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31 Tudo isto sem prejuízo das considerações que se podem fazer a propósito do conceito de alienação, dando conta de um mundo que é progressivamente mais estranho para o homem e o homem que se sente um estranho entre os

vive segundo valores que contrariam os valores que publicamente defende. O conhecido dito,

vícios privados, públicas virtudes, pretende dar conta, precisamente, dessa incongruência

que pode existir entre o que publicamente se anuncia e o que em privado se faz. Ora essa contradição é, muitas vezes, uma contradição também entre valores, entre os valores que publicamente preroramos e aqueles que efetivamente defendemos.

Por exemplo, se eu considerar que a igualdade entre sexos for um valor importate, então não posso sentar-me no sofá a seguir ao jantar a fumar um charuto e a beber uma aguardente velha, enquanto vejo futebol na televisão e a minha mulher levanta a mesa e lava e arruma a loiça do jantar. [incompleto]

§34.

O percurso da ação aos valores

Todas as vezes que eu realizo uma ação, realizo determinadas opções, concretizo as minhas preferências. Quando pratico uma ação, opto por seguir um determinado caminho e rejeito aqueles que não sigo. Porque sou livre, quando realizo uma ação eu sei que podia sempre ter agido de outra maneira. Por exemplo, depois de estudar, eu sei que podia ter estudado mais ou estudado menos, que podia ter estudado ou ter feito outra coisa diferente. Aquilo que fiz ou deixei de fazer foi resultado da avaliação e ponderação que fiz em relação aos valores e alternativas em presença. Porque o sujeito é livre, todas as ações que eu levo por diante representam uma escolha e poderiam ter ocorrido de outra maneira. Quando agi, fiz uma opção, concretizei a minha liberdade. Todos os dias, de manhã, levanto-me da cama. Decidir levantar-me da cama, foi essa a minha escolha. Mesmo sentindo sobre mim o dever e a obrigação de me levantar, fui eu, enquanto sujeito livre, que aceitei obedecer ao dever e seguir as minhas obrigações profissionais e as minhas obrigações sociais. Ao escolher levantar- me, rejeitei a opção de ficar a dormir. Assim, qualquer ação é simultaneamente uma escolha e uma rejeição. Ora, porque é que decidi levantar-me, ir trabalhar e enfrentar hordas de bárbaros adolescentes, em vez de ficar a dormir e descansar mais um pouco? Porque entre aquelas duas opções, eu preferi ir trabalhar; naquele momento, pelo menos, dei mais valor ao trabalho que ao descanso – foi essa a minha preferência e que está de acordo com os valores da própria sociedade burguesa e do espírito do capitalismo. Ou, então, acabei por dar mais valor ao próprio cumprimento dum dever do que à “satisfação de não cumprir um dever” (Fernando Pessoa). Ao agir duma determinada maneira eu estou a optar pelo que valorizo mais, estou a dar mais valor e importância à alternativa seguida que à alternativa rejeitada (Claro que não temos aqui em conta o peso que pode ter o desejo de evitar consequências negativas quando, por exemplo, ao comentar a escolha feita, afirmo que ‘do mal o menos’). Em todas as ações que realizo, eu faço uma escolha entre valores diferentes. Em qualquer ação existe, consciente ou inconscientemente, uma eleição entre valores algumas vezes opostos entre si; quando tomo uma decisão eu acabei de eleger o valor que naquele momento, face ao que está em jogo, é para mim o mais fundamental. Eu ajo em função dos

valores que escolho e, escolhendo, aplico a minha tábua de valores. Enquanto médico, se pratico ou não a eutanásia, isso significa que me movimento entre dar valor à autonomia do doente e à qualidade de vida ou dar valor à quantidade de vida que se prolongaria a todo o custo (obstinação terapêutica). Se eu respeito o pedido do doente para morrer, isso quer dizer que eu dou mais valor à autonomia do doente que à manutenção da vida sem ter em conta a qualidade de vida que ele, o doente, ainda possui. Eu atuo segundo os valores que elejo. Imaginemos a situação dum médico que necessita, para salvar um doente menor, de proceder a uma transfusão de sangue; entretanto, os pais recusam a transfusão sanguínea por razões religiosas. Os valores que estão aqui em confronto são, pelo menos, dum lado o direito à vida e, do outro, o direito à livre manifestação da sua escolha religiosa, ou liberdade de culto. Não só estão estes valores em confronto, como estão em confronto diferentes tábuas de valores: para o médico a vida será o valor mais importante, enquanto que para os pais do rapaz, a liberdade religiosa sobrepõe-se ao direito à vida. O seu comportamento, o que devem fazer a seguir, como reagir perante situações-limite como esta é algo que resulta da ponderação dos valores em presença. Qualquer decisão para agir surgirá guiada, justificada e legitimada por uma opção de natureza axiológica, isto é, da ordem dos valores. Quer dizer, então, que os valores guiam a minha ação, funcionam como uma espécie de farol, indicando- me o caminho a seguir. Os valores são, desta maneira, um critério e uma justificação para a ação que os concretiza. Os valores surgem como um referencial para a minha ação, uma espécie de luz que ilumina e conduz a minha existência e as minhas ações num certo sentido. Em todas as ações estão presentes um ou mais valores, porque todo o sujeito possui a sua escala de valores que, normalmente, é a escala de valores do grupo social a que pertence, numa determinada época histórica. As decisões, mesmo coletivas ou com um sentido marcadamente social, não escondem nem apagam o individual contributo que existe em cada decisão coletiva. A liberdade é um resíduo que nunca se pode apagar em qualquer circunstância.

Vejamos ainda outro exemplo, outra situação. Se eu faço greve ou não faço greve, isso dependerá de vários fatores entre os quais a minha tábua de valores. Se o valor solidariedade for muito importante e pesar muito nas minhas decisões então, eventualmente, eu irei fazer greve, manifestando a minha solidariedade para com os meus companheiros. Pelo contrário, se o individualismo se sobrepuser aos outros valores então vou-me marimbar para a solidariedade, trato da minha vidinha e vou trabalhar para não me descontarem no vencimento. Portanto, os meus valores ajudam a perceber as minhas decisões e a minha maneira de agir, como também explicam as posições que vou assumindo. Em cada ação do homem é possível identificar os valores que aí estão presentes. No limite, se eu conhecer a escala de valores dum indivíduo, conseguirei antecipar as suas decisões e as suas escolhas. Veja-se a importância que esse conhecimento terá para quem é responsável pelo marketing e pela publicidade dum produto; ou para quem se quer candidatar a um cargo político e preparar o seu discurso em função dos valores do auditório.

§35.

Não há ações gratuitas, isto é, sem a presença dos valores

O homem não é indiferente em relação ao que o rodeia, quer sejam acontecimentos, coisas ou pessoas. Em relação a tudo isso, o homem tem uma posição e pode tomar partido. Tomar partido significa posicionar-se perante a realidade com a sua escala de valores. Cada um avalia a realidade a partir da sua tábua de valores e é também a partuir dessa tábua de valores que ele age. Os valores funcionam como uma espécie de farol porque indicam ou iluminam um caminho a seguir. Entre os vários fatores que determinam a minha ação, os valores são um deles.

Não há ações gratuitas, na medida em que todas as ações são movidas por um qualquer interesse, que não tem que ser necessariamente um interesse material ou um interesse consciente. Agir com interesse não significa ser interesseiro, mas apenas que eu atuo sempre com determinados objetivos, em função de determinados valores que eu persigo e quero ver concretizados. Sempre que ajo, ajo em função de qualquer coisa, de qualquer objetivo que pretendo alcançar. Mesmo que agisse por agir, agisse sem ter nada em vista, seria possível descobrir uma intenção mais profunda e oculta.

Não há ações gratuitas, no sentido em que todas as ações têm um objetivo a alcançar, têm um determinado motivo que as dinamiza. Nunca o sujeito age por agir, nunca age sem intenção. Por mais ocultos que estejam, por poderem ser censuráveis do ponto de vista individual ou social, existem sempre objetivos na ação. Contudo, existem vários tipos de fins para a ação: eu posso agir tendo em vista objetivos exclusivamente espirituais, (a fruição estética que resulta da contemplação dum quadro ou da audição duma peça musical) ou posso também agir tendo em vista objetivos materiais, isto é, pretendendo obter vantagens materiais, que enriquecerão o meu património. O filantropo (o benemérito) pratica o bem e poderia pensar-se que age desinteressadamente, sem interesse algum visível. Mas também se pode dizer que ele não faz o bem para obter vantagens materiais, mas pode ter objetivos inconfessados: sentir-se bem consigo mesmo ou obter o reconhecimento da comunidade onde vive32, sem, no entanto, deixar de ser benemérito por essa razão. Assim, a sua ação

benemérita não é totalmente gratuita. A aparente gratuitidade da ação esconderia, afinal, objetivos que concorrem para benefício do próprio sujeito. Já o indivíduo interesseiro seria aquele que apenas age se, antecipadamente, lhe garantirem determinadas vantagens. O indivíduo interesseiro apenas age com a certeza e a segurança da obtenção dos resultados pretendidos. Noutras situações, o sujeito age em função de motivos inconscientes, que ele próprio desconhece ou não reconhece imediatamente. Trata-se de motivos ou finalidades sobre as quais recaia um juízo de censura social que impede o sujeito de os assumir aberta e publicamente. Para Freud33 e para a psicanálise, existem objetivos e finalidades inconscientes

32 De qualquer modo, estará ainda assim, muito longe daquele que, num determinado momento distribui

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