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Filosofia 10 - Sumários Desenvolvidos-2016 e 2017

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Filosofia – 10º ano

Sumários desenvolvidos

Ano letivo de 2011/2012

Alterado e aumentado em 2016 e 2017

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FILOSOFIA – 10º ano

Programa / Conteúdos

- Abordagem introdutória à Filosofia e ao filosofar

- A ação humana: análise e compreensão do agir

- Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa

- Dimensões da ação humana e dos valores: a Ética e a Política

- Dimensões da ação humana e dos valores: a Estética

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Índice

Capítulo 1 - O que é a Filosofia? O que é filosofar? §1. A definição de Filosofia

§1. –A. Somos todos filósofos? §1 – B. O valor da Filosofia

§2. O que nos diz a etimologia da palavra ‘filosofia’

§3. – A. Do mito aos primeiros filósofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de

descrição e explicação quase racional do real

§3. A Filosofia é filha da polis

§4. O filósofo, distraído ou preocupado?

§5. A alegoria da caverna de Platão e a atitude filosófica §5. A - Características da atitude filosófica

§6. Historicidade §7. Radicalidade §7-A. Universalidade

§8. Autonomia em relação à ciência e à religião §9. O carácter discursivo do trabalho filosófico §10. Filosofar é argumentar

§11. Áreas e temas abrangidos pela Filosofia

Capítulo 2 - O homem construindo-se através da ação §12-A. O que é a ação

§12. O que leva o homem a agir

§13. Sentidos usados na linguagem quotidiana que não deverão ser considerados neste âmbito §14. A ação humana constitui uma intervenção planeada e pensada

§14-A. Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ação da reação §15. A consciência e a vontade são elementos que caracterizam necessariamente a ação

humana

§16. A importância da presença dos elementos consciência e vontade no agir do homem §17. Movimento / acontecimento e ação

§18. A rede conceptual da ação: ação intencionada e ação causada §19. Perspetiva determinista e perspetiva baseada na ação intencionada

§20. Combinando causas e intenções; o homem é simultaneamente livre e determinado §21. Ações voluntárias, atos involuntários e reflexos

§22. O agente da ação e a relação causal

§23. O estabelecimento de um motivo responde ao porquê e explica e legitima a ação §24. Intenção e motivo

§25. O trabalho humano e a atividade dos animais

§26. O trabalho enquanto forma particular de ação. Trabalho e projeto §27. Ação livre e responsabilidade

§28. A culpa

§29. Algumas notas sobre o existencialismo: o homem está condenado a ser livre §30. Classificação das várias condicionantes da ação humana

§31. O que é o determinismo. Diversos tipos de determinismo §31 – A. A crença no destino como forma de determinismo §32. Consciência, vontade e responsabilidade

Capítulo 3 - O mundo não é indiferente ao homem: os valores §33-A. A cultura ocidental e os valores

§33. O que são os valores

§33-B. Os valores e a vida de cada um §34. O percurso da ação aos valores

§35. Não há ações gratuitas, isto é, sem a presença dos valores §36. Características dos valores

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§36-B. Conflitos sociais e conflitos de valores §36-C. Valores contemporâneos e «crise de valores»

Capítulo 4 - A experiência ética e política da vida e do mundo §37. Os valores morais e o relativismo cultural

§38. Relativismo moral e relativismo cultural e tolerância §39. A dimensão da ética e da moral

§39 – A. Distinguir ética e moral §39 – B. Distinguir moral e religião §40. Intenção e norma

§41. Distinção conceptual entre moral e ética – quadro-resumo §42. Dimensão pessoal e social – o si mesmo, o outro e as instituições §42 – A. A construção da pessoa na sua relação com os outros

§43. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva deontológica de Kant §43 - A. Alguns paradoxos com a teoria deontológica

§44. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva consequencialista de

Stuart Mill

§44 – A. Confronto entre as teorias deontológicas e as teorias consequencialistas §45. A relação entre a ética, o direito e a política

§46. O Estado enquanto problema da filosofia política §47. O homem e o Estado: a perspetiva clássica: Aristóteles

§48. O homem e o Estado: a perspetiva contratualista moderna: John Locke §48 – A. Do estado de natureza à natureza do Estado

§49. A teoria da justiça de John Rawls

§49 – A. Conflito e cooperação nas sociedades contemporâneas; a relação entre a liberdade e

a igualdade

§49 – B. Rawls critica o utilitarismo

§49 – C. A escolha racional dos princípios da justiça §49 – D. Crítica às teorias de Rawls

Capítulo 5 - A experiência estética da vida e do mundo §50. A experiência estética

§50 – A. Quando um acontecimento se torna numa experiência para o sujeito §50 – B. Caraterização da experiência estética

§50 – C. Atitude e sensibilidade estéticas

§50 – D. Objetivismo e subjetivismo na experiência estética §50 – E. Teorias acerca da natureza da Arte e da obra de arte

Nota

Estes sumários desenvolvidos constituem um determinado momento no nosso trabalho que passa também pela nossa investigação e reflexão e pelo diálogo mais ou menos frutuoso com os alunos. Enquanto representam um momento desse trabalho, estarão sempre sujeitos a serem revistos e substituídos por outros textos considerados mais ajustados ao fim em vista. Trata-se de um texto em permanente reelaboração e reconstrução, mas não é esse o destino de qualquer texto de cariz ensaístico?1

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Capítulo 1 - O que é a Filosofia? O que é filosofar?

§1.

A definição da Filosofia

O início da aventura filosófica é sempre marcado por uma pergunta fatal: o que é a

Filosofia? Ninguém gosta de embarcar numa viagem sem saber para onde vai, sem saber o que

vai encontrar. De qualquer modo, perguntar sobre o que é a Filosofia sempre é uma questão mais interessante que perguntar, como também acontece habitualmente, sobre para que é

que serve a Filosofia. Há, de facto, quem faça essa pergunta sobre a utilidade da Filosofia,

mas com a ideia preconcebida de que a Filosofia não lhe servirá para nada. Ora, quando soubermos o que é a Filosofia, também chegaremos à resposta sobre a sua utilidade. O que não podemos fazer é condicionar a pergunta sobre o que é à pergunta para que é que serve. O problema da utilidade da Filosofia não se situa no mesmo plano que perguntar pela utilidade dum chapéu-de-chuva ou duma estrada. Ninguém tem dúvidas sobre a utilidade dum chapéu-de-chuva, porque todos estão seguros sobre o que é um chapéu-de-chuva. Porém, sobre a Filosofia, não estamos todos de acordo sobre o que seja. Nesse sentido, a questão sobre a sua utilidade sai prejudicada. É inútil tentar saber se a Filosofia é útil. Quando muito, é útil partir do princípio que a Filosofia pode ser inútil. Mas isso são contas para se fazerem mais à frente.

Há quem considere que o primeiro problema da Filosofia é a questão da definição de Filosofia. E o problema adensa-se porque não existe uma resposta única a esta questão, como também poderíamos dizer que esta questão não tem sentido no caso da Filosofia. Saber o que é a Filosofia é um dos seus primeiros problemas. Existem várias respostas a esta questão, respostas que têm variado de filósofo para filósofo, de época para época. De tal maneira que seria mais rigoroso falar de Filosofias do que de Filosofia. Perguntar sobre o que é a Filosofia deixa, assim, de ter sentido e alcance, porque a Filosofia como realidade única e singular não existe. Existem Filosofias, no plural, e, por isso, àquela pergunta iremos receber uma pluralidade de respostas.

Contudo, apesar dessa variação e variedade em torno da resposta à pergunta sobre o

que é a Filosofia, variação e variedade que também existe acerca do valor da Filosofia,

podemos avançar com algumas ideias muito gerais sobre o que possa ser a Filosofia, sendo certo que cada um irá construindo a sua visão pessoal do que é a Filosofia.

A Filosofia é, antes de mais, uma reflexão sobre o homem na sua universalidade, mesmo que partindo duma situação concreta e particular em que sempre se encontra. A reflexão filosófica eleva a situação concreta e particular vivida ao nível da condição humana pensada, o Homem universal enquanto apropriado pelo pensamento que o reflete. Assim, poderíamos dizer, em primeiro lugar, que a Filosofia constitui-se como uma reflexão racional e crítica sobre os problemas fundamentais da condição humana considerada em si mesma e do homem face aos seus semelhantes e à realidade. Trata-se de uma definição que é proposta neste momento, suficientemente vaga e provisória, para que cada um a vá enriquecendo ao

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longo deste caminho. É que, por outro lado, como dizia o poeta espanhol António Machado,

não existem caminhos, fazem-se a caminhar.

Tentemos, num primeiro momento, aproximarmo-nos dos elementos que constituem aquela primeira tentativa de definição.

Para já, a Filosofia surge como uma reflexão; uma reflexão enquanto atividade racional e crítica. Trata-se, então, de uma atividade da razão, das nossas faculdades racionais exigindo uma postura crítica. Como veremos mais adiante, faz parte da atitude filosófica o não aceitar passivamente (acriticamente) tudo o que observa e lhe é comunicado. Por outro lado, essa reflexão incide sobre problemas. Que problemas? Aqueles que dizem respeito à condição humana, às condições através das quais o Homem assegura a sua existência; e isto, na medida em que essas condições têm a ver com a sua relação com os outros e com o meio que o rodeia, implica a Sociedade e a Natureza. Mas, vejamos, como exemplo, um desses problemas ditos fundamentais.

Todos nós já passámos pela experiência da morte de alguém próximo, um familiar ou um amigo. Esse momento traumático atingiu-nos, certamente, de uma forma profunda. Nessa ocasião chorámos, com lágrimas ou sem elas, essa perda definitiva. Doeu-nos, a uns mais do que a outros, o facto de nunca mais podermos contar com o convívio dessa pessoa junto de nós. A morte foi experimentada de diversas formas, mas apesar dessa diversidade, ela constituiu para todos um momento de profunda tristeza, vivida solitariamente ou partilhada com os outros. Como também foi ocasião de pensarmos, de forma mais profunda e sem paralelo com o que pensamos no dia-a-dia, sobre o que aconteceu e sobre a natureza da morte e o sentido da vida. De certeza, que pensámos e nos interrogámos sobre a morte enquanto fim, nomeadamente, interrogámo-nos sobre se a morte representa um fim absoluto ou apenas uma passagem para outra fase que ainda desconhecemos. Eventualmente, também nos interrogámos sobre o sentido da nossa vida, a razão de ser de tudo o que fazemos, porque confrontados com a fragilidade da vida. Possivelmente, mais desesperados, chegámos a pôr em causa o que fazemos e o que somos. No meio de todas as questões que colocámos nesse momento de dor, o que pretendíamos era obter algumas respostas que minorassem o nosso sofrimento. Sabemos que alguns de nós encontram essas respostas nas religiões e, dessa maneira, atenuam a sua experiência dolorosa; outros podem refugiar-se em caminhos menos recomendáveis; mas outros não aceitam esse tipo de respostas e procuram um entendimento mais racional sobre essas matérias. As reflexões, eventualmente desordenadas que nesse momento produzimos aproximam-se da Filosofia, tal como a vimos aqui entendendo. Nesse sentido, podemos até dizer que todos nós somos filósofos.

§1. –A. Somos todos filósofos?

Com efeito, há quem assim pense.

“Creio que todos os seres humanos são filósofos, ainda que alguns mais que outros. Todo o homem desenvolve determinados pontos de vista filosóficos - ainda que

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geralmente acríticos -, filosofias boas ou menos boas. As expetativas, o que a vida deve oferecer, o que se pode alcançar na vida são, no fundo, pontos de vista filosóficos perante a vida. (…)

Compete ao filósofo profissional investigar criticamente as coisas que muitos outros têm na conta de óbvias, pois muitos dos pontos de vista, não passam de preconceitos que são aceites acriticamente (…). E para denunciar isso, é necessário, talvez, alguém como um filósofo profissional, que dedica todo o seu tempo à reflexão crítica.” (Karl Popper, Sociedade aberta, Universo aberto, Lisboa, Publicações Dom

Quixote)

§1 – B.

O valor da Filosofia

Para que nos serve a Filosofia? O que é vale a Filosofia? Será que nos ajuda a explicar porque é não somos mais felizes ou porque é que existem tantas mulheres e homens e crianças, em muitas zonas do globo, que passam fome e sofrem a violência da guerra? Será que podemos compreender melhor com a Filosofia por que razão é negado um futuro digno a tantos seres perfeitamente iguais a nós? A Filosofia, aparentemente, formula mais questões que respostas e muitas das questões que adianta acabam por ficar sem uma resposta definitiva. Ora, torna-se legítimo e compreensível perguntar, então, o que é que serve uma disciplina com essas caraterísticas.

Perguntar, levantar questões, mesmo sem obter uma resposta imediata, exprime uma atitude positiva e valiosa. Desde que nascemos que nos dão respostas quase pré-fabricadas e desde essa tenra idade que vamos construindo uma visão do mundo assente no que os nossos pais e os nossos professores nos dizem. Vamos vivendo e resolvendo os mais variados problemas recorrendo a esse repertório de respostas e regras. Durante muitos anos, o mundo está mais ou menos composto com base nesse manancial de respostas. Tudo vai correndo em harmonia e sem angústias de maior. A nossa maneira habitual de pensar (e responder) vai-se consolidando na nossa maneira de ser. Tudo isso é muito natural e não se vê razão porque é que há-de ser posto em causa tudo o que nos foi ensinado e que constituiu uma espécie de concha onde nos abrigávamos quando as tempestades nos ameaçavam. Essa muralha protetora punha-nos a salvo de todos os perigos. De todos?... Bem, de todos talvez não, e os perigos mais ameaçadores não nos surgiram sob essa forma.

O valor da Filosofia não deve ser procurado nas respostas que nos dá. A começar, porque não abundam as repostas na Filosofia. E depois, as respostas que a Filosofia nos dá, não põem cobro a novas perguntas. Então, talvez seja de aceitar o que Bertrand Russel nos diz sobre o valor da Filosofia:

“O valor da Filosofia, em grande parte, deve ser buscado na sua mesma incerteza. Quem não tem umas tintas de Filosofia é homem que caminha pela vida fora sempre agrilhoado a preconceitos que derivaram do senso comum, das crenças habituais do

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seu tempo e do seu país, das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada.”2

§2.

O que nos diz a etimologia da palavra Filosofia

Uma das maneiras de esclarecermos o significado duma palavra ou dum conceito é compreendermos a origem e evolução dessa palavra. A etimologia da palavra Filosofia diz-nos que Filosofia significa, originalmente, amor da sabedoria (filos + sofia). Repare-se que não se diz que tipo de sabedoria é, nem que a Filosofia consiste na posse do saber. O que a etimologia nos diz é que a Filosofia é, sobretudo, amor ou amizade pelo saber3, movimento

ou trânsito para o saber, caminhar na direção do saber e não propriamente um instalar-se no seio do próprio saber, isto é, possuir o saber. O amor pela sabedoria não exprime posse da sabedoria, nem faz disso um requisito para o saber; o amor da sabedoria exprime, antes, uma relação com o saber, um cuidado ou uma atenção em relação ao saber. Sublinha-se, deste modo, o caminho ou o processo, a aventura em direção ao saber, e não tanto o resultado ou ponto de chegada. E não será a desmesurada ânsia por chegar a qualquer lado uma forma de nos desinteressarmos ou não estarmos atentos às maravilhas do caminho? Se ao empreendermos uma viagem estivermos obcecados pelo ponto de chegada, pelo destino, não

teremos olhos para as paisagens que acompanharão a viagem, para a viagem em si mesma4. A

Filosofia convida-nos para uma viagem. Sem grandes certezas sobre até onde essa caminhada nos poderá levar, a Filosofia chama-nos a atenção para saborearmos o caminhar, as sensações que estão associadas ao facto de estarmos em movimento. Em muitas das saborosas viagens que fizemos durante a nossa vida desconhecíamos o lugar para onde nos dirigíamos. Possivelmente até estávamos a fazer essa viagem para conhecer o sítio. Ora, toda a excitação que estaria associada à viagem só pode ter a ver com o ato de viajar, com o deixar de estar imóvel, com o mudar de sítio, de ares, de posição.

Portanto, filósofo é aquele que ama a sabedoria, que mantém com a sabedoria essa relação intensa e de proximidade, própria de alguém que, insatisfeito, constantemente vai reatando (atando de novo) essa ligação com o saber. O que melhor reconhece o filósofo não é o conteúdo do seu saber, mas a sua disposição perante o saber, a vontade e a paixão pelo saber. Por isso, afirma um autor que “um filósofo não se reconhece pela sua erudição, mas pelo seu estado de espírito, pela sua atitude face à existência, face à realidade”5.

2 Bertrand Russell, Os problemas da Filosofia

3

O amor ou amizade deve ser entendido no contexto da cultura grega antiga.

4 Vale a pena, a este propósito, ler o poema Ítaca de Constantin Cavafy. Estabelecendo um paralelo entre a Ítaca e a

Filosofia, poderemos dizer que, se no fim da viagem, achares pobre a Filosofia, deverás contudo compreender que foi graças à Filosofia que te puseste a caminho e assim adquiriste as riquezas que foste encontrando e comerciando nos portos que visitaste. A pobre Filosofia ter-te-á dado a maior riqueza: a viagem com tudo o que vai acontecendo no caminho e que só poderemos fruir se não partirmos com ideias preconcebidas sobre o que iremos encontrar.

5 Bruno Giuliani, O Amor da Sabedoria – iniciação à Filosofia, Lisboa, Instituto Piaget, 2002, p. 15. Para concluir

depois que a Filosofia é “uma aventura espiritual” (ibid.).

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“A palavra grega filósofo (philosophus) é formada por contraposição a sophos, e designa o que ama o saber, por oposição ao possuidor de conhecimentos, designado por sábio. Este sentido da palavra manteve-se até hoje: é a demanda da verdade, e não a sua posse, que constitui a essência da Filosofia, muito embora ela tenha sido frequentemente traída pelo dogmatismo, isto é, por um saber expresso em dogmas definitivos, perfeitos e doutrinais. Filosofar significa estar a caminho.” (Karl Jaspers,

Iniciação Filosófica, Guimarães Editora)

§3 – A.

Do mito aos primeiros filósofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de descrição e explicação quase racional do real

Todos nós já passámos pela ocasião fascinante de, numa noite límpida de luar, admirarmos o céu estrelado e nos interrogarmos sobre a possibilidade de existência de outros mundo como o nosso, de sistemas solares semelhantes ao nosso, de planetas como o nosso, com iguais condições propícias à vida humana. De certeza que nos interrogámos sobre a existência de outros seres idênticos a nós; e de como poderia naquele preciso momento existir outro ser humano a milhões de quilómetros, contemplando a nossa galáxia, admitindo que estivesse outro ser semelhante com o mesmo tipo de interrogações. O mundo sempre foi fonte de curiosidade e inquietação e ai daquele que não consegue sentir esse estremecimento que naturalmente ressoa em nós quando contemplamos o mundo à nossa volta, visível e invisível. Olhando à sua volta, são muitas as perguntas que surgem no espírito do homem. Uma dessas perguntas prende-se com a origem e funcionamento da realidade.

Desde muito cedo que o homem se interrogou sobre como tudo teria começado. Observando a realidade, as coisas vivas que nascem e morrem, desde logo conclui que tudo tem um início, que as coisas evoluem, vão ganhando novas formas. Também deverá ter sido assim com o meio envolvente. Por isso, desde muito cedo que os homens procuraram explicar a realidade, fornecer um sentido aos múltiplos acontecimentos que ocorriam à sua volta. O nascimento das plantas e o surgimento dos frutos, o nascimento e a morte, a sucessão do dia e da noite, os astros celestes e o seu movimento, os rios e os mares. Desde muito cedo que existia toda uma série de eventos e seres que despertaram a curiosidade do homem e que o levaram a tentar formular hipóteses de resposta. As condições rudimentares dessas primeiras tentativas de resposta, conduziram os homens a fazer intervir nesses ensaios explicativos seres fabulosos, dotados de capacidades extraordinárias e mágicas. Nas primeiras explicações do mundo, os homens recorrem aos feitos fabulosos dos deuses e aos atos criadores dos heróis, de figuras sobre-humanas, dotadas de poderes sobre-humanos. As primeiras explicações que o homem formulou não eram explicações de natureza racional, mas antes mágica, pois eram forças mágicas e fantásticas que explicavam os acontecimentos. Os mitos eram, precisamente, narrativas em que se tentava explicar a origem quer do mundo (mitos cosmogónicos, de cosmogonia, isto é cosmos (ordem) + gonia, génese (nascimento)), quer de

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outras formas particulares de existência, mas de importância vital para a comunidade, como por exemplo, a origem do homem, duma aldeia, dum rio, duma montanha, da chuva. Essas tentativas de descrição e explicação têm de particular a intervenção de seres fabulosos. As explicações rudimentares que o homem conseguia formular estavam longe de constituir explicações racionais e muito menos possuíam a aparência de científicas. O pensamento mágico dos primeiros homens possuía a sua lógica, mas não era ainda uma lógica racional. No caso dos mitos cosmogónicos, o que aí se tentava descrever e explicar era a origem do mundo que, em muitos casos, era o resultado duma luta primordial entre as forças do mal e as forças do bem, entre o caos e cosmos, a desordem e a ordem. A descrição da origem do mundo que é feita no Livro do Génesis do Velho Testamento é um bom exemplo dum mito cosmogónico.

Essas explicações fantásticas eram perfeitamente assumidas e vividas, na medida em que descreviam a vitória da ordem, isto é, do cosmos. E o mundo, o cosmos, estava ali para demonstrar a vitória dos deuses e de um mundo ordenado e harmonioso. Qualquer ameaça a essa ordem, qualquer acontecimento que viesse destruir essa ordem, representavam um perigo para a segurança da existência humana. Era necessário, então, restaurar a ordem, o que se conseguia através da ritualização dos acontecimentos descritos no mito. Além disso, a Grécia é constituída por um território extremamente montanhoso. Por todo o lado encontramos esse terreno assaz acidentado, que não dá descanso aos homens, obrigados a todo o momento a terem que trepar em ziguezague, por carreiros estreitos. A montanha divide e obriga os homens a instalarem-se em locais que achassem favoráveis, entalados entre a escarpa e o mar, mas que dificilmente comunicavam com os outros lugares povoados. Esta disposição acidentada do território favorece o estabelecimento de cidades independentes, suficientemente perto e prudentemente distantes do mar6.

§3.

A Filosofia é filha da polis

A Filosofia, segundo a generalidade dos autores e pensando no mundo ocidental, nasceu na Grécia Antiga por volta dos séculos VII – VI a.C.. Ora, isto deve-nos colocar a seguinte questão: porquê na Grécia e não noutro lugar da Europa? O que há assim de especial com a Grécia daquele tempo que fez com que nesse sítio, num determinado momento, se começasse a produzir uma reflexão que consideramos ser a origem da Filosofia, quando não já a própria Filosofia?

Vários fatores contribuíram para isso, desde condições políticas e culturais, até fatores geográficos. O extraordinário florescimento cultural que ocorreu durante a época que corresponde àquilo que ficou conhecido como o ‘milagre grego’, o extraordinário desenvolvimento da literatura, da cultura e arquitetura e do teatro, o fim da guerra com os Persas instituindo um duradouro período de paz social e o desenvolvimento da democracia, regime político que, apesar das suas limitações, favorece a expressão e a troca de ideias.

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A situação geográfica da Grécia também favoreceu o desenvolvimento da Filosofia. E aqui devemos salientar dois aspetos: a montanha e o mar.

A Grécia é constituída por um território extremamente montanhoso. Por todo o lado encontramos esse terreno assaz acidentado, que não dá descanso aos homens que se vêm obrigados a todo o momento a terem que trepar em ziguezague por carreiros estreitos. A montanha divide e obriga os homens a instalarem-se em locais que achassem favoráveis, entalados entre a montanha e o mar, mas que dificilmente comunicavam com outros lugares povoados. Esta disposição orográfica acidentada irá favorecer o estabelecimento de cidades independentes, suficientemente perto e prudentemente distantes do mar7.

Se o Mediterrâneo era o ‘umbigo’ do mundo, a Grécia, ou o Mar Egeu, ocupava um lugar central nesse mesmo umbigo, situando-se no cruzamento de rotas comerciais oriundas do norte de África, Próximo Oriente e Península Ibérica, ligando três continentes. O grego esteve pois, desde sempre, em contacto com outras comunidades, outras culturas, outras ideias. O comércio das coisas também significou o comércio das ideias. O contacto com outros povos e outros costumes tornou-o mais aberto para a diferença e mais flexível em relação àqueles que eram diferentes e pensavam de modo diferente, com os seus hábitos e costumes próprios. Este contacto com a diferença também deve ter espicaçado a sua curiosidade e a sua vontade de refletir sobre esse mundo novo.

O mar está presente por todo o território grego. A extensíssima linha de costa faz com que nenhum ponto do interior do território grego esteja a mais de cem quilómetros do mar! Por outro lado, uma extensa linha de costa, um território completamente exposto ao mar e virado para fora, onde o homem era, por natureza, um ser dado à comunicação, iluminado por uma luz solar que favorecia o desenvolvimento da racionalidade, tudo estes fatores geográficos e climáticos também favoreceram o eclodir dum pensar curioso, crítico e racional8. Todos nós, uma vez ou outra, devemos ter sentido esse apelo do mar para a

reflexão. Diante do mar, contemplando o movimento das suas ondas, essa eterna impermanência e diferenciação constante que é ao mesmo tempo identidade e diferença, uma continuidade diferenciante, uma identidade que se mantém através da sua presença simultaneamente diferente e igual, é impossível que o Grego se mantivesse indiferente e não sentisse o aguilhão da curiosidade e o impulso para pensar. Diante da extensa linha do horizonte, contemplando o mar e essa longínqua linha, cujo espaço para lá dessa linha interpela o homem curioso, somos levados a pensar no que está e existe para lá do que é visível.

Essa presença do mar e o seu apelo fazem do mar um elemento muito marcante da cultura grega. Daí a conclusão fundamental de que “o mar civilizou os Gregos”9.

7

Cf. André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Parténon, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, pp. 23-24

8 Para alguns autores, o surgimento duma cultura predominantemente ligada à escrita também é determinante para

o eclodir do pensamento racional filosófico. As culturas marcadas pela predominância da oralidade, não conseguem estabelecer uma distância suficiente entre o texto e as condições da sua enunciação, estando assim demasiado marcado afetivamente pelas circunstâncias que rodearam a sua enunciação. Cf. a este propósito, Pierre LÉVY, As

tecnologias da inteligência, Lisboa, Instituto Piaget, pp. 118-119.

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Finalmente, a polis, a cidade, verdadeiro espaço emancipador, criou e alargou os espaços públicos de discussão e deliberação democráticos, onde se refletia sobre a essência do homem e da comunidade, os seus problemas, o seu futuro e o que, nesse sentido, se devia fazer, determinando o surgimento duma nova atitude racional e crítica e dum novo saber que se foi delineando como filosófico.

Há quem fale dum «milagre grego» para explicar todo esta produção maravilhosa no campo da cultura e da política e que seriam determinantes para a formação da Europa e do espírito europeu. Também se falaria dum «milagre grego» para explicar (?) o surgimento da Filosofia. Contudo, talvez se deva antes falar da conjugação favorável de vários fatores e do aproveitamento oportuno dessa conjuntura propícia por parte dos Gregos. Assim, para tentar explicar o despontar da cultura grega não seria mais aconselhável recorrer a esse elemento do milagre que acabaria por “substituir uma explicação por pontos de exclamação”10.

§4.

O filósofo, distraído ou preocupado?

Num dos textos da Grécia Antiga onde pela primeira vez se refere a Filosofia11,

descrevem-se umas festas tradicionais, onde apareciam uns homens que vinham vender mercadorias, outros que vinham comprar e, finalmente, havia uma terceira classe de indivíduos que não vinham fazer nem uma coisa, nem outra: estes eram os filósofos. Deste modo, caracterizam-se os filósofos como alguém desinteressado, que não está preocupado com os interesses materiais. A ideia que relaciona a Filosofia e a sua gratuitidade com um certo desinteresse em relação às preocupações materiais está também, de certa maneira, presente numa anedota que se contava acerca de um dos primeiros filósofos, Tales de Mileto12. Contava-se que este sábio, andando tão distraído com certos problemas que o

levavam a caminhar de cabeça no ar, não reparou num poço que estava diante de si e acabou por cair lá. Queria-se, com essa história, dizer que o filósofo era um indivíduo tão distraído com problemas transcendentes que nem reparava num elementar obstáculo colocado aos seus pés. Não contestamos esta interpretação, porque acerca do mesmo Tales de Mileto também se contou que, observando constantemente os astros celestes (chegou a prever um eclipse), conseguiu antecipar um ano de extraordinária produção de azeitona, pelo que procedeu ao aluguer de todos os lagares de azeite da cidade. Aquando da colheita das azeitonas e tendo-se verificado esse extraordinário aumento da produção, os agricultores foram ter com Tales para que este lhes subalugasse os lagares de azeite, onde iriam colocar essa produção. Deste modo, Tales acabou por ganhar muito dinheiro. Ora, daqui também se pode concluir que, de facto e aos olhos dos outros, talvez parecesse que Tales andasse distraído ao olhar para o céu; o problema é que os outros não conseguiram ver o que ele via e por isso não conseguiram

10 André Bonnard, op. cit., p. 34.

11 Trata-se um texto de origem pitagórica.

12 Tales de Mileto é considerado um dos sete sábios da Grécia Antiga. Nasceu em Mileto, na Ásia Menor, por volta de

624 ou 625 a.C. e faleceu em 556 ou 558 a.C. Tales de Mileto considerava que tudo tinha origem na água. Era este elemento primordial que explicava quer a origem do Cosmos como servia de princípio explicativo para todas as mudanças que ocorriam na Natureza.

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prever esse bom ano agrícola. Enquanto Tales fazia previsões acertadas, os seus contemporâneos só conseguiam ver que ele andava distraído!13 Ou então, como se afirma num

provérbio chinês, enquanto o sábio com o dedo para a Lua, o tolo apenas olha para a ponta

do dedo. Tales olhava para a Lua, mas os seus conterrâneos, que se julgavam muito espertos,

apenas viam nisso um comportamento bizarro.

Isto deve-nos levar a uma ideia importante sobre a Filosofia. É que esta, mesmo que nos pareça estranha14, tem a ver com a realidade e, sobretudo, com a nossa vida. Apesar da sua

estranheza, convenhamos que uma fórmula matemática, com os seus símbolos esquisitos, é bem mais estranha. Só não o achamos, porque sabemos que com a matemática se podem construir pontes e casas. Essa utilidade imediata afasta imediatamente qualquer ideia sobre o caráter estranho e abstrato da matemática. Ora, a Filosofia não tem a ver com pontes e casas, mas com as pessoas que habitam as casas e passam nas pontes. E, de certo modo, também poderemos dizer que a Filosofia também tem a ver com pontes, a Filosofia permite lançar pontes entre o passado e o futuro, entre o oriente e o ocidente, entre o indivíduo concreto e o Homem na sua universalidade. Pontes bem importantes, por sinal!

§5.

A alegoria da caverna de Platão e a atitude filosófica

Recordemos o que nos conta Platão e que ficou conhecido como a alegoria da caverna no livro VII da República. Em primeiro lugar, deparamos com um grupo de homens agrilhoados no fundo de uma caverna, habituados a contemplar as sombras que iam sendo projetadas na parede de fundo para a qual estavam virados desde sempre. Esses homens, os prisioneiros da caverna, viviam numa situação ilusória, pois tomavam essas sombras como a única autêntica realidade existente. No entanto, as sombras eram o reflexo da realidade exterior à caverna, de homens e mulheres que passavam no exterior. As sombras eram imagens, representações empobrecidas (não eram a cores, não possuíam densidade) da verdadeira realidade. Os prisioneiros viviam iludidos, enganados quanto à verdadeira natureza da realidade. Consideravam que era real o que era apenas reflexo do real. Até que um desses prisioneiros se liberta.

O prisioneiro liberta-se quer dos grilhões que o acorrentavam permitindo que ele iniciasse a caminhada difícil para o exterior, como também se vai libertando, agora num ritmo mais demorado, da ilusão em que vivia, simbolizado pelo mundo semi-obscuro em que estava(m) mergulhado(s). A sua libertação é uma caminhada em direção à verdadeira realidade, o mundo exterior à caverna, que irão proporcionar um conhecimento verdadeiro. À realidade autêntica corresponde um conhecimento verdadeiro, tal como à realidade ilusória correspondia um conhecimento iludido. É uma caminhada para a luz, de tal modo que terá, no início, dificuldade em enfrentar a luz. Platão quer-nos assim chamar a atenção para as naturais dificuldades que residem na via do saber; conhecer é uma tarefa árdua, porque neste

13 Como recordava Goethe, ninguém consegue ser herói para o seu criado de quarto!

14

Também se poderia dizer sobre a Filosofia que primeiro estranha-se, depois entranha-se!

(14)

caso corresponde também a enfrentar e a superar as ilusões com que se tinha desde sempre vivido. É muito complicado ter que abandonar as nossas certezas e convicções que se tinha sobre o mundo em que se vivia.

No entanto, o prisioneiro que se liberta e ascende ao mundo exterior contempla com admiração e gozo a verdadeira realidade. Até o seu próprio rosto é contemplado pela primeira vez. A célebre divisa de Sócrates, conhece-te a ti mesmo, é aqui evocada através desse momento original em que o prisioneiro vê, pela primeira vez, a si mesmo, descobre a figura do seu rosto. Este prisioneiro que chega ao verdadeiro mundo e ao verdadeiro conhecimento representa a figura do filósofo, tal como Platão a entende. Ele é um indivíduo excecional, que se libertou da condição em que vive a maioria das pessoas, presos nos seus dogmas e convicções. O prisioneiro enfim libertado, o filósofo, chega pois ao verdadeiro mundo, bem distante do mundo de trevas e ignorância em que se encontrava antes de proceder a esta ascensão.

Apesar da beleza do mundo que descobre e da alegria que isso provoca, o prisioneiro recém-libertado não se esquece dos seus antigos companheiros de jornada. E decide regressar ao interior da caverna a fim de lhes transmitir a sua experiência e os convencer a acompanharem-no para o exterior. No entanto, a generosidade do filósofo não é recompensada; antes pelo contrário, os seus anteriores colegas, perante o que ele lhes transmite, vão julgar que ele está doido, vão ficar transtornados ou indispostos com o que ele lhes conta e iriam mesmo chegar a vias de facto e tentar eliminá-lo, se pudessem. Platão sabe, pelo que aconteceu a Sócrates, o seu querido mestre condenado à morte pelo poder político de Atenas, que o filósofo corre sempre o sério perigo de ser incompreendido, de os outros não aceitarem o que ele lhes diz porque vai pôr em causa as suas convicções e certezas de sempre, que tinham formatado a sua mente e a sua maneira de ser e estar. No entanto, o filósofo tem responsabilidade para com os outros, sente que existe uma missão e um compromisso da Filosofia para com a comunidade humana. E por isso tenta reiteradamente fazer passar a sua mensagem libertadora.

Mas há saberes que não podem ser transmitidos pelo discurso. Há saberes que são tão essenciais que apenas podem ser adquiridos através da própria experiência. A libertação do Homem não é um efeito do discurso, por mais belo que o discurso seja. Aqueles prisioneiros, os homens que nós somos, só se libertarão libertando-se. Uma verdade simples, uma evidência diante dos nossos olhos, mas que mesmo assim nos escapa na maioria das vezes.

Ora, uma das lições da alegoria da caverna de Platão é que a libertação do homem passou por uma nova maneira de estar, em que ele próprio construiu o seu caminho, traduzindo-se esse esforço numa conversão do olhar. Os outros continuaram prisioneiros na medida em que o seu olhar continuou dirigido para o mesmo lado; o seu olhar permaneceu igual ao que sempre foi desde o início da sua vida. O que verdadeiramente os prende não são os grilhões e as cadeias, mas um olhar que se fixou, que cristalizou, que foi incapaz de acompanhar o movimento subtil da realidade e de dirigir para o outro lado.

(15)

A atitude filosófica é, se bem interpretamos o texto de Platão, uma mudança de perspetiva, o adquirir de uma nova maneira de olhar e analisar e criticar a realidade. E é também um convite a que cada um trilhe um caminho novo. Por isso é que é importante estar-a-caminho.

§5. A –

Caraterísticas da atitude filosófica

Com a expressão ‘atitude filosófica’ pretende-se referir não um discurso ou um saber estruturado, mas antes uma maneira de estar e de olhar a realidade e os outros. Neste parágrafo é nossa intenção descobrir o que há de específico e próprio na atitude filosófica e que a distingue de outros saberes e olhares.

Vejamos, então, algumas das características da atitude filosófica.

§6.

Historicidade

Esta característica tem a ver com o facto de a Filosofia, ou filosofias, serem determinadas, isto é, condicionadas, pela época que as viu surgir. Como qualquer produto cultural, também a Filosofia se relaciona com os problemas próprios de cada época, com as necessidades e anseios da sociedade. Se há problemas que são perenes, que chegaram até nós vindos dos Gregos, o modo como são formulados tem sofrido modificações. O problema da existência ou não de vida para além da morte e o problema da imortalidade da alma, tem sofrido alterações no modo como tem sido colocado pelas diferentes épocas históricas e, consequentemente, pelos diferentes sistemas filosóficos. Por outro lado, há outros problemas que são próprios das diferentes épocas históricas. O problema da liberdade nunca se colocou aos Gregos, enquanto na época que antecedeu a Revolução Francesa, a questão da liberdade era uma questão central. Hoje, os problemas éticos que a manipulação genética da vida humana coloca constituem uma área nova de problemas que nenhuma outra época colocou. Noutro sentido, a historicidade é uma característica da atitude filosófica porque o homem que é objeto da sua reflexão é um homem situado, que só pode ser entendido enquanto ser rodeado de circunstâncias próprias. O homem é um ser de circunstância, ou como dizia Ortega y Gasset, eu sou eu e as minhas circunstâncias, querendo dizer com isso que o homem

só se entende na relação que estabelece com o mundo que o rodeia. Dizia Marx15 que os

filósofos não nascem como os cogumelos. Para o filósofo alemão, os filósofos não são um produto espontâneo, mas sim o produto determinado da sua época. Cada Filosofia respira o ar do seu tempo, está impregnada pelo espírito do seu tempo, bem como recolhe das Filosofias que a antecederam, a experiência e a riqueza da reflexão acumulada. É nesse sentido que a historicidade constitui também o seu modo de ser.

15 Karl Marx foi um pensador, teórico da política, historiador e economista, que nasceu em 1818 e morreu em 1883.

O corpo dos conhecimentos produzidos, conjuntamente com a produção intelectual do seu companheiro de sempre Friedrich Engels, constituem a base daquilo que ficou conhecido como a teoria marxista.

(16)

§7.

Radicalidade

Com esta característica pretende-se salientar o facto de a Filosofia não se estruturar como uma visão superficial e acrítica da realidade, tal como é o senso comum. Ao contrário desta visão comum e empírica da realidade, a Filosofia é uma reflexão aprofundada e racional da realidade, que não se contenta com os aspetos superficiais que a constituem. Como a palavra indica, a Filosofia vai até à raiz dos problemas, investigando a primeira causa, o último porquê, não se contentando com respostas imediatas e superficiais. Partindo do pressuposto que a essência das coisas não reside na sua aparência, mesmo que esta a constitua, o conhecimento da verdade implica uma atenção e vigilância constantes, bem como uma postura inquieta e insatisfeita, que a leve constantemente a ultrapassar esse plano imediato da aparência. Como afirmava Heraclito, a essência das coisas gosta de jogar, no sentido de um permanente ocultar-se. A radicalidade enquanto característica da atitude filosófica significa, igualmente, que a Filosofia se opõe ao senso comum, não se prendendo às informações imediatas dos sentidos. É que para captarmos a verdadeira essência das coisas não podemos ficar pela aparência que é dada aos sentidos, mas devemos fazer uso da razão crítica. Como afirmava o provérbio chinês já citado, existe uma diferença essencial de perspetiva de encarar a realidade, quando comparamos a atividade dos sentidos e a atividade da razão.

§7-A.

Universalidade

A Filosofia ajuda-nos a desenvolver uma visão do mundo, uma conceção do mundo. Uma visão que ultrapassa a nossa vivência quotidiana e a perspetiva imediata que daí decorre.

A visão do mundo que desenvolvemos reflete sobre o homem enquanto ser universal, reflete sobre a condição humana. Mesmo que se parta dum homem concreto e situado e do seu viver circunstancial, a Filosofia eleva-se ao universal ao refletir sobre a condição humana – no homem particular que vive, sofre e se emociona, a Filosofia vê a Humanidade viva, sofredora e emocionada. A Filosofia e a sua reflexão, através duma perspetiva totalizadora, elevam-nos ao universal.

§8.

Autonomia em relação à ciência e à religião

A Filosofia apresenta-se como um saber distinto da ciência e da religião. É com base nesta distinção que podemos falar de autonomia da atitude filosófica. A Filosofia não é uma ciência, distingue-se da ciência por possuir um método e um objeto que são distintos dos métodos e objeto das ciências. Em relação ao método, verificamos que as ciências se foram constituindo enquanto saberes específicos na medida em que construíram métodos próprios, baseados no método experimental. A Filosofia é um saber específico que não pode recorrer à

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experiência; a Filosofia, em termos gerais, baseia-se no método reflexivo — a reflexão racional e crítica é o seu método. Também ao nível do método a reflexão filosófica exibe a sua especificidade. Enquanto que cada ciência foi delimitando um objeto próprio e específico e que correspondia a uma zona delimitada do real, a reflexão filosófica faz da totalidade, o ser enquanto ser, a realidade em si mesma, a condição humana, o seu objeto. Diz-se que o todo é o objeto da Filosofia, enquanto que cada ciência tem como objeto uma determinada parcela do real.

Mas a atitude filosófica também se constitui autonomamente em relação à religião. As religiões, monoteístas ou politeístas, sempre fizeram da fé a característica essencial da postura do homem religioso. Uma fé que lhe permite relacionar-se com uma entidade que lhe é apresentada dogmaticamente. Ora, a atitude filosófica não apela à fé, mas antes baseia-se num exame livre e racional dos seus postulados. E estes postulados estarão sempre sujeitos ao livre exame.

§9.

O carácter discursivo do trabalho filosófico

A Filosofia não pode deixar de trabalhar com a palavra e com os textos que corporizam a(s) palavra(s). Por isso nos referimos ao carácter discursivo da Filosofia e do trabalho filosófico.

A Filosofia vive de textos. É assim que os filósofos expõem as suas ideias, discutem as ideias dos outros, tomam posição sobre os problemas. Oral ou escrito, o texto filosófico é essencial para a reflexão. E, através dos textos, os filósofos argumentam, justificam e adiantam razões que apoiam as ideias (as teses) que defendem.

O carácter discursivo da Filosofia implica uma definição tão rigorosa quanto possível das palavras e dos conceitos que utiliza, bem como coerência na articulação entre os conceitos.

§10.

Filosofar é argumentar

O que é argumentar? Argumentar é apresentar razões em defesa de uma determinada tese, duma determinada posição [ver Posições de L. Althusser].

O texto filosófico é por essa razão, um texto eminentemente argumentativo, que avança argumentos. Na Filosofia, porque não estamos diante duma ciência exata, as posições que se tomam não são evidentes, nem podem ser demonstradas matematicamente. Portanto, temos que argumentar. Ora, o que é um argumento? Basicamente, um raciocínio que encadeia premissas e conclusões, onde as conclusões se retiram das premissas apresentadas, ou onde, uma vez aceites determinadas premissas, somos conduzidos pela força mais ou menos persuasiva da ligação (concatenação) estabelecida entre as premissas e as conclusões.

Quando argumentamos em Filosofia, estamos a defender uma determinada posição, elencando argumentos a favor da tese defendida. Ao pretendermos fazer com que o outro

(18)

acompanhe, aceite ou assuma as teses que defendemos, temos que selecionar os argumentos em função desse objetivo, ou estruturando o discurso para que ele ganhe capacidade de persuasão através da sua estrutura.

§11.

Áreas e temas abrangidos pela Filosofia

Tendo a totalidade como objeto da sua reflexão, logo é possível constatar que são múltiplos os assuntos e os temas que cabem na discussão filosófica, originando-se, por essa razão, disciplinas filosóficas, também elas variadas para darem conta dessas variadas problemáticas.

No campo da reflexão sobre o homem enquanto membro de um grupo e vivendo numa dada sociedade16, podemos indicar algumas disciplinas filosóficas que serão aí pertinentes: a

Axiologia que se dedica ao estudo dos valores, a Ética que estabelece e conduz à reflexão

sobre os princípios que deverão orientar a ação humana e a Filosofia Política, que perspetivará o homem como um animal político refletindo sobre o futuro da comunidade humana.

Já no campo da reflexão sobre a linguagem, a sua origem e natureza ocupa um espaço próprio na reflexão filosófica. Aí vê-se delimitar algumas disciplinas filosóficas como sejam a Filosofia

da Linguagem, a Filosofia Analítica e a Hermenêutica.

No campo do conhecimento vemos discutir-se desde a natureza do conhecimento, à existência ou não de uma rutura entre o conhecimento do senso comum ou conhecimento vulgar e o conhecimento científico (e as suas implicações éticas) e o problema da verdade. Esta constelação de problemas gerou o surgimento de várias disciplinas filosóficas como sejam a gnoseologia, epistemologia e a teoria do conhecimento.

A experiência humana, enquanto conjunto de acontecimentos humanos significativos, é também objeto da Filosofia. A experiência política, do homem enquanto cidadão, habitante da cidade (polis), a experiência estética, do homem enquanto produtor e espetador do belo artístico e a experiência religiosa, do homem relacionando-se com a transcendência, afirmando-a ou negando-a, também geram disciplinas no seio da Filosofia: Ética, Estética e

Filosofia da Religião.

Finalmente, cabe também à Filosofia a reflexão sobre a natureza e estatuto de entidades que se situam para além do mundo físico, que é o do nosso viver diário. Disciplinas como a Metafísica e a Ontologia movem-se precisamente nesse mundo inteligível.

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Capítulo 2 - O homem construindo-se através da ação

§12-A. O que é a ação

O homem, desde sempre, que tentou construir um mundo mais habitável, à medida das suas necessidades e dos seus desejos e projectos. O meio que ele encontra no início, nem sempre está disposto da forma mais favorável aos seus intentos. A hostilidade do meio leva o homem a ter que agir. Por isso, ele tem que transformá-lo de acordo com as suas necessidades  tem de agir. A cultura representa esse esforço incessante que resulta do confronto do homem com a Natureza. Esse esforço traduz-se no trabalho, num conjunto de atividades tendentes a transformar a Natureza, produzindo coisas novas e transformando as já existentes. O homem age, produz o seu próprio mundo, trabalha e por toda a parte deixa marcas da sua atividade.

Ao contrário do animal que age (ou reage) por instinto, irrefletidamente e de acordo com a sua memória genética, o homem age reflectidamente, analisa, pondera e decide de acordo com a avaliação que faz do meio que o rodeia, oportunidades e obstáculos, e das suas capacidades e instrumentos postos à sua disposição.

A ação humana constitui uma interferência do homem no decurso dos acontecimentos, a produção e provocação de efeitos na realidade que o cerca. Por outro lado, a acção, enquanto algo de exterior e visível corresponde à exteriorização e concretização do pensamento. Embora possamos dizer que há pessoas que em determinados momentos agem sem pensar, tal afirmação não é rigorosa; o que se deveria dizer é que o pensamento que antecedeu a ação foi insuficiente ou desadequado em relação à realidade onde pretendia intervir.

As nossas ações são algumas das coisas que nós fazemos. O fazer abrange um campo de actividades e acontecimentos mais amplo que aquele que é designado pelo agir. Tudo quanto realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma ação. Por exemplo, realizamos coisas inconscientemente, enquanto dormimos; não temos consciência de que as realizamos  isto não são ações. Por outro lado, há coisas que fazemos, mas que não correspondem a uma deliberação da nossa vontade. Há coisas que fazemos conscientemente, mas sem intenção, ex.: tiques nervosos, actos reflexos  realizamos isso involuntariamente, apesar de termos disso consciência, constatamos isso enquanto espectadores e não enquanto agentes. O que fazemos involuntariamente também não constituem ações. Reservamos o termo ‘ação’ para as coisas que realizamos consciente e voluntariamente. A consciência e a vontade são elementos integrantes e caracterizadores da ação.

Concluindo. As acções correspondem àquilo que realizamos consciente e voluntariamente, não sendo acção do homem o que este realiza estando apenas presente uma daquelas características. Actos do homem são aquilo que realizamos ou sem termos consciência disso ou sem que isso corresponda à nossa intenção ou vontade. As acções humanas têm que ser, simultaneamente, conscientes e voluntárias.

(20)

§12.

O que leva o homem a agir?

Segundo Fernando SAVATER, o perpétuo inacabamento da realidade humana é a essência da nossa condição humana; a inquietude é o coração do nosso coração e ser humano consiste em procurar constantemente a fórmula da vida humana17. O homem, ao contrário dos

outros animais, nasceu cedo demais, antes de estar desenvolvido e preparado para enfrentar o mundo. Ao fim de dois anos, qualquer bebé é incapaz de sobreviver sozinho; qualquer outro animal, ao fim do primeiro mês já sobreviveria sozinho. O desenvolvimento inicial do ser humano, a sua aprendizagem nos primeiros anos irá ter como objetivo superar essa insuficiência inicial. O seu inacabamento constituirá um impulso que irá orientar e dar sentido ao seu desenvolvimento. A sua intervenção, desde muito cedo, no meio que o rodeia intenta colmatar essas insuficiências que o homem traz consigo, esse inacabamento, esse

ser-em-vias-de. A imperfeição inicial obriga o homem a agir. Por isso, o homem é também projeto,

ser que se lança para diante ou permanentemente lançado para diante, para o seu futuro. O homem, desde sempre, que tentou construir um mundo mais habitável, à medida das suas necessidades, dos seus desejos e projetos. O meio que ele encontra no início, nem sempre está disposto da forma mais favorável aos seus intentos. A hostilidade do meio leva o homem a ter que agir. Por isso, ele tem que transformá-lo de acordo com as suas necessidades, tem que torná-lo mais amigável, mais habitável  tem de agir. A cultura representa esse esforço incessante que resulta do confronto do homem com a Natureza e o resultado dessa ação transformadora. Esse esforço traduz-se no trabalho, num conjunto de atividades tendentes a transformar a Natureza, produzindo coisas novas e transformando as já existentes. O homem age, produz o seu próprio mundo, trabalha e por toda a parte deixa marcas da sua atividade. O mundo é a sua casa, mas o homem tem de vencer a hostilidade inicial desse mesmo mundo.

§13.

Sentidos da palavra ação usados na linguagem quotidiana e que não deverão ser considerados neste âmbito

Quando falamos aqui de ação estamos a referir-nos a ação humana. No entanto, no dia-a-dia, referimo-nos também à ação dos animais e à ação dos elementos. Trata-se dum uso impróprio. Como veremos mais adiante (§15), a ação humana corresponde a algo que fazemos de forma consciente e voluntária. Isso não está presente no comportamento dos animais. O cão que abana a cauda, não o faz porque isso resulte duma decisão do cão ao ver o dono – trata-se não duma ação, mas antes duma reação do animal. Do mesmo modo, podemos falar da ação da chuva ou da ação erosiva do vento. Porém, nem a chuva nem o vente agem: não atuam segundo a sua vontade nem muito menos têm disso consciência.

(21)

§14.

A ação humana constitui uma intervenção planeada e pensada

Ao contrário do animal que age por instinto, irrefletidamente e de acordo com a sua memória genética, o homem age refletidamente, analisa, pondera e decide de acordo com a avaliação que faz do meio que o rodeia, das oportunidades e obstáculos, bem como das suas capacidades e instrumentos postos à sua disposição.

A ação humana, em sentido lato, significa a produção de efeitos, o que implica que algo é modificado ou transformado. Com efeito, agir tem como consequência, na maioria das vezes, uma modificação da realidade que cerca o sujeito. Nesse sentido, a ação humana constitui uma interferência do homem no decurso dos acontecimentos, a produção e provocação de efeitos na realidade que o cerca. A ação humana, neste sentido, modifica a realidade. Foi através da ação dos homens que o mundo se foi tornando num lugar mais acolhedor, de acordo com as suas necessidades, desejos e projetos. Se olharmos à nossa volta constatamos facilmente como a realidade que nos rodeia é já o resultado da ação humana. Todas as coisas apresentam a marca da mão do Homem.

No entanto, devemos entender que a ação não se caracteriza apenas pela produção de efeitos externos. Por exemplo, podemos falar duma ação interior, do sujeito sobre si mesmo. Por outro lado, a ação, enquanto algo de exterior e visível corresponde à exteriorização e concretização do pensamento. Embora possamos dizer que há pessoas que em determinados momentos agem sem pensar, tal afirmação não é rigorosa; o que se deveria dizer é que o pensamento que antecedeu a ação foi insuficiente ou desadequado em relação à realidade onde pretendia intervir. Na maioria dos casos, o homem antecipa o que pretende fazer e tenta agir de acordo com o que planeou. Se as coisas não correm como planeado, tal deve-se a diversos fatores, desde uma insuficiente ou desajustada análise e ponderação até à intervenção de causas inesperadas ou imponderáveis.

§14. - A

Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ação da reação

No sentido de percebermos o que é a ação, devemos proceder a algumas distinções e esclarecer melhor o que é o agir. Na nossa vida são muitas as coisas que nos acontecem. Por exemplo, ficarmos constipados ou cair-nos uma bola na cabeça. Isso são acontecimentos, não são ações do sujeito, mas algo que aconteceu ao sujeito. Também existem situações em que temos reações automáticas, instintivas. Por exemplo, quando algo nos passa inesperadamente diante dos olhos e, automaticamente, os fechamos, como defesa. Trata-se, não de uma ação, mas de uma reação, algo que fizemos sem pensar ou planear. Se tivéssemos que pensar e planear a nossa resposta perante o inseto voador que se dirigia para o nosso rosto, acabaríamos por não responder convenientemente a essa ameaça. Pensemos também, a título de exemplo, nas reações que podemos ter quando andamos de bicicleta e um obstáculo surge inesperadamente à nossa frente: nós reagimos automaticamente, desviando-nos desse

(22)

obstáculo ou travando como uma reação por instinto. Se pensássemos na resposta que devíamos dar perante o surgimento do obstáculo, perdíamos o tempo útil de resposta e acabaríamos por não conseguir evitar o choque. Do mesmo modo que distinguimos o plano do agir do plano do acontecer, também devemos distinguir o que é uma ação do que é uma reação.

“Por ação (…) entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor, votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar.”18

§15.

A consciência e a vontade são elementos que caracterizam necessariamente a ação humana; o agir pressupõe uma atividade consciente e voluntária

As nossas ações são algumas das coisas que nós fazemos. Nem tudo o que fazemos constitui uma ação. O fazer abrange um campo de atividades e acontecimentos mais amplo que aquele que é designado pelo agir. Tudo quanto realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma ação. Fazer coisas é um aspeto de que se reveste a ação, mas não a esgota. Realizamos coisas inconscientemente, enquanto dormimos; não temos consciência de que as realizamos  isto não são ações. Por outro lado, há coisas que fazemos, mas que não correspondem a uma deliberação da nossa vontade. Há coisas que fazemos conscientemente, mas sem intenção, ex.: tiques nervosos, atos reflexos  realizamos isso involuntariamente, apesar de termos disso consciência, constatamos isso enquanto espectadores e não enquanto agentes. O que fazemos involuntariamente também não constituem ações. Reservamos o termo ‘ação’ para as coisas que realizamos consciente e voluntariamente e que, nalguns casos mobiliza um saber e um poder técnicos. A consciência e a vontade são elementos integrantes e caracterizadores da ação. Só devemos chamar ações aos aspetos da nossa conduta de que damos conta (de que temos consciência, que fazemos conscientemente) e que efetuamos intencionalmente, isto é, com intenção, ou seja, voluntariamente.

Portanto, as ações correspondem àquilo que realizamos consciente e voluntariamente, não sendo ação do homem o que este realiza estando apenas presente uma daquelas características. Atos do homem são aquilo que realizamos ou sem termos consciência disso ou sem que isso corresponda à nossa intenção ou vontade. As ações humanas têm que ser, simultaneamente, conscientes e voluntárias. Conscientes, isto é, quando o sujeito age, ele tem de saber que está a agir e que a sua ação corresponde ao que projetou e desejou. Voluntárias, isto é, as suas ações deverão ser a concretização da sua vontade, da sua intenção, fazendo aquilo que quis ou desejou.

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Diz-me o que fazes e dir-te-ei quem és…

Quando escolho o curso ou a profissão que quero seguir, não sou apenas o autor das ações que se seguirão em função dessa escolha, como me irei definindo através dessas ações. Aquilo que farei irá contribuir para o desenvolvimento da minha identidade. Eu não sou apenas aquilo que faço e que é escrutinado pelos outros, mas também a soma dos meus desejos e projetos, bem como das minhas frustrações, daquilo que tentei fazer e não consegui. A minha identidade, o que eu sou, é um processo, um permanente movimento, onde as minhas ações constituem elementos determinantes para essa construção da identidade.

§16.

A importância da presença da consciência e da vontade no agir do homem

Qual é a importância da presença dos elementos consciência e vontade na ação humana? Para responder a esta pergunta vamos analisar as três situações seguintes, partindo do princípio que te caberá a ti avaliar e julgar o comportamento dos sujeitos implicados. Imagina, por exemplo, que és o juiz destes processos e eras que proferir uma sentença…

§17.

Movimento / acontecimento e ação

“Dizer: «estico o braço para mostrar que dou uma volta» é produzir um enunciado que não pode situar-se na mesma categoria que o enunciado «o braço levanta-se»: este descreve um movimento, aquele uma ação; este descreve um movimento que é observado por um espectador, o segundo descreve uma ação do ponto de vista do agente que a fez.”19

Movimento e ação não são o mesmo. Dum ponto de vista dinâmico, no movimento está implicada a noção de causa com um sentido meramente mecânico, enquanto que na ação está presente a noção de motivo. Do mesmo modo, como já vimos, a ação não é um acontecimento, isto é, algo que acontece. O que acontece é um movimento enquanto observável, desprovido de intenção ou motivo. Se o homem surge aí implicado não o é enquanto agente, entidade ativa, mas enquanto sujeito passivo. Conduzir um automóvel corresponde a uma ação que eu realizo. Ter um furo é algo que me acontece, é um acontecimento para o qual eu não tive nenhum contributo, onde não se manifesta a minha intenção. Matar uma galinha corresponde a uma ação. A galinha morrer constitui um acontecimento, um facto.

§18.

A rede conceptual da ação: ação intencionada e ação causada

Uma ação intencionada será uma ação que é desenhada de acordo com a nossa intenção. Com os fins que desejamos atingir e com a nossa vontade ao serviço da concretização desses mesmos fins.

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Uma ação intencionada é uma ação onde está presente a consciência do indivíduo, a ponderação de opções, onde existe uma escolha entre diferentes vias, uma decisão que se associa igualmente à nossa vontade, intenção e motivações.

Como afirma William JAMES, “a procura de fins futuros e a escolha dos meios próprios para o alcançar são, assim, a marca e o critério da presença da mentalidade num fenómeno.”

Diferente é o caso de uma ação causada. Esta é uma ação explicada por determinantes — genéticas, ambientais, histórico-culturais ou outras —, onde o elemento intencional, racional e ético não é visível, ou se encontra diminuído ou eliminado face ao peso e influência daquelas determinantes.

Consoante o peso que atribuímos à influência daquelas determinantes ou à influência da nossa vontade, assim se formaram duas perspetivas opostas acerca da dependência da nossa ação em relação às causas exteriores ou em relação à deliberação da nossa vontade.

§19.

Perspetiva determinista e perspetiva baseada na ação intencionada

Segundo a perspetiva determinista nós somos determinados por causas, somos o produto de causas; toda a ação humana é explicada e é determinada por fatores que têm a ver com a nossa natureza animal, com os nossos genes, com a nossa biologia, por um lado; e com fatores que têm a ver com a sociedade, a época, a educação ou ainda com fatores externos de diversos tipos e que nos ultrapassam (acasos, acontecimentos, obrigações ditadas por outras pessoas, etç.). A nossa liberdade está assim condicionada por esses fatores que acabam por funcionar como os verdadeiros autores daquilo que fazemos e das nossas ações. O sujeito como que se apaga diante desses fatores.

Pelo contrário, quanto à perspetiva baseada na ação intencionada, há dentro de nós e nas nossas ações fatores racionais, graus de liberdade, elementos que ultrapassam as causas em si mesmas; há projetos e há intenções; logo, o indivíduo está acima das condicionantes ambientais, biológicas ou outras, escapa desses fatores e como que age exclusivamente partindo da sua vontade imune a esses fatores e ao meio onde o sujeito está.

§20.

Combinando causas e intenções; o homem é simultaneamente livre e determinado

Somos, por um lado, produtos de genes e produtos da educação e de uma época, logo, seres sujeitos a essas condicionantes. A nossa inteligência, as nossas capacidades racionais têm limites. E isso permite ultrapassar, de certa maneira e a alguns níveis, as causalidades de base, as determinantes e condicionantes. Temos também livre-arbítrio, ou seja, capacidade de optar entre o bem e o mal. Em conclusão, há, simultaneamente, causalidade e intencionalidade nas nossas ações. Somos livres sem o poder ser de uma forma absoluta. Não podemos ou não conseguimos realizar tudo o que projetamos ou idealizamos. Por várias razões. A começar, o nosso corpo é, de certa maneira, um limite e uma limitação

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dos planos da nossa vontade. O meu corpo é um limite à minha liberdade, apesar de ser, igualmente, um instrumento e o meio através do qual eu posso realizar a minha liberdade.

Mas a realidade que me rodeia também constitui uma limitação à minha liberdade e, portanto, para a minha ação. Por mais vontade que eu tenha de ser pescador, se viver no interior, longe do mar ou de um lago ou de um curso de água, o meu projeto de vir a ser pescador está fortemente condicionado. O meio, para além de poder ser um manancial de oportunidades, é também uma fonte de obstáculos e dificuldades. [a continuar]

§21.

Ações voluntárias, atos involuntários e reflexos

As ações intencionadas são ações voluntárias, ou seja, assentes no nosso querer, na nossa razão, no pensamento. Nisso distinguem-se das ações involuntárias e das ações reflexas. Parte dos nossos atos é comandada por impulsos e desejos porventura divergentes e difíceis de gerir. As nossas pulsões agressivas e as nossas pulsões sexuais são exemplos disso. Os atos que se associam aos nossos instintos, aos nossos reflexos, à nossa natureza animal, ao nosso lado irracional e emocional, ou que nos são impostas por terceiros ou pelas autoridades, são

atos involuntários. Ao contrário, as ações intencionadas são voluntárias. §22.

O agente da ação e a relação causal

Toda a ação depende de um sujeito, isto é, de um agente, tal como toda a intenção é sempre intenção de alguém. Do mesmo modo, procurar os motivos de uma acção leva-nos a interrogações que nos conduzem ao agente. O agente é, assim, uma espécie de causa da ação. Por isso, afirma RICOEUR que “atribuir uma ação a alguém é, em primeiro lugar, identificar o sujeito da ação”.20 Trata-se de saber a quem pertence tal e tal ação. A atribuição

de um autor a uma ação pode ser uma tarefa simples, mas também pode ser uma tarefa complicada. Por exemplo, quando consideramos as consequências longínquas de uma determinada ação.

Vejamos este exemplo:

O António está conduzindo um automóvel a toda a velocidade para o Hospital da cidade, porque a sua mulher entrou em trabalho de parto. Entretanto, Manuel, que estava à janela, vê o automóvel aproximar-se a toda a velocidade, ao mesmo tempo que em frente ao seu prédio dois miúdos jogam à bola. Tenta avisá-los e debruça-se da janela, caindo. Felizmente que Manuel cai em cima do toldo da mercearia e não lhe acontece nada. O seu velho tio, que estava na sala, assiste à queda de seu sobrinho Manuel. Como está numa cadeira de rodas e não se pode deslocar não chega a saber que está tudo bem com Manuel, apenas uns

Referências

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