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3.4 Teoria da Relevância e sua aplicação à tradução e à interpretação

3.4.1 Postulados da Teoria da Relevância

A comunicação humana tem sido investigada a partir de diferentes perspectivas e vieses teóricos. Algumas dessas investigações resultaram em modelos que expressam diferentes concepções acerca de como compartilhamos nossos pensamentos, ideias, sentimentos e intenções uns com os outros, de como a comunicação humana se efetiva. Dois modelos de comunicação destacam-se: o modelo de código de Shannon e Weaver (1949) e o modelo inferencial de Grice (1975). O modelo de código entende que a comunicação se dá por meio da codificação de pensamentos em palavras e da decodificação de palavras em pensamentos, dito de outro modo, a comunicação humana seria a realização de processos de codificação e decodificação de mensagens, os quais de certa maneira demandam o conhecimento mútuo para que de fato ocorra a comunicação.

Percebendo a impossibilidade de o modelo de código dar conta de questões de ordem semântica, intrínsecas à comunicação humana, Grice propõe um modelo inferencial para explicar a comunicação humana. Tal modelo incorpora noções de contexto na compreensão de como as informações são processadas durante a comunicação humana. Nesse modelo a comunicação realiza-se por meio da produção e interpretação de evidências, dito de outro modo, pela evidência das intenções por parte do falante e pela inferência dessas intenções, a partir de sua evidência, por parte do ouvinte. Numa perspectiva pragmática, Grice, baseado no pressuposto de que para que a comunicação ocorra é necessário que os interlocutores compartilhem o mesmo objetivo, por meio de um comportamento cooperativo, propõe o princípio cooperativo e as máximas de conversação. Segundo Sperber e Wilson (1995, p.3),

36 Nesta tese, utilizamos um recorte da Teoria da Relevância de acordo com os nossos objetivos de investigação. Nesse sentido, não há uma aplicação formal, no que se refere aos detalhes da Teoria, em relação, por exemplo, à construção de explicaturas (pelo modelo usual da Teoria da Relevância) e ao processo inferencial dedutivo não demonstrativo (com a construção sistemática dos contextos e suas suposições), que resulta em implicaturas pragmáticas.

o modelo de código e o modelo inferencial são, cada um deles, adequados a diferentes modos de comunicação; por isso, elevar qualquer um deles ao status de uma teoria geral da comunicação é um equívoco. Tanto a comunicação codificada quanto a comunicação inferencial estão sujeitas a restrições gerais que se aplicam a todas as formas de processamento de informação, mas são, também, demasiadamente gerais para constituir uma teoria da comunicação.37

Alves (2001a, p.17) explica que Sperber e Wilson consideram que o modelo de código limita a compreensão do processo de comunicação humana ao considerar que o mesmo pode ser explicado através de um processamento linear que envolve a codificação e a decodificação de mensagens e que o modelo inferencial, ao propor o princípio cooperativo, restringe a comunicação humana a uma condição cooperativa, a qual é considerada como necessária e suficiente para que a comunicação ocorra. Sperber e Wilson (1995, p.12-3) destacam a diferença entre o processo de codificação e processo inferencial que integram a comunicação humana, visto que

um processo inferencial parte de um conjunto de premissas e resulta em um conjunto de conclusões que se segue logicamente ou, pelo menos, é legitimado pelas premissas. Um processo de decodificação parte de um sinal e resulta na recuperação de uma mensagem que está associada ao sinal por meio de um código subjacente. Em geral, as conclusões não estão associadas às suas premissas por um código e os sinais não legitimam as mensagens que transmitem.38

Considerando que a comunicação humana envolve tanto mecanismos de codificação quanto mecanismos inferenciais e, portanto, com base no modelo de código de Shannon e Weaver (1949) e no modelo inferencial de Grice (1975), os quais, não são tidos, por eles, como incompatíveis, Sperber e Wilson (1995) propõem que a comunicação humana seja vista a partir do amálgama desses dois modelos: o modelo de natureza ostensivo-inferencial. Para eles a comunicação ostensivo-inferencial pode ser definida da seguinte maneira “o falante produz um

37 No original: “The code model and the inferential model are each adequate to a different mode of communication; hence upgrading either to the status of a general theory of communication is a mistake. Both coded communication and inferential communication are subject to general constraints which apply to all forms of information processing, but these are too general to constitute a theory of communication either”.

38 No original: “An inferential process starts from a set of premises and results in a set of conclusions which follow logically from, or are at least warranted by, the premises. A

decoding process starts from a signal and results in the recovery of a message which is

associated to the signal by an underlying code. In general, conclusions are not associated to their premises by a code, and signals do not warrant the messages they convey”.

estímulo que torna mutuamente manifesto, a si mesmo e aos seus interlocutores, que ele pretende, por meio desse estímulo, tornar manifesto ou mais manifesto aos seus interlocutores um conjunto de suposições I”39 (SPERBER, WILSON, 1995, p. 63).

O pressuposto do modelo ostensivo-inferencial é que quem deseja comunicar/informar algo assume um comportamento ostensivo, tornando sua intenção manifesta ao seu interlocutor, o qual, por sua vez, assume um comportamento inferencial ao perceber a intenção comunicativa e, por sua vez, informativa de seu interlocutor, processando-a. Esse processo comunicativo, apoiado pela manifestação mútua e situado num ambiente cognitivo, é guiado pela busca do maior efeito cognitivo/ contextual por meio do menor esforço processual possível. No modelo ostensivo-inferencial, considera-se que

o falante tem um comportamento basicamente ostensivo, enquanto que o ouvinte apresenta um comportamento, sobretudo, inferencial. Assim, o falante tem uma intenção comunicativa de manifestar explicitamente para o ouvinte aquilo que deseja comunicar-lhe. Tem também uma intenção informativa que se torna o fator determinante para configurar seu comportamento ostensivo. O ouvinte, por sua vez, pauta-se por um comportamento inferencial que lhe permitirá o processamento da intenção informativa do falante (ALVES, 2001a, p.17-8).

Nessa perspectiva, linguístico-pragmático-cognitiva, podemos afirmar que para comunicarmos aquilo que pretendemos é necessário que o tornemos perceptível por meio de um estímulo ostensivo, tal estímulo (intenção comunicativa e informativa) visa atrair a atenção do interlocutor, levando-o a presumir que o que se comunicará é relevante o bastante para merecer atenção (SPERBER; WILSON, 1995, p.156). O que pretendemos comunicar pode tornar-se perceptível, por exemplo, através de expressões verbais, enunciados, as quais fornecem evidências da intenção comunicativa e informativa do falante, tornando possível que um interlocutor seja capaz de inferir os pensamentos do outro.

Na proposta da Teoria da Relevância (TR), “enunciados geram expectativas de

39No original: “[…] the communicator produces a stimulus which makes it mutually manifest to communicator and audience that the communicator intends, by means of this stimulus, to make manifest or more manifest to the audience a set of assumptions I”.

relevância não porque falantes obedeçam a um princípio de cooperação ou a alguma outra convenção comunicativa, mas porque a busca pela relevância é uma característica básica da cognição humana” (SPERBER; WILSON, 2005, p.223).

Assim, a compreensão do pensamento que está expresso em um enunciado – por

meio de processos cognitivo-pragmáticos e dedutivos não demonstrativos, no caso das implicaturas – é uma tarefa que se orienta em termos de relevância, visto que a interpretação de um enunciado é, basicamente, um processo cognitivo-pragmático. Assim, a TR, proposta por Sperber e Wilson (1995), parte do pressuposto de que a cognição humana orienta-se para a relevância. Nesse sentido, a cognição visa à seleção de informações potencialmente relevantes, as quais, postas em um dado contexto, gerariam efeitos cognitivos positivos40, satisfatórios, os quais “representam uma diferença vantajosa na representação de mundo do indivíduo” (SPERBER; WILSON, 2005, p.223). Nesse sentido, qualquer estímulo externo ou representação interna que oferece insumos favoráveis aos processos cognitivos pode, em alguma circunstância, ser relevante para um determinado indivíduo. Todavia um insumo é “relevante para um indivíduo quando, e somente quando, seu processamento produz tais efeitos cognitivos positivos” (SPERBER; WILSON, 2005, p.224).

Sperber e Wilson (1995) postulam que a definição de relevância – propriedade dos insumos (estímulos externos, suposições internas) para os processos cognitivos baseia-se em dois princípios gerais: o primeiro princípio, princípio cognitivo, que estabelece que a cognição humana tende a ser dirigida à maximização da relevância e o segundo princípio, princípio comunicativo (definido como o Princípio de Relevância), que define que os enunciados criam expectativas de relevância, dito de outro modo, “todo ato de comunicação ostensiva comunica a presunção de sua

própria relevância ótima”41 (SPERBER; WILSON, 1995, p. 158). Numa reformulação

40“A noção de um efeito cognitivo positivo é necessária para distinguir entre informação que meramente parece relevante e informação que realmente é relevante ao indivíduo. Nós estamos todos conscientes de que algumas de nossas crenças podem ser falsas (mesmo que não possamos dizer que elas sejam), e preferiríamos não desperdiçar nosso esforço projetando falsas conclusões. Um sistema cognitivo eficiente é aquele que tende a destacar inputs genuinamente relevantes, gerando conclusões genuinamente verdadeiras” (SPERBER; WILSON, 2005, p.223).

41 No original: “Every act of ostensive communication communicates a presumption of its own optimal relevance”.

do Princípio de Relevância, Sperber e Wilson, assim como Gutt (1998), falam de relevância adequada, visto que o estímulo ostensivo é relevante o suficiente para merecer o esforço de processamento do destinatário e é o mais relevante compatível com as habilidades e preferências do comunicador (SPERBER; WILSON, 2005, p.193).

Portanto, na perspectiva da TR, durante o processamento de informações, dadas as mesmas condições, em contextos idênticos, (1) quanto maiores são os efeitos cognitivos/contextuais positivos alcançados, maior é a relevância e (2) quanto menor é o esforço de processamento despendido, maior é a relevância. Entretanto, Sperber e Wilson, destacam que em determinadas situações, esforços de processamentos extras são compensados por maiores efeitos cognitivos. De acordo com a TR, “de modo geral, quando quantidades semelhantes de esforço são requeridas, o fator efeito é decisivo na determinação de graus de relevância, e quando quantidades semelhantes de efeito são alcançadas, o fator esforço é decisivo” (SPERBER; WILSON, 2005, p.226).

A TR baseia-se em princípios que definem que nos processos inferenciais busca-se obter o maior efeito cognitivo a partir do menor esforço possível e que nos processos comunicativos – ostensivo-inferenciais – busca-se, através do menor esforço processual possível, obter o maior efeito cognitivo (CARSTON, 2002). O efeito cognitivo/contextual dá-se quando uma determinada informação, ao ser comunicada e processada, em um contexto de suposições tornadas disponíveis, resulta numa reorganização dessas suposições: fortalecendo-as, contradizendo-as, combinando- as etc. (SPERBER; WILSON, 1995; CARSTON, 2002; RAUEN, 2008). Assim, para que uma informação nova possa ser relevante, ela deve, de alguma maneira, relacionar-se às suposições que o sujeito já possui através de processos inferenciais que demandam esforços de processamento e que resultarão em efeitos cognitivos/contextuais, ao gerar novas suposições.

Pode-se afirmar que de acordo com a TR, os processos comunicativos e inferenciais realizam-se em um dado contexto, sendo que o contexto não é algo fixo e alheio aos interlocutores nem dado a priori, ao contrário, ele seria construído através da manifestação mútua dos ambientes cognitivos dos interlocutores, visto que o

enunciado, se ostensivo, “dispara” a construção do contexto relevante. Dito de outro modo, “o contexto configura-se a partir das características do ambiente cognitivo de um determinado indivíduo e, portanto, encontra-se em constante modificação” (ALVES, 2001a, p.19). Nesse sentido, a comunicação humana não tem um fundamento meramente linguístico, mas, sobretudo, cognitivo. Na proposta da TR, “quanto maior a manifestação mútua entre os ambientes cognitivos dos interlocutores, tanto mais efeitos contextuais adequados se realizarão e mais sucesso terá a interação comunicativa” e “a produção de efeitos contextuais abundantes, ou minimamente suficientes, com o mínimo necessário de esforço cognitivo” (GONÇALVES, 2008, p.131, grifos do autor).