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Uso Interpretativo da Linguagem e Semelhança Interpretativa

3.4 Teoria da Relevância e sua aplicação à tradução e à interpretação

3.4.2 Uso Interpretativo da Linguagem e Semelhança Interpretativa

Na proposta de Sperber e Wilson (1995) encontramos, também, referência às dimensões interpretativas do uso da linguagem. Para eles a mente humana poderia atribuir dois usos para as representações mentais: o descritivo e o interpretativo, visto que uma representação mental, como qualquer representação que tenha uma forma proposicional, pode ser utilizada descritiva ou interpretativamente. O uso descritivo relacionaria representações mentais a um estado de coisas visto como real no mundo, ou a um estado de coisas desejável. E o uso interpretativo, por sua vez, relacionaria duas representações mentais com propriedades lógicas em comum. Portanto,

um enunciado é descritivamente usado quando o pensamento interpretado é, ele mesmo, considerado uma descrição verdadeira de um estado de coisas; ele é usado interpretativamente quando o pensamento interpretado é considerado uma interpretação de um pensamento posterior, quer dizer, um pensamento atribuído ou relevante (SPERBER; WILSON, 2005, p.178).

É importante considerar que as perspectivas do uso interpretativo da linguagem têm sido empregadas nos ET por Gutt (1991). Com base na concepção de que o texto traduzido/interpretado deve ser interpretativamente semelhante ao original, Gutt aplicou a TR à tradução e, numa perspectiva de uso interpretativo interlingual, cunhou o conceito de semelhança interpretativa.

Segundo Gonçalves (2005b, p.141), Gutt teria sugerido que a TR contribui significativamente com os avanços e cientificidade dos ET, visto que possibilita a superação das “limitações de várias teorias que se fundamentavam sobre os conceitos de fidelidade, equivalência ou funcionalidade”. Para Gutt (1991, 2000a), a abordagem pragmático-cognitiva da tradução pode contribuir com a melhor compreensão do fenômeno tradutório e com a explicitação de importantes aspectos do processo de tradução. Segundo ele,

se o uso interpretativo não pode servir como base de uma teoria da tradução que se propõe a transportar a mesma “mensagem”, isto é, tanto implicaturas quanto explicaturas do original, não poderia servir como um arcabouço para uma teoria geral da tradução de um tipo menos ambicioso? […] Dito de outro modo, a tradução seria um texto na língua alvo que se assemelhasse interpretativamente ao original (GUTT, 2000b, p.376). 42

Nesse sentido, considerando o uso interpretativo interlingual, Gutt (1991, 2000a) afirma que o texto traduzido deve ser interpretativamente semelhante ao original. O uso interpretativo interlingual está ligado à ideia de que existe uma relação de semelhança que pode ser estabelecida entre TF e TA, a qual se orienta pelo Princípio de Relevância. Para estabelecer tal relação, ele cunhou o conceito de semelhança interpretativa, o qual aplicamos nesta pesquisa, a exemplo das pesquisas de Alves (1995, 1996a, 1996b) e Gonçalves (1998, 2003). O princípio de semelhança interpretativa define que

uma propriedade essencial das formas proposicionais é que elas têm propriedades lógicas: em virtude dessas propriedades lógicas, podem se contradizer, implicar-se mutuamente ou estabelecer outras relações lógicas entre si. Uma vez que todas as formas proposicionais têm propriedades lógicas, duas formas proposicionais podem ter algumas propriedades lógicas em comum. Conseqüentemente, podemos dizer que as representações mentais cujas formas proposicionais compartilhem algumas propriedades lógicas assemelham-se em virtude dessas propriedades lógicas compartilhadas por elas. Esta semelhança entre formas proposicionais é chamada de semelhança interpretativa (GUTT, 1991, p.34 apud ALVES, 2001b, p.72).

42 No original: “If interpretive use cannot serve as the basis of translation theory designed to convey the same “message”, that is, both the explicatures and implicatures of the original, could it not serve as framework for a general theory of translation of a less ambitious kind? [...] In other words, a translation would be a receptor language text that interpretively resembles the original”.

O conceito de semelhança interpretativa é desenvolvido por Gutt com base na relação entre as explicaturas e as implicaturas de um dado enunciado, sendo “que dois enunciados ou, ainda mais genericamente, que dois estímulos ostensivos assemelham-se interpretativamente à medida que compartilhem suas explicaturas e/ ou implicaturas” (GUTT, 1991, p.44 apud GONÇALVES, 2005b, p.142).

A atribuição de semelhança interpretativa ocorre não somente durante o processo de tradução/interpretação, mas nos processos comunicativos como um todo. No processo de tradução/interpretação, é possível que se analise, com base no Princípio de Relevância, a busca e atribuição de semelhança interpretativa entre duas formas proposicionais, uma na LF e outra na LA, como uma maneira de se investigar as tomadas de decisão e escolhas do ILS durante a IS, visto que o intérprete se guiará em direção a tal semelhança. Para Alves (1995, p.85 apud ALVES, 2001b, p.74),

a decisão tradutória explica-se, então, não pela busca de equivalentes funcionais ou pela definição de objetivos hierárquicos, mas sim pela noção de semelhança interpretativa. Partindo do princípio de que as diferentes unidades de um dado texto de partida são representações mentais que se dividem em representações semânticas e formas proposicionais, o processo tradutório é caracterizado como a busca mental de uma semelhança interpretativa para uma dada representação semântica através de duas formas proposicionais - uma na língua de chegada e outra na língua de partida. Essas duas formas proposicionais dividem entre si uma semelhança interpretativa. A decisão tradutória ocorre quando o tradutor, dentro de suas características individuais de proficiência lingüística e experiência profissional, 'toma a decisão' de ter encontrado, não no nível da funcionalidade ou de objetivos hierárquicos, mas em um nível mais profundo, a semelhança interpretativa entre duas formas proposicionais oriundas de uma mesma representação semântica.

À luz do exposto acima, pode-se afirmar que a TR mostra-se como uma produtiva teoria para a explicação dos fenômenos cognitivos envolvidos na linguagem e, consequentemente, na tradução/interpretação. É, portanto, fundamental à investigação de processos inferenciais envolvidos na IS. Para a investigação desses processos, consideramos fundamentais os conceitos de codificação conceitual e procedimental e o de explicatura e implicatura.