir do trecho apresentado acima, Gusmão (1997) evidencia que, apesar da temática que envolve Educação e Antropologia ainda não ter alcançado sucesso nos estudos nem no campo da Antropologia nem no campo da Educação, neste último, essa temática tem sido mais recorrente em função das demandas das políticas nacionais da educação e das políticas de diversidade que requerem outros modelos de práticas pedagógicas.

Um mapeamento realizado por Oliveira (2015) acerca dos programas de pós- graduação em Antropologia que tratam das questões educacionais revelou que, dentre os 22 programas de pós-graduação existentes no país, apenas um deles possui uma linha de investigação sobre o tema. Além disso, quando a temática aparece nas ementas das disciplinas dos programas, esta é apresentada apenas de forma superficial.

Se na Antropologia, de acordo com Oliveira (2015), o objeto educacional é pouco privilegiado, no campo educacional vem crescendo o diálogo com a Antropologia, principalmente por meio da etnografia, ainda que sob uma perspectiva de estudos do “tipo etnográfico”.

84 Assim como a etnografia promoveu uma virada no modo de se fazer pesquisa na Antropologia, esta também provocou na pesquisa educacional, uma “guinada epistemológica, e mesmo ontológica, na medida em que trouxe outra concepção de fazer ciência” (OLIVEIRA, 2013c, p. 273).

Gatti (2001) aponta que, no Brasil, nos últimos anos, tem aumentado o número de estudos no campo da educação com foco nas pesquisas qualitativas e assim, a pretensão de neutralidade, característica de modelos de pesquisa baseados na racionalidade técnica, vem cedendo lugar a uma visão diferenciada do fazer científico. Nessa maior aproximação das pesquisas educacionais com as pesquisas qualitativas, os métodos de análise também têm se expandido e, por isso, o recorrente uso da análise de discurso, da etnografia, das narrativas, entre outras.

Veiga Neto (2003) alega que atualmente tem crescido o interesse pelas questões culturais no âmbito acadêmico, político ou da vida cotidiana, indicando a crescente centralidade da cultura para pensar o mundo. Contudo, o autor adverte que essa centralidade não indica que a cultura seja uma instância epistemologicamente superior às demais instâncias sociais tais como a política, a econômica, a educacional; é preciso entendê-la como algo que atravessa tudo aquilo que é do social.

Nesse sentido, é possível promover um diálogo entre Educação e Antropologia, sem esquecer, contudo, de que quando se estabelece o diálogo entre dois campos diferentes de conhecimentos é preciso reconhecer possíveis conflitos e riscos (TOSTA, 2011). Segundo a autora, para a realização desse diálogo,

faz-se necessário adotar uma abordagem interdisciplinar mais integradora, não no sentido de simplesmente tentar unir a antropologia à educação, mas, sim, com a consciência de que problemas e temas educacionais e escolares, mesmo apresentando-se em formatos distintos e sendo tratados, também, de maneira distinta, podem encontrar-se no caminho dessas duas ciências. Movimento que exige um ir e vir analítico entre os dois campos, a fim de formular essas questões que são importantes e que podem ser mais bem tratadas por uma visão diferente e mais polissêmica do que sejam os processos educacionais, a escola, o conhecimento, as práticas pedagógicas, os currículos, a formação e a profissão (TOSTA, 2011, p. 235).

Logo, a Antropologia pode ser considerada um modo privilegiado de análise não somente do contexto curricular, mas para a compreensão dos objetos de estudos na educação de forma geral, devido ao fato desta, assim como aponta Tosta (2011), tratar a cultura como dimensão edificadora da humanidade, possibilitando um olhar mais ampliado, o que poderá possibilitar que se captem dimensões da condição humana sem

85 esquecer-se da exigência de uma percepção mais cuidadosa e atenta da complexa trama social presente na contemporaneidade.

De fato, a relação entre cultura e educação é bastante complexa já que trata de dois termos polissêmicos que vêm sendo reconstruídos ao longo do tempo, sem, contudo, chegar a uma única definição. Apesar disso, podemos estabelecer uma relação consensual entre cultura e educação se partirmos do pressuposto de Forquim (1993, p. 10) de que “o conteúdo que se transmite na educação é sempre alguma coisa que nos precede, nos ultrapassa e nos institui enquanto sujeitos humanos, o que nos autoriza a dar-lhe o nome de cultura”.

Desse modo, apesar da aproximação entre Educação e a Antropologia, mais especificamente com a etnografia, ser bastante válida, como já dissemos anteriormente, essa apropriação da etnografia nos estudos educacionais tem provocado alguns equívocos, ao menos, em nosso ponto de vista.

Se por um lado, segundo Oliveira (2013c), essa relação trouxe um novo olhar para a realidade educacional até então ausente, ou pelo menos com pouca visibilidade, por outro lado, o autor chama a atenção para o fato de que isso não significa estabelecer uma receita sobre como aplicar a etnografia nas pesquisas educacionais, mas concordar que existem procedimentos na etnografia como a rotina do trabalho de campo, a leitura das etnografias clássicas, a aproximação com as teorias antropológicas, a elaboração de projetos, cronogramas, cadernos de campo que são centrais na prática etnográfica.

Tosta, Moreira e Buenicontro (2008) afirmam que os equívocos nas pesquisas educacionais que fazem uso da etnografia estão relacionados à ausência de referências consistentes para os pesquisadores se basearem. Como consequência, as autoras informam que “várias pesquisas tendem a demonstrar que a etnografia na educação tem sido entendida por parte de muitos pesquisadores, como um conjunto de técnicas qualitativas que melhor atende a aproximação da realidade observada. E tão somente isso” (TOSTA; MOREIRA; BUENICONTRO, 2008, p. 10).

De acordo com Fonseca (1999), a aproximação entre etnografia e educação sem o devido cuidado, pode recair no risco de tratar a realidade por uma visão simplificada.

Quando estudantes de educação (ou comunicação ou medicina etc.) soltam as amarras de suas tradições disciplinares e se atiram na direção da antropologia sem preparação adequada, podem, em vez de realizar uma costura interdisciplinar, cair no vazio — um território nem lá, nem cá, onde o que mais floresce é o senso comum da cultura do pesquisador (FONSECA, 1999. p. 62).

86 Sem as devidas amarras teóricas, corre-se o risco, por exemplo, de tratar o discurso do informante como verdadeiro ou falso, ou mesmo reproduzir as falas do entrevistado como uma versão inquestionável da realidade. Para isso, a autora adverte sobre a necessidade de comparar os discursos de diferentes sujeitos sobre a mesma realidade, a fim de mapear a organização e composição da vida social.

Outra advertência vem de Oliveira (2013c). Para o autor, estar na escola, pode parecer um cenário muito homogêneo, pois a princípio é possível pensar que os alunos podem, por exemplo, ter motivações parecidas e condições objetivas. Somente quando nos adentramos em seus universos simbólicos, conseguimos compreender significados mais íntimos, que podem ser diferentes em função das trajetórias, experiências e lugares que os alunos ocupam no mundo. Dessa forma,

o que se encontra nas práticas cotidianas dos sujeitos envoltos no universo educacional está para além do que se pode apreender numa instância mais imediata, pois os significados que estes constroem se constituem em espaços simbólicos mais amplos [...] É nos diálogos não direcionados ao pesquisador, nas produções simbólicas dispersas pelo pátio da escola, pelos corredores, que as representações sociais são construídas, que as imagens em torno da diferença, da alteridade, se constroem e se animam (OLIVEIRA, 2013c, p.277).

Além disso, é preciso se atentar para o fato de que a realidade educacional está envolta em políticas públicas, pessoas com interesses próprios, além de relações de poder que cercam a realidade curricular. Como já vimos na seção dedicada ao currículo, este é permeado por relações de negociação, deliberação e, portanto, de tensões.

Outro desafio recorrente nas pesquisas refere-se ao professor-pesquisador que estuda no lugar que lhe é familiar. Nesse sentido, Oliveira (2013c, p. 278) questiona: “O que significa estar lá na pesquisa educacional?” Se nas etnografias clássicas, o pesquisador estudava nas sociedades distantes com costumes qualificados como exóticos, nas pesquisas atuais o pesquisador estuda em sua própria sociedade. Mais especificamente no caso das pesquisas realizadas no âmbito escolar, o ambiente pode se configurar como familiar se o professor-pesquisador atuou ou ainda atua nesse ambiente.

Reside aí a dificuldade em fazer o estranhamento àquilo que é familiar, o que só poderá ser feito mediante um olhar antropológico. Em decorrência disso, o autor reivindica um processo reflexivo acerca da permanência do pesquisador em campo, visto que a etnografia se assenta na intersubjetividade.

Estranhar o familiar, portanto, “corresponde a um esforço intelectual de pensar antropologicamente a sua própria sociedade, desconfiando criticamente do senso comum e das certezas dogmáticas” (VELHO, 2007, p. 13). Para o autor, não se trata de o

87 pesquisador se colocar como soberano sobre os outros, mas buscar através do reconhecimento das diferenças, do estranhamento daquilo que nos é próximo e de suas relativizações como formas de se obter uma visão mais complexa da sociedade em que vivemos (VELHO 2007).

A experiência da realização da etnografia em um estudo no campo educacional, mais precisamente no campo curricular, é uma oportunidade de pôr em evidência a noção do currículo enquanto construção social (GOODSON, 1997). Segundo Tosta (2011), assumir o ponto de vista antropológico para compreender o campo educacional significa, “tentar delimitar fronteiras que marcam ambas as áreas e que não podem simplesmente ser dissolvidas, mas repensadas no sentido da articulação que mantém suas identidades e diferenças” (TOSTA, 2011, p. 246).

A experiência de viver o cotidiano curricular junto aos professores e alunos a partir de um olhar antropológico enriquece a maneira de compreender os modos como as pessoas se relacionam com os conhecimentos, normatizações, tradições, rupturas e também entre elas mesmas. Não obstante, essa experiência também promove naquele que realiza a investigação, um deslocamento da atenção para conceitos, teorias, ideias que ora acreditava estar cristalizados, ora superados. Assim sendo, o conselho de Malinowski é bastante pertinente: “Se um homem parte em numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão de uma evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil” (MALINOWSKI, p. 22. 1978).

3.3 IMPLICAÇÕES DA ESCOLHA DA ETNOGRAFIA COMO REFERENCIAL