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Quando tratamos como possibilidade o desenvolvimento de um RPG de mesa ou livro-jogo para o ensino interdisciplinar de artes visuais, mesmo sendo em formato de texto, tratamos do desenvolvimento de um jogo e, para tal, é necessário seguir abordagens que contemplem aspectos do Game Design e da lore, como o mundo neste jogo, sua história, geografia, itens, magia, aspectos culturais, mecânica e estética.

Em um jogo, a principal preocupação dos professores geralmente será os conteúdos curriculares. Quais são as possibilidades, na prática, dos componentes curriculares e das competências no desenvolvimento de um RPG? Por meio das leituras dos documentos legais, podemos propor muitas articulações possíveis (Figura 18). É possível durante a invenção do jogo, da escrita de suas histórias e do desenvolvimento de personagens abordar além dos componentes específicos de arte tais como questões culturais e expressivas, temas transversais da BNCC e dos PCNs tais como saúde pessoal e coletiva, economia, pluralidade cultural dentre outros. O mesmo se aplica com relação às competências gerais da BNCC, onde as atividades de desenvolvimento podem abranger argumentação, autoconhecimento, empatia, pensamento científico, crítico e criativo dentre outros.

É importante salientar que, do ponto de vista da aprendizagem inventiva, estas competências e habilidades não devem ser impostas, não podem ser controladas e nem dominadas: “O desenvolvimento de habilidades e competências se faz quando o comportamento se torna um pensamento corporificado. [...] O salto consiste em desconectar as habilidades e competências do controle do comportamento e da dominação de um suporto mundo dado” (KASTRUP, 2001, p.25). Kastrup (2001) utiliza o exemplo de uma cozinheira, que, inventiva, desprende-se de receitas prontas

e de regras. Ela atinge o ponto de vista da arte na cozinha, envolvendo uma molecularização com sua percepção e ação, uma familiaridade que torna possível criar novos pratos, experimentando novas cores e sabores.

Figura 18: Possíveis articulações com PCN e BNCC

Fonte: CANVA/Produção Autoral

Sem dúvida, o desconhecimento da função da arte em sala de aula pode se apresentar como uma dificuldade na articulação do conhecimento com o desenvolvimento de jogos, por este motivo, é tão importante que o professor tenha domínio não apenas prático, mas também teórico sobre a área na qual visa propor tal atividade:

A arte na escola já foi considerada matéria, disciplina, atividade, mas sempre mantida à margem das áreas curriculares tidas como mais “nobres”. Esse lugar menos privilegiado corresponde ao desconhecimento, em termos pedagógicos, de como se trabalhar o poder da imagem, do som, do movimento e da percepção estética como fontes de conhecimento (BRASIL, 1998g, p.26).

A arte-educação possui em sua estrutura educacional inúmeras possibilidades poéticas e didáticas para além das apresentadas como tradicionais, no entanto, ainda temos muitos professores que desconhecem os potenciais inventivos do ensino da arte, dos jogos e, também, da cultura visual, se detendo apenas em propostas forçosamente curriculares e focadas apenas em conteúdos e competências de maneira mecanizada (BARBOSA, 2018).

Compreender que é a função de um RPG narrar uma história por meio de um personagem em um determinado contexto, também nos apresenta outra possibilidade, a da investigação. A construção de novos contextos pode se dar por meio da pesquisa em uma biblioteca ou em ambiente virtual, pelo viés da cultura visual, evocando agenciamentos com imagens que apresentam outras culturas, outras identidades coletivas, proporcionando espaços para que “[...] esse processo de ‘conversa’ entre identidade e subjetividade flua de uma forma mais dinâmica, pois segundo Hernández (2011)12, as imagens agem como um espelho do indivíduo” (SOUZA e DIEHL, 2012, p. 8).

Por meio do contato com outras culturas, podemos lançar enigmas tais como: Qual o nome deste grupo? Qual seu idioma? Seu sistema social? Sua religião? Uma tentativa em compreender os cruzamentos culturais e suas particularidades, a função e a manifestação da arte em diferentes

contextos, problematizando estereótipos e propondo diálogos a respeito de discriminação e de cultura dominante.

Um exemplo disso, é o estudo da arte brasileira e latino-americana, onde ainda são ocultos, escondidos, incompreendidos os processos de hibridização, suas caracterizações e suas particularidades, dando ênfase às visões europeias de nós mesmos (HERNÁNDEZ, 2020; CANCLINI, 2009). Neste sentido, o estudo da arte e da cultura pelo viés da cultura visual não tem por objetivo compreender o passado no sentido de “decifrar” algo não dito, mas de pensar como aquelas produções faziam sentido naquele determinado momento e como se conectam hoje com cada sujeito.

De acordo com Hernández (2013, 2020), devemos ter a consciência de que a história nos é narrada por alguém e, portanto, acompanha uma visão discursiva que pretende fixar determinadas posições e efeitos. Compreender que nos foram omitidos e excluídos da história da arte muitos povos e visualidades, nos exige uma postura de quebrar silêncios, permitindo explorar pluralidades, descobrindo junto com seus estudantes os pontos de contato dessas culturas com nossas realidades:

O desafio das artes na cultura visual é construir uma escola que transite do reproduzir ao compreender; do copiar ao transferir; da obsessão pelo resultado à reflexão sobre o percurso, dando conta de tudo isso mediante diferentes alfabetismos (visuais, orais, escritos, aurais, corporais, digitais...) (HERNÁNDEZ, 2020, p. 15).

Como anteriormente já citamos, prevalecem dois grandes grupos no desenvolvimento de atividades: a invenção de material visual para o jogo por meio do fazer artístico e a invenção do contexto no qual a história se passa, por meio de narrativas visuais e narrativas escritas com descrições de geografias, aspectos culturais, dentre outros. Esse último, não necessariamente precisa ser focado em conteúdo, em currículos fechados ou imutáveis, podendo ser pautado na invenção.

existentes, constituídas historicamente, e os abalos, as inquietações, os estranhamentos que nos afetam. Somos inquietados, sofremos abalos, somos vitimados pelo estranhamento”, ou seja, espera-se que em durante as atividades surjam dúvidas, inseguranças, inquietações tais como, por exemplo, não sei desenhar, não sei ilustrar, não sei pesquisar, questões essas que surgiram durante minha primeira prática de desenvolvimento de jogos (SASSO, 2018).

De forma alguma essa instabilidade deve ser vista como um problema, como algo a ser evitado ou desviado e sim, como uma possibilidade de invenção de si e de produção de subjetividade, da compreensão de suas potencialidades, de formação de competências específicas que produzem resistências, tornando-se conscientes de suas limitações e, também, da possível transgressão da expectativa de não supera-las.

4 CAMINHOS METODOLÓGICOS

O percurso metodológico escolhido para este trabalho atende a pesquisa qualitativa, considerando a importância da escrita por meio da elaboração de objetivos e das possíveis problematizações e interpretações entre teoria e prática. Essas são possíveis por meio da pesquisa documental para recolhimento de dados, tais como os documentos legais da educação brasileira; e da pesquisa bibliográfica, a partir da qual são dialogadas questões envolvendo cultura, jogos e arte-educação.

A escolha de mais de uma abordagem metodológica foi necessária para ampliar a fundamentação da pesquisa, que possui mais de uma dinâmica, como a participação de professores por meio de comentários e feedbacks e também as análises e coletas de dados documentais e bibliográficos. Foram utilizadas quatro abordagens, sendo elas a pesquisa colaborativa (GASPAROTTO E MENEGASSI, 2017), a cartografia (DELEUZE E GUATARRI, 1995; BARROS E KASTRUP, 2009; HERNÁNDEZ, 2020; SOUZA E FRANCISCO, 2016), a netnografia (KOZINETS, 2014) e a revisão sistemática de Kitchenham (2007), investigada com mais detalhes no segundo capítulo.

A abordagem colaborativa possui como fundamento o trabalho escrito em múltiplas vozes com os atores da pesquisa, ou seja, procura buscar sentidos junto aos professores, não apenas tendo o olhar do pesquisador:

[...] é um trabalho coparticipativo de interação entre pesquisador externo e professor ou grupo de professores, num processo de estudo teórico-prático que envolve constante questionamento e teorização sobre as práticas e teorias que norteiam o trabalho docente (BORTONI-RICARDO, 2011), no sentido de compreender a realidade e construir novas ações que contribuam para melhor desenvolvimento do ensino. Dessa forma, toda a pesquisa é produzida com o professor e não para ele, o que é o grande diferencial. O pesquisador tem na realidade estudada o seu objeto de investigação, podendo construir conhecimento com base nesse contexto, descrevendo, explicando e também intervindo nele (GASPAROTTO E MENEGASSI, 2016, p. 950).

Nesta pesquisa, também foram usados elementos de pesquisa cartográfica, inicialmente descrita por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), muito utilizada na contemporaneidade por pesquisadores em arte e por arte-educadores por permitir acompanhar um processo, não ao processo como processamento de uma cadeia de produção, mas ao processo cartográfico, este que procura mapear uma pesquisa em movimento, construindo e reconstruindo trajetos (BARROS E KASTRUP, 2009).

De acordo com Barros e Kastrup (2009), a cartografia visa acompanhar o percurso da pesquisa, tomando notas e procurando seguir potencialidades observadas na experiência. Nesse sentido, a cartografia possibilita abarcar novas possibilidades que surjam, permitindo adentrar campos inexplorados, acolher possíveis desvios ou possíveis permanências quando necessário. Desta forma, Souza e Francisco (2016) apontam a cartografia como acompanhar processos:

Em suma, a perspectiva metodológica da cartografia visa acompanhar processos, mais do que representar estado de coisas; intervir na realidade mais do que interpretá-la; Montar dispositivos mais do que atribuir a eles qualquer natureza; dissolver o ponto de vista dos observadores, mais do que centralizar o conhecimento em uma perspectiva identitária e pessoal. Com esta finalidade, a cartografia se pratica no habitar um território existencial: no cultivo da atenção concentrada, à espreita dos movimentos, processos e intensidades (SOUZA & FRANCISCO, 2016, p. 819).

Essa abordagem em específico é citada como uma das possibilidades avaliativas no Design Instrucional Contextualizado (FILATRO, 2010), que também busca acompanhar e permitir aberturas para mudanças de caminhos. A cartografia propõe como método de coleta de dados, o diário de campo, escritos, fotografias, bem como outras produções que, de alguma forma, possam complementar ou dialogar com as mudanças resultantes das dinâmicas da pesquisa. Uma possibilidade, por exemplo, é o acompanhamento das mudanças de contextos (socioeconômicos e políticos) relacionados aos espaços educacionais, transformando, assim, a prática proposta em teoria.

Também foi utilizado o método netnográfico, um ramo da etnografia descrito por Kozinets (2014), que propõe uma metodologia de pesquisa com foco na comunicação mediada por computador e nas pesquisas aplicadas à Internet, como por exemplo, fóruns, sites de compartilhamento de vídeos, redes sociais, blogs, microblogging, wikis, dentre outros. Muitos dos materiais encontrados sobre jogos, principalmente jogos de interpretação, são compartilhados em podcasts e fóruns, onde jogadores e desenvolvedores de jogos compartilham experiências pessoais, sociais e profissionais. Estes espaços não formais também são importantes campos de pesquisa, porém necessitam de um olhar específico e ético, para que tais experiências compartilhadas sejam exploradas de forma sistemática e científica.

Dessa forma, são usados elementos da netnografia, tendo em vista que se trata de um campo delicado, onde são questionados aspectos como autoria e ética, deixando claro, por exemplo, a presença do pesquisador no ambiente virtual e também solicitando autorização para compartilhamento de informações, resguardando informações pessoais e íntimas (KOZINETS, 2014).

É interessante também, que tanto a cartografia quanto à netnografia propõem a adoção do diário de campo como coleta de dados. Para a interpretação de dados netnográficos são utilizadas técnicas de interpretação e análise de discurso mediante o referencial adotado (KOZINETS, 2014).