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Preparativos para viagem Salvador: a Estação da Intertextualidade

3.1 ENSAIO 1 – DOS TRILHOS ÀS TRILHAS DA INVENÇÃO, DA MÚSICA E DAS ARTES VISUAIS: SYLVIA ORTHOF E TATO GOST EM DIÁLOGOS

3.1.1 Preparativos para viagem Salvador: a Estação da Intertextualidade

Leitora, leitor decidiram seguir viagem? Então é só pegar o bilhete! Confiram direito os destinos.

Figura 1 – Passaporte 1

Fonte: acervo da autora (2018)

Em todas as narrativas que guiarão as nossas visitas, se faz presente o diálogo intertextual, portanto, se faz necessário visitar as concepções de intertextualidade com as quais nos filiamos e que auxiliam a compreensão da construção das histórias que serão estudadas.

Destaco que o termo “intertextualidade” foi cunhado pela pesquisadora búlgaro- francesa, Julia Kristeva. A pesquisadora, em estudos publicados no livro Introdução à Semanálise, cuja primeira edição brasileira é do ano 1969, registra, o resultado do diálogo com a concepção bakhtiniana de polifonia, relacionada com a obra de Dostoievsky: “[...] a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)”. A autora ainda acrescenta: “[...] todo

texto se constrói como mosaicos de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 2005, p. 68). Laurent Jenny, professor da Universidade de Genebra, contribui para a construção do conceito e aponta um problema para os interessados nos estudos da intertextualidade. Conforme o autor,

O problema da intertextualidade é fazer caber vários textos num só, sem que se destruam mutuamente, e sem que o intertexto (tomamos este termo no sentido de texto absorvendo uma multiplicidade de textos, embora centrado num só sentido. A palavra é por vezes utilizada por M. Arrivé, no sentido de conjunto dos textos que se encontram numa relação de intertextualidades) se estilhace como totalidade estruturada. (JENNY, 1979, p.23).

Em outras palavras, isso significa que um problema que se apresenta ao diálogo intertextual presente em um texto é que “as peças do mosaico de citações”, para usar as palavras de Kristeva, não se encaixem de forma harmônica e isso prejudique a própria construção do intertexto. Laurent Jenny também amplia o conceito de intertexto, ao considerar a intertextualidade como condição sine qua non para compreensão de um texto literário. Nas palavras, do autor: “fora da intertextualidade a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda desconhecida” (JENNY, 1979, p.5). Para exemplificar, podemos citar o livro Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina, escrito e ilustrado por Sylvia na edição de 1986 e ilustrado por Laura Castilhos na edição de 2009, objeto de minha pesquisa de conclusão do curso de Pedagogia. Seria a nossa compreensão afetada, se não considerássemos que o texto de Sylvia estabelece diálogo com o clássico infantil A Princesa e a Ervilha, Hans Christian Andersen? Seria uma conclusão ingênua afirmar que não compreenderíamos a obra por não conseguir estabelecer relações entre os dois textos? Acredito que a compreensão seria de outra natureza, porém também creio que a percepção da paródia do texto de Sylvia em diálogo com os textos de Andersen seria prejudicada, assim como a percepção da renovação de sentidos proposta por Sylvia. Mas a relação entre Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina e A Princesa e a Ervilha é apenas uma das relações intertextuais que podemos identificar. Ao lermos o texto de Sylvia, essa relação intertextual é o que Laurent Jenny considera como intertextualidade explícita, para ele, a intertextualidade explícita

[...] não só condiciona o uso do código, como também está explicitamente presente ao nível do conteúdo formal da obra. Assim sucede com todos os textos que deixam transparecer a sua relação

com outros textos: imitação, paródia, citação, montagem, plágio etc. (JENNY, 1979, p. 6)

Jenny, porém, aponta para outra natureza de relação intertextual presente nos textos, a intertextualidade implícita. Conforme o pesquisador (1979, p.6), “se qualquer texto remete implicitamente para os textos, é em primeiro lugar dum ponto de vista genético que a obra literária tem conluio com a intertextualidade”. Samir Curi Meserani, em sua leitura da obra de Jenny, explica a intertextualidade implícita com as palavras que seguem citadas: “a intertextualidade implícita fundamenta-se no pressuposto segundo o qual todo texto se insere na história dos textos antecedentes da sua série ou sistema, que acabam por codificar a sua produção”. (MESERANI,1998, p. 72)

Se pensarmos a intertextualidade implícita em Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina, podemos refletir que, ao ler o texto de Sylvia, acionamos o nosso repertório de textos já lidos e identificamos o gênero textual, um conto de fadas, ao identificá-lo como um conto de fadas, acionamos o nosso conhecimento sobre esse gênero e o nosso modo de leitura é norteado por ele. Não lemos um conto de fadas como lemos uma notícia, ou um artigo científico. Outra relação de intertextualidade implícita que pode ser estabelecida na leitura de Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina é a identificação do texto como um texto de literatura infantil, com essa identificação podemos também acionar os nossos conhecimentos sobre a literatura infantil e o que compreendemos por um texto que recebe o adjetivo infantil. Essas são apenas duas das relações intertextuais implícitas que podem ser estabelecidas com a leitura do texto de Sylvia, escolhidas como exemplo.

Ao tratar da intertextualidade, é preciso considerar também a natureza dos livros lidos, ou seja, livros ilustrados, que na concepção de Sophie Van der Linden (2011), pesquisadora francesa que tem se dedicado aos estudos dos livros ilustrados, além de serem livros em que a narrativa é construída em articulação entre o texto verbal e as ilustração, eles são “formas específicas de expressão” (LINDEN, 2011, p. 29). Tratando-se de um livro ilustrado, ao pensarmos a intertextualidade, é necessário considerarmos a intertextualidade não somente do texto verbal, mas também das ilustrações. Maria Nikolajeva, professora da Universidade de Cambride e pesquisadora da literatura infantil, e Carole Scott, professora emérita da Universidade

de San Diego, também pesquisadora da literatura infantil, ao tratarem da intertextualidade nos livros ilustrados afirmam que

Nos livros ilustrados, a intertextualidade, como tudo mais, funciona em dois planos: o verbal e o visual. Como todos os outros aspectos do iconotexto, a intertextualidade pode ser simétrica e contrapontual. Esta última implica que o vínculo intertextual pode estar presente apenas no texto verbal ou no texto visual [...] (NIKOLAJEVA, SCOTT,2011,p. 295)

Nos livros que estudamos, as relações intertextuais são simétricas, presentes tanto no texto verbal quanto nos textos imagéticos. Em A Onça de Vitalino. O texto verbal escrito por Sylvia anuncia o diálogo com a obra do Mestre Vitalino, mas são as releituras de Tato que são responsáveis por apresentar ao leitor o estilo de Vitalino e uma releitura de suas produções, como podemos ver nas imagens que seguem destacadas.

Figura 2 – Mestre Vitalino

Em outros momentos da narrativa, a percepção do diálogo das ilustrações de Tato com as produções do Mestre Vitalino pode ser recuperada pelas palavras finais de Sylvia que, na seção do livro dedicada à autora e aos comentários sobre a obra, declara a inspiração de Tato nas figuras do Mestre Vitalino para compor as ilustrações, ou por um conhecimento prévio das produções do artista pernambucano, pois não há uma indicação dessa inspiração no texto verbal da narrativa principal. Tal constatação está em consonância com o que afirmam Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011,p.

295): “a intertextualidade pressupõe que o leitor participe ativamente do processo de decodificação; em outras palavras, é o leitor quem faz a conexão intertextual.”

Tecidas as reflexões sobre a intertextualidade e, já tendo iniciado a leitura do livro A Onça de Vitalino, podemos pegar os nossos bilhetes e iniciar a nossa viagem. Caruaru nos espera, Leopoldina já anuncia a partida... Píííííííííí...