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A alegria na escola em diálogo com os escritos da fada carioca: "Ave alegria".

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Academic year: 2021

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JAMILLY STARLING SANTOS DE JESUS

A ALEGRIA NA ESCOLA EM DIÁLOGO COM OS ESCRITOS DA FADA CARIOCA: “AVE ALEGRIA”

SALVADOR 2018

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A ALEGRIA NA ESCOLA EM DIÁLOGO COM OS ESCRITOS DA FADA CARIOCA: “AVE ALEGRIA”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestra em Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Mary de Andrade Arapiraca Coorientadora: Profa. Dra. Lícia Maria Freire Beltrão

SALVADOR 2018

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A Jesus Cristo, por mais um milagre da transfiguração: tornou doce o salgado de tantas lágrimas e onde havia tristeza, me ajudou a buscar alegria.

À Jocielia Santos, mãe amada, por ter palavras de certeza, frente às minhas tantas dúvidas. Pelo investimento na minha educação. Por todo cuidado, carinho, amor e pelas orações.

Aos meus avós, Elza Santos e Pedro Santos, pela compreensão, pelo colo, pelas bênçãos e pelas palavras carinhosas a cada manhã e a cada noite.

À Lícia Beltrão, por caminhar comigo pelo país da literatura. Por me apresentar aos estudos sobre a alegria cultural escolar. Pelos muitos anos de orientação. Por acreditar na pesquisa textualizada nesta dissertação, por todo afeto e dedicação. À Mary Arapiraca, pela orientação, por acreditar na minha pesquisa desde o início. Por ser um grande exemplo de pedagoga e pelas palavras ditas e escritas que tanto me inspiram.

Às integrantes da banca examinadora, pela certeza da leitura atenta e das contribuições.

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação, pelo acolhimento durante esses vinte e quatro meses.

A FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) pela concessão da bolsa durante os primeiros meses de realização do Mestrado.

A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela concessão da bolsa por quase todo período de realização do mestrado

Ao Grupo GELING, por me acolher desde os primeiros semestres da graduação. Por ser um espaço de afeto e onde eu aprendo cada dia a ser professora e pesquisadora. Ao Grupo Cartografias da Infância, por ser um espaço de descobertas e de alegria, onde eu aprendomuito sobre infância e literatura infantil, mas também que me ensina a aprender com o diferente e me desafia a leituras potentes e inquietantes.

Às estudantes e aos estudantes de EDC 306 - Leitura e Produção de Textos 2017.2, por aceitarem embarcar comigo numa viagem pelos livros de Sylvia Orthof e pelos estudos sobre a alegria cultural escolar.

À Escola Municipal São José e à Educação de Jovens e Adultos do Colégio Antônio Vieira (EJACAV), por acolherem a mim e as turmas de EDC306 Leitura e Produção de Textos e permitirem a realização de atividades de leitura com seus estudantes.

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À Liane Araújo, por me afetar, me inspirar e me ajudar a brincar com a literatura. Pelas trocas, pelo incentivo, pelas palavras de motivação e pelo carinho.

À Luciene Santos, primeira pessoa da qual eu assisti à defesa de uma tese, por ter me lançado, naquele dia, as sementes de que a Pós-Graduação também é um espaço de alegria.

A Victor Cerqueira, pelas palavras de encorajamento, por me ajudar a cuidar do meu tempo, por todo amor.

À Ana Paula Albuquerque, Maria Auxiliadora Wanderley, Regina Gramacho, Joilda Albuquerque, pela presença, pelos conselhos, pelo apoio, pela amizade.

À Raquel Bezerra, pela delicadeza da amizade, pela escuta, pelos conselhos e pela singularidade das leituras compartilhadas.

À Simone Assumpção, pela escuta, por acompanhar a minha caminhada acadêmica, pelo cuidado e pela amizade.

À Lívia Viana e Tamires de Jesus, companheiras de Graduação e Mestrado, por todas as alegrias e angústias compartilhadas.

Aos Intempestivos, pela alegria dos diálogos.

À Juliana Santos, Carla Bahia e Valnívia Castilho, pelos telefonemas, cafés, conversas durante a madrugada e nas primeiras horas da manhã, em que pude compartilhar alegrias, inquietações, descobertas, dúvidas, muitas histórias, poesia e sorrisos.

À Anna Amélia de Faria e Alessandra Carbonero, por me apresentarem a obra de Spinoza.

À Sylvia Orthof e Georges Snyders, in memorian, pois sem as suas obras, a minha pesquisa de Mestrado não seria possível.

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RESUMO

O afeto provocado pela leitura da produção literária de Sylvia Orthof, seguido dos primeiros estudos sobre a alegria cultural escolar, conceito cunhado por Georges Snyders (1988), fomentou o tecer de problematizações acerca do contato dos estudantes com produções que compõem o patrimônio cultural da humanidade, as práticas pedagógicas com os textos literários e a literatura na sociedade pós-moderna. Tais problematizações motivaram a realização deste estudo que visou responder à pergunta: que proposições pedagógicas podem ser construídas sobre a alegria cultural escolar com base na leitura do universo literário de Sylvia Orthof? e teve como objetivo inserir, no debate sobre a alegria cultural escolar, proposições pedagógicas fundamentadas na leitura do universo literário de Sylvia Orthof. Além do conceito de alegria cultural escolar, mobilizaram a pesquisa os conceitos de Alegria, conforme Spinoza (2016), de Afeto, de acordo com Spinoza (2016) e Luciana di Leone (2014), e de Ficção, conforme, Hans Vaihinger (2011). A partir da pergunta e do objetivo propostos, a metodologia da pesquisa foi organizada em dois caminhos interligados. O primeiro conduziu ao aprofundamento na produção literária de Sylvia Orthof e a elaboração de motes organizadores de estudos. Os motes elaborados foram “Sylvia Orthof e o patrimônio cultural da humanidade” e “Sylvia Orthof e a política”. O segundo caminho conduziu a pesquisa empírica, realizada com estudantes de duas turmas do componente EDC 306 – Leitura e Produção de textos. Todas as análises, fruto dos dois caminhos trilhados, foram textualizadas sob a forma de ensaios. Os achados da pesquisa, resultados do diálogo entre a produção literária de Sylvia Orthof, a alegria cultural escolar e a empiria realizada com os estudantes universitários, apontam para a potência da literatura para promoção de alegrias culturais escolares em diferentes áreas do conhecimento, como a política, as artes plásticas, a história, a música e a própria literatura.

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RESUMEN

El afecto provocado por la lectura de la producción literaria de Sylvia Orthof, seguido de los primeros estudios sobre la alegría cultural escolar, concepto acuñado por Georges Snyders (1988), fomentó el tejer de problematizaciones acerca del contacto de los estudiantes con producciones que componen el patrimonio cultural de la humanidad , las prácticas pedagógicas con los textos literarios y la literatura en la sociedad posmoderna. Tales problematizaciones motivaron la realización de este estudio que pretendía responder a la pregunta: ¿qué proposiciones pedagógicas pueden ser construidas sobre la alegría cultural escolar con base en la lectura del universo literario de Sylvia Orthof? y tuvo como objetivo insertar en el debate sobre la alegría cultural escolar proposiciones pedagógicas fundamentadas en la lectura del universo literario de Sylvia Orthof. Además del concepto de alegría cultural la escuela, movilizaron la investigación los conceptos de Alegría, como Spinoza (2016), de Afecto, de acuerdo con Spinoza (2016) y Luciana di Leone (2014), y de Ficción, según, Hans Vaihinger (2011). A partir de la pregunta y del objetivo propuestos, la metodología de la investigación fue organizada en dos caminos interconectados. El primero condujo a la profundización en la producción literaria de Sylvia Orthof y la elaboración de motes organizadores de estudios. Los motes elaborados fueron "Sylvia Orthof y el patrimonio cultural de la humanidad" y "Sylvia Orthof y la política". El segundo camino condujo la investigación empírica, realizada con estudiantes de dos clases del componente EDC 306 - Lectura y Producción de textos. Todos los análisis, fruto de los dos caminos trillados, fueron textualizados en forma de ensayos. Los hallazgos de la investigación, resultados del diálogo entre la producción literaria de Sylvia Orthof, la alegría cultural escolar y la empiria realizada con los estudiantes universitarios, apuntan a la potencia de la literatura para promover alegrías culturales escolares en diferentes áreas del conocimiento, como la política , las artes plásticas, la historia, la música y la propia literatura.

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Figura 1 Passaporte 1 52

Figura 2 Mestre Vitalino 55

Figura 3 Salvador-BA / Caruaru-PE 56

Figura 4 Andanças por Caruaru 58

Figura 5 Cangaceiros (Vitalino) 62

Figura 6 Cangaceiros (Tato Gost) 62

Figura 7 Montaria (Vitalino) 62

Figura 8 Montaria (Tato Gost) 62

Figura 9 Lampião (traços expressionistas) 64

Figura 10 Lampião e a Onça (Tato Gost) 65

Figura 11 A Onça no consultório do dentista 66

Figura 12 Passaporte 2 67

Figura 13 Caruaru- PE / Petrópolis- RJ 70

Figura 14 Andanças por Petrópolis 72

Figura 15 Balões de Santos Dumont 80

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Figura 18 Passaporte 3 85

Figura 19 Petrópolis- RJ / Salzburgo 89

Figura 20 Andanças por Salzburgo 90

Figura 21 Tato pinta Salzburgo 95

Figura 22 Passaporte 4 98

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ACACCIL Academia Caruaruense de Cultura, Ciências e Letras

CIMA Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação Educacional

EJA Educação de Jovens e Adultos

EJACAV Educação de Jovens e Adultos do Colégio Antônio Vieira EMSJ Escola Municipal São José

FACED Faculdade de Educação

GELING Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem LPT EDC 306 – Leitura e Produção de Textos

MAB Museu de Arte da Bahia MEC Ministério da Educação

OFIDAS Organização Feminina Israelita de Assistência Social PNBE Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) PROAE Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UFBA SEADE Sistema Estadual de Análise de Dados

SEE-SP Secretaria da Educação do Estado de São Paulo UFBA Universidade Federal da Bahia

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SUMÁRIO

1 “EU TE ENTREGO O MEU LENÇO” 14

2 PONTO DE TECER PESQUISA 15

2.1 RABISCOS METODOLÓGICOS 30

2.1.1 Rabiscando duas linhas 34

3 ENSAIOS 44

3.1 ENSAIO 1 –DOS TRILHOS ÀS TRILHAS DA INVENÇÃO, DA MÚSICA E DAS ARTES VISUAIS: SYLVIA ORTHOF E TATO GOST EM DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS

44

3.1.1 Preparativos para viagem- Salvador: a Estação da Intertextualidade

52 3.1.2 Primeira parada- Caruaru (PE): A Onça de Vitalino 56

3.1.2.1 Enquanto isso... No vagão LPT (01) 67

3.1.3 Segunda parada – Petrópolis (RJ): Sonhando Santos Dumont 70

3.1.3.1 Enquanto isso... no vagão LPT (2) 85

3.1.4 Terceira parada- Salzburgo: Cadê a peruca do Mozart? 89

3.1.4.1 Enquanto isso... no vagão LPT (3) 98

3.1.5 “Toda linha de escrita é um traço de horizonte!” 101 3.2 ENSAIO 2 - “PAPOS DE ANJO”: CONVERSAS SOBRE ALEGRIAS

POLÍTICAS, LITERATURA E ESCOLA

104

3.2.1 Antes de chegar ao céu 104

3.2.2 A chegada ao céu 112

3.2.3 “Papos de Anjo” 115

3.2.4 Em uma nuvem distante ou Destecendo a ficção 133

4 CONFIDÊNCIAS A UM DOCE MONSTRINHO 135

REFERÊNCIAS 142

APÊNDICE A – BIOGRAFIA DE SYLVIA ORTHOF PARA ABERTURA DAS ATIVIDADES NAS ESCOLAS

152 ANEXO A – PRODUÇÃO DE SEVERINO PARA ATIVIDADE “SE

A MEMÓRIA NÃO ME FALHA” 154

ANEXO B – PRODUÇÃO DE LILA PARA ATIVIDADE “VAI PARA O TRONO OU NÃO VAI?”

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1 “EU TE ENTREGO O MEU LENÇO”

Sylvia Orthof, como último poema do livro Ponto de tecer poesia, escreve:

Eu te entrego meu lenço/ que por mim tecido está,/ com quatro ramos de flores/ de um pé de manacá,/ com dois pingos de uma rosa/ da cor forte do carmim,/ que mancharam este lenço,/ quando o espinho da poesia/ ficou fincado em mim./ Eu te bordei a palavra/ com agulha de platina,/ teu nome é meu poema/ e a agulha é minha pena./ É coisa de um lencinho/ tão leve, tão coisa à toa,/ que se bater a emoção,/ batendo no coração,/ garanto que o lenço voa./ Eu te entrego meu lenço,/ bordado, por mim tecido,/ com tudo o que foi lembrado/ naquilo que é esquecido! (ORTHOF, 2010, p.37)

Ao modo da escritora, entrego a minha dissertação para sua apreciação, leitora e leitor, com o desejo de que juntos possamos tecer reflexões sobre a potência da produção literária de Sylvia Orthof para a construção de proposições pedagógicas que visem ao fomento da alegria cultural escolar. Ave alegria!

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2 PONTO DE TECER PESQUISA1

No ponto desta poesia faço ponto dou um laço. Tem vezes que numa linha eu no fio me embaraço. (ORTHOF, 2010, p. 8)

Mário de Osório Marques (2006) imaginava que para escrever deveria haver, como na fala, algo que ajudasse a começar a conversa, pois ele discorda de uma concepção de escrita como algo mecânico, que supõe um texto já elaborado. Marques entende a escrita como outra forma de conversar. Aliando-me a essa concepção, não resisto e inicio o presente texto contando:

Jorge Luís Borges, em seu poema A elegia da lembrança impossível, lamenta por momentos que gostaria de ter vivenciado. Entre as estrofes do poema, destaco a que segue:

O que não daria eu pela memória/ De ter sido um ouvinte daquele Sócrates/ Que, na tarde da cicuta,/Examinou serenamente o problema/Da imortalidade,/ Alternando os mitos e as razões/Enquanto a morte azul ia subindo/Dos seus pés já tão frios. (BORGES, 1999, p. 137)

Anos depois, Adriana Falcão (2003), em seu livro O doido da garrafa, admira a ideia do poeta de escrever um poema lamentando por acontecimentos de um passado que não viveu e escreve uma crônica, em forma de paráfrase, que se intitula Que não daria eu por essa idéia2.

Ao modo do escritor argentino e da escritora brasileira, me inspiro e confesso aos leitores: o que não daria eu por uma tarde na casa de Petrópolis, ouvindo da própria Sylvia Orthof as suas fantasiosas ideias. O que não daria eu por assistir A viagem de um barquinho sendo encenada e Sylvia cantando e dançando no papel da lavadeira.

1 Título inspirado no livro Ponto de Tecer Poesia, de Sylvia Orthof.

2 A escrita ortográfica de todas as palavras consultadas em documentos publicados, antes da vigência do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, assumido no Brasil desde o início do ano 2009, foi mantida conforme consta no documento original.

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Interrompo o meu exercício imaginativo para fazer uma observação. No decorrer do texto, me referirei a Sylvia Orthof, ora por nome e sobrenome, ora somente pelo seu primeiro nome, me valendo de uma intimidade familiar, pois Sylvia e as suas obras fazem parte da minha “família estética” conceito que colho de Affonso Romano de Sant’Anna (1994), na crônica Iniciação estética. O autor denomina como família estética, aqueles autores dos quais nos aproximamos desde os primeiros anos da juventude e pelos quais nos sentimos afetados. Em decorrência do uso da palavra “afeto”, aproveito a ocasião para dizer que dialoga com o conceito de “família estética”, o conceito de “afeto”, de Luciana di Leone, presente no livro Poesia: escolhas afetivas, que bebe da filosofia de Spinoza.

Spinoza compreende por afeto “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2016, p. 1633)3 para o filósofo, “[todos os afetos] estão relacionados ao desejo, à alegria ou à tristeza”. (SPINOZA, 2016, p. 2407)4. Em momentos posteriores, trataremos, com mais ênfase, do afeto da alegria, conforme Spinoza. Já Luciana di Leone (2014, p. 1384)5 reflete que “o afeto, ao mesmo tempo, ancora e mobiliza, inscreve e endereça, identifica e propicia o devir, estabelece genealogias e tira os filhos de casa”. O conceito de afeto de Luciana di Leone dialoga com o já citado conceito de “família literária”, de Affonso Romano de Sant’Anna, assim como com uma das facetas da “alegria cultural escolar”, a “continuidade-ruptura” que será abordada no primeiro ensaio que compõe esta dissertação.

Também se faz necessário tratar da importância do afeto para construção da pesquisa aqui apresentada. Eu me sinto afetada pela produção literária de Sylvia Orthof, afeto que me dá potência para pesquisar, mobilizar conhecimentos e me ajuda a criar genealogias. É preciso, porém, destacar um aspecto muito expressivo na obra de Sylvia Orthof, a criatividade na construção dos seus textos.

Guilford, (apud NOVAES, 1971, p.54) ao analisar as capacidades produtivas que usam a informação para gerar novas informações, aponta o pensamento divergente, ou seja, aquele que se move em várias direções em busca de uma resposta, como

3 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são numeradas.

4 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são numeradas.

5 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são numeradas.

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tendente à criatividade. A criatividade expressa na obra de Sylvia Orthof, possivelmente fruto de movimentos do seu pensamento divergente, me afeta, me inspira e mobiliza o meu pensamento divergente. Afetada por essa criatividade, eu construí a pesquisa e a sua textualização. Agora é chegado o momento de retornar ao exercício imaginativo.

Retomo o exercício imaginativo, confessando que, ao me entusiasmar com a entrevista de Mary Arapiraca a Lobato, presente na Revista da FACED, atual Revista Entreideias, sob o título de Senhor da Linguagem e Invencionices pela Paz: entrevistando Monteiro Lobato, imagino: o que não daria eu por uma entrevista nada convencional a Sylvia Orthof, durante a qual, tomaríamos um suco de laranja6 e conversaríamos sobre a literatura infantil brasileira, sobre as tensões em ser autora de um gênero que, por vezes, é tido como uma literatura menor.

Quem sabe, viajaríamos pelas filosofias deleuzianas e guatarrianas, pensaríamos nas três categorias de uma literatura menor, ou seja, “a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político e o agenciamento colectivo de enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 2003), bateríamos um bom papo sobre literatura e política e, depois, Sylvia me diria “vê o livro infantil, o chamado livro para crianças, como literatura, sintonia diferente, às vezes, mas sintonia literária, artística”. (ORTHOF, 2006, p. 174)

Lá pelo meio da conversa, eu contaria a Sylvia sobre a minha admiração pela sua obra, diria que a reconheço como um grande nome da literatura infantil brasileira, pois ela se aventurou por diversos gêneros – conto, poema, autobiografia e gênero dramático –, estabeleceu diálogos intertextuais com clássicos da história da arte, como Mozart e Bosch, sem deixar de lado a cultura popular brasileira. Um exemplo disso é o livro Fada Fofa, Onça-Fada, em que a cultura nacional e o diálogo com o

6 Referência a dedicatória do livro Papos de anjo, de Sylvia Orthof, em que a autora escreve: Para Eliane Ganem, com admiração, carinho... e aquele chope que ambas não bebemos! Explicação do chope:

Uma vez eu estava matando saudades de Eliane Ganem pelo telefone. Conversa vai, conversa vem, Eliane propôs:

- Sylvia, que tal a gente marcar um encontro, tomar um chope e botar as novidades em dia? Respondi que era uma ótima ideia.

Continuamos a papear e, na hora da despedida, confessei: - Eliane, eu não bebo álcool, nem chope...

- Eu também não, Sylvia!

Danamos de rir: nós, duas mulheronas feitas, com vergonha de marcar encontro para um suquinho de laranja, fazendo “pose de chope”! Pois é, adolescência é isso: não tem idade. (ORTHOF, 2014, p. 5)

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artista estrangeiro, no caso, Mozart aparecem na mesma narrativa. Em seus livros de contos de fadas, a autora subverte os clássicos, através da paródia, desconstrói estereótipos, como o das fadas sempre muitos boas – e louras – (ORTHOF, 1989) e a polarização entre o bem e o mal, abrindo espaço para construção de outras possibilidades de representação dos seres feéricos.

Outro marco do universo de Sylvia é a brincadeira com a linguagem, como a criação de neologismos, a citar, Guardachuvando, neologismo que compõe o título do livro Guardachuvando doideiras. As questões políticas também estão em sua obra, como no livro, Quem roubou meu futuro, em que a autora problematiza a situação político-econômica do Brasil no início dos anos 1990, ou em Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro, cuja narrativa apresenta uma reflexão sobre o empoderamento de sujeitos considerados como mais frágeis. Sylvia, ao escrever para crianças, não as subestimou, pelo contrário, escreveu sem querer dar lição de moral, ou aula Português, Geometria, História ou Geografia e ainda valorizou a curiosidade e a inventividade que são próprias das crianças. Tudo isso, sem deixar de lado a alegria, que até nomeia um dos seus livros, Ave Alegria, que me inspira para compor o título da pesquisa que realizei. Ao me ouvir, aposto que Sylvia iria corar, mas tentando esconder a timidez, responderia:

Um livro não é feito para ensinar. Um livro é prazer. Pode-se aprender muito num livro, mas o intuito da literatura (não estou falando dos livros didáticos) é o de proporcionar prazer. Acho importante a entrada do livro no âmbito escolar. Não pode existir uma escola que não tenha a sua hora de recreio, faz parte do equilíbrio das crianças, dos jovens. O livro não é um dever de casa, é um direito. Direito de ler, gostar, não gostar, trocar de autor ou de livro. (ORTHOF, 2006, p. 174)

Com essa conversa da literatura como direito, eu me lembraria das palavras de Antonio Candido que situa a literatura entre os bens incompreensíveis, ou seja, aqueles que não podem ser negados aos humanos, aqueles que garantem tanto a sobrevivência física quanto a integridade espiritual. (CANDIDO, 2011)7. Ao que Sylvia talvez retomasse as palavras de uma velha conhecida sua, a escritora Ana Maria Machado, pois, de acordo com Ana Maria Machado, a leitura de textos literários, além de ser um direito, é um prazer, uma forma de resistência, além dos textos se configurarem verdadeiros patrimônios da humanidade (MACHADO, 2009).

7 No momento de conclusão destes escritos, recebo a informação de que, em São Paulo, está exposta à visita pública a “Ocupação Antonio Candido” que entrelaça literatura como direito humano, a arte, a educação e a justiça social , sob a curadoria de sua neta, Laura Escorel, entre outros .

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Ao lembrar-se de Ana Maria Machado, é possível que Sylvia resolvesse “pular amarelinha na calçada da memória”8, e recordasse a sua chegada na literatura infantil. Foi através do teatro que Sylvia entrou em cena na literatura infantil. Ela inscreveu o seu texto A viagem de um barquinho, em um concurso de dramaturgia infantil, promovido pelo teatro Guaíra. O texto ganhou o primeiro lugar, e Ana Maria Machado era uma das juradas. Sylvia acreditava que foi Ana Maria quem abriu caminhos para ela, pois depois disso, Ruth Rocha, então diretora da Revista Recreio, amiga e cunhada, naquele período, de Ana Maria Machado, telefonou pedindo à Sylvia, uma história. Foi pouco depois de começar a publicar seus contos na Revista Recreio que Sylvia teve os seus primeiros livros publicados (ORTHOF, 1996).

Por falar em gente querida, eu contaria à Sylvia que sua amiga Fanny Abramovich, ou a Cigarra Ruiva, como Sylvia gostava de chamá-la, também me inspirou para tecer a nossa conversa cheia de confidências. Fanny escreveu o livro Sylvia sempre surpreendente, contando deliciosas histórias da amizade entre as duas (ABRAMOVICH, 2007). Histórias surpreendentes! Quando eu falasse em Fanny, Sylvia ficaria com mania de Cabidelim, personagem que nomeia a história Cabidelim, o doce monstrinho. Cabidelim tem braços encravados no lugar dos ouvidos e quando quer ouvir melhor, ele abraça as pessoas. O monstrinho também tem mania de fazer muitas perguntas.

Com mania de Cabidelim, Sylvia abriria a torneirinha de perguntas. Ela quereria saber as histórias que eu havia lido, quais personagens eram meus amigos... Eu contaria da minha amizade de longa data com Fada Fofa, personagem que eu conheci na biblioteca da minha antiga escola quando tinha cerca de sete anos. Meu encanto por Fada Fofa foi, à primeira vista, digo, à primeira lida. Depois de Fofa, eu conheci Uxa, Docemel, Dona Noite Doidona, Pirraça, Tumebune, o vagalume, Fada Cisco Quase Nada, João Feijão, A Fada lá de Pasárgada, Maria vai-com-as-outras, A Rainha Rabiscada, Valéria, A Fada Sempre Viva e a Galinha-Fada, muitos personagens, muitas histórias especiais. Dentre elas, eu faria questão de destacar a minha amizade com Ervilina.

Contaria ainda que, em uma oficina do Projeto Leitura Com..., projeto inscrito no Programa Permanecer da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UFBA (PROAE)

8 Faço referência ao excerto da obra autobiográfica de Sylvia Orthof, Livro Aberto: confissões de uma inventadeira de palco e escrita: “Confesso que sinto um prazer infantil em pular amarelinha na calçada da memória.” (ORTHOF, 1996, p.29).

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coordenado pela Profa. Dra. Lícia Maria Freire Beltrão e vinculado ao Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem (GELING), em que a obra lida foi Ervilina e o Princês, uma criança perguntou em tom de estranhamento – Ervilina não se casou com o Princês? Movida por essa pergunta eu desenvolvi a minha pesquisa de conclusão no curso de Graduação em Licenciatura em Pedagogia, em que busquei estudar a reação das crianças ao se relacionarem com as temáticas presentes na obra Ervilina e o Princês ou Deu a louca em Ervilina, que se apropria de elementos do conto clássico A Princesa e a Ervilha, de Hans Christian Andersen, porém carrega outras ideologias, outras bandeiras e vozes de diferentes sujeitos.

Espicharia mais ainda a conversa e contaria que o fato de a pesquisa ter envolvido a participação ‘das crianças com curiosidade intelectual sobre o texto literário, perguntando, atribuindo sentidos, interessadas no contexto de produção das obras, lendo o texto verbal e imagético, me ajudou a ratificar o argumento de que a presença da literatura na escola pode ser porta aberta para reflexões e construção de saberes de diferentes naturezas9. É importante ressaltar que acredito que a presença do texto literário na escola deve ser mediada de forma responsiva, em que seja valorizada a leitura polissêmica que, conforme Orlandi (2001, p.200), “se define pela atribuição de múltiplos sentidos ao texto”. Sobre a polissemia, Orlandi (2001,p.137) ainda acrescenta que “a polissemia desloca o mesmo e aponta para a ruptura, para a criatividade[...]”. Também acredito em práticas de leituras escolares que fujam do que Marisa Lajolo (2002) denomina de “uniformização”, caracterizada por ela como práticas com o rótulo de atividades lúdicas que são realizadas de forma indiferenciada sem considerar a singularidade de cada aluno e de cada turma. Os resultados da pesquisa também colaboraram para que eu continue afirmando o valor da literatura como direito humano, conforme defende os já citados, Antonio Candido (2011) e Ana Maria Machado (2009).

A essa altura, eu já teria desenvolvido o gosto por dizer sobre os meus estudos e, mesmo sem que Sylvia me perguntasse, dando um salto para o presente, não deixaria de lhe contar que, no curso do Mestrado em Educação, ao conhecer o

9 Em uma atividade da oficina, após a leitura da obra Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina, o debate se encaminhou para as questões de gênero e o papel da mulher na sociedade. A partir de uma intervenção feita por um estudante, em que ele discorria sobre as alterações que faria caso fosse o escritor da história. Esse foi um momento em que se expôs e se questionou estereótipos, a partir de uma discussão entre os demais alunos da turma, além se configurar como um momento de exercício de respeito ao pensamento divergente.

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trabalho de George Snyders (1993), eu descobri o conceito de alegria cultural escolar que consiste na alegria dos estudantes frente à descoberta do patrimônio cultural da humanidade. Alegria em saber que podem produzir e reinventar sentidos diante das obras que compõem o patrimônio cultural que a humanidade tem construído ao longo dos séculos.

Talvez Sylvia se lembrasse de já ter encontrado o educador francês nas bandas celestes e se interessasse por conhecer um pouco mais da biografia de Snyders. Caso isso acontecesse, partindo da leitura do ebook Georges Snyders: por uma pedagogia da alegria e do antipreconceito: subsídios para a formação de professores, fruto da tese de Renata de Almeida Vieira (2016), eu contaria que Georges Snyders nasceu na França no ano de 1917, seus pais eram judeus e holandeses, mas morando na França se esforçaram para ser “genuínos” franceses. Na infância, o menino Snyders era considerado um bom aluno, pelo seu desempenho e por suas origens ele enfrentou bullying na escola. Por influência de seus pais, ele também se dedicava aos estudos musicais, principalmente do piano.

Em sua juventude, o educador francês passou por uma experiência que mudou a sua existência. Snyders viveu dez meses preso no campo de concentração de Auschwitz. Durante esses dias terríveis, além da fome, do trabalho sem descanso, o judeu também enfrentou uma série de humilhações que tentavam desumanizá-lo. Nesse período, as obras culturais foram de extrema importância para a sobrevivência de Snyders, conforme Vieira (2016, p. 1011)10

Se antes de Auschwitz a alegria alcançada por Georges Snyders junto a Mozart e outras obras-primas era sempre em situação de refúgio, era um pôr-se em fuga deste mundo banal, fica para nós evidenciado que, em Auschwitz, a alegria suscitada pelas criações de Mozart adquiriu para o nosso autor outro sentido, que nos parece ser a própria negação e superação do sentido atribuído anteriormente. Não se tratava mais de fugir deste mundo, refugiando-se no universo harmonioso da música, mas de, pela beleza da música, fincar os pés neste mundo e resistir a fim de não sucumbir com o peso da dolorosa realidade. Nesse sentido, cantar Mozart, em Auschwitz, foi, para Georges Snyders, tanto inspiração para resistir, como acalento para restaurar forças, ativar o ânimo e a coragem para que se mantivesse vivo.

Conhecendo esses aspectos biográficos, é possível compreender as razões do combate ao racismo e das obras-primas, centralidade da sua concepção de educação,

10 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são numeradas.

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serem expressivos na produção acadêmica de Snyders. Sobrevivendo ao sofrimento dos meses que passou no campo de concentração, o posicionamento político de Snyders e a sua visão de mundo foram profundamente afetados. Reaprendendo a viver, ele se filiou ao Partido Comunista Francês e avançou nos estudos marxistas que marcam uma parte expressiva de suas publicações. Com o passar do tempo, se dedicou a pensar, com mais ênfase, a educação escolar, produzindo obras que unem a sua experiência familiar, escolar, sua luta pela sobrevivência em Auschwitz e a ressignificação da existência após a saída do campo de concentração. (VIEIRA, 2016) Entre as temáticas presentes nas obras do autor, aqui versaremos, exclusivamente, sobre a alegria cultural escolar.

Por termos falado sobre Snyders no campo de concentração de Auschwitz, Sylvia talvez se lembrasse da sua família composta por judeus austríacos, que vieram para o Brasil, fugindo da II Guerra mundial. Quem sabe ela confessasse:

[...] Entendi pouco da coisa, ou quase nada. No Rio, sei que começamos a comer pão de milho, faltava trigo. Na nossa casa, onde vivíamos tranqüilos, meu pai, minha mãe e eu, chegaram parentes, aos borbotões. Todos vinham de longe, da Europa, não falavam português. (ORTHOF, 1987, p.67)

Possivelmente, ela se lembraria da sua amiga Fanny Abramovich, também judia, cuja mãe, Elisa Abramovich, trabalhou na Organização Feminina Israelita de Assistência Social (OFIDAS), responsável por acolher judeus que chegavam ao Brasil, vítimas de perseguições em suas pátrias (SALVATORI, 2014). Também sobre Fanny, talvez me dissesse que a literatura foi responsável por fazer a amiga perceber, com mais clareza, o sofrimento dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial e citaria um excerto do livro O professor não duvida! Duvida? no qual Fanny narra experiências leitoras como estas:

As perseguições aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial afloraram com maior nitidez e espanto quando li o sofrido, sufocante e humano Diário de Anne Frank, escondida por anos num sótão. Ela tinha menos idade quando viveu e sofreu aquilo tudo do que eu quando a li... As pequenas aldeolas judaicas, a atmosfera do iídiche falado por meus avós, minhas raízes desconhecidas e semi-enunciadas, as cantigas do leiteiro, a casamenteira, o pequeno alfaiate, o cheiro de arenque defumado, dos pepinos azedos as rezas e os cantos tristonhos, as danças celebrantes, fui conhecer – quando mocinha – pelos belos textos de Sholem Aleichem e Y. L. Peretz. Dois contistas de primeira linha! Ternos e bem-humorados, descritivos e críticos. Delícia pura! Também os judeus-americanos Sholem Asch e Michael Gold, que me levaram às lágrimas e sofrências doidas. (ABRAMOVICH, 1998, p. 146-147)

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A narrativa afetiva de Fanny, porventura, me lembraria os escritos de uma outra amiga de Sylvia, a já citada Ana Maria Machado. Em seu livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, a autora defende que, desde a infância, tenhamos contato com os textos que formam o patrimônio cultural da humanidade. Em seguida, eu diria a Sylvia que a defesa de Ana Maria Machado me remete ao conceito de alegria cultural escolar. Na concepção de Georges Snyders, o ponto central da alegria cultural escolar é o encontro dos estudantes com as obras-primas. Como eu considero que o termo obra-prima pode ser limitador, eu releio esse conceito de Snyders e penso que a alegria cultural escolar é aquela que surge do encontro dos estudantes com o patrimônio cultural da humanidade, compreendendo esse patrimônio, conforme é referido no artigo 216 da Constituição Federal de 1988.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico

Ampliando a conversa, diria que o conceito de obra-prima, defendido por Snyders (1993), já se mostra como um conceito expandido visto que engloba as obras-primas do passado e do presente, das artes, das ciências, obras-obras-primas políticas e técnicas. Diria também que, por questionar o conceito de obra-prima, fui a escritos de Jorge Coli e neles encontrei:

Os dicionários nos dirão que obra-prima é a obra perfeita, a obra capital, a produção mais alta de um autor. Se consideramos que Os Lusíadas são uma obra perfeita, que a Ilíada é uma obra capital, que o Ateneu é a melhor obra de Pompéia, diremos que nos três casos estamos diante de obras-primas da literatura. Por razões ligeiramente diferentes: Os Lusíadas podem não ser essenciais, por exemplo, para a cultura de um americano, na Ilíada talvez encontremos irregularidades de construção, dizemos que O Ateneu é a obra-prima de um autor, Pompéia; mas nos três casos estamos diante de obras de qualidade que julgamos excepcional em relação a outras. No passado, entretanto, a obra-prima era aquela que coroava o aprendizado de um ofício, que testemunhava a competência de seu autor. Não se tratava de uma realização forçosamente inovadora,

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original, e era com freqüência um produto utilitário, saído das mãos de um carpinteiro, ourives, tecelão. (COLI, 1995, p. 14)

Sobre a atribuição do status de obra-prima para uma produção, Jorge Coli (1995) afirma que, no passado, essa atribuição era feita a partir de parâmetros específicos e por pessoas que dominavam as técnicas para produção das obras, que eram, como já citado, produtos utilitários. Hoje, os profissionais do meio artístico responsáveis pela atribuição de juízos de valor as obras, seguem critérios diversos e pouco precisos que diferem do antigo “saber fazer”.

Dada à atenção de Sylvia, lhe diria que chegamos a um ponto em que o conceito de obra-prima está em diálogo com o conceito de cânone. As obras-primas, no ramo das artes-visuais, da música, do cinema ou da literatura, também são aquelas produções que integram o cânone. Compangnon (2010, p. 222-223), acerca do cânone, nos conta que

Um cânone é, pois, nacional (como uma história da literatura), ele promove os clássicos nacionais ao nível dos gregos e dos latins, compõe um firmamento diante do qual a questão da admiração individual não se coloca mais: seus monumentos formam um patrimônio, uma memória coletiva.

E acrescentaria: Roberto Reis (REIS, 1992, p.70), por sua vez, apresenta um conceito distinto de cânone:

Nas artes em geral e na literatura, que nos interessa mais de perto, cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras – os clássicos, as obras-primas dos grandes mestres -, um patrimônio da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza, esta “humanidade” é muito fechada e restrita) a ser preservado para as futuras gerações, cujo valor é indisputável.

É o mesmo Roberto Reis (1992) que renova e problematiza o conceito de cânone, ressaltando o quanto a seleção de obras tidas como a “mais alta expressão da cultura”, pode ser excludente por diversas razões, a citar, a majoritária presença de homens no cânone e a inexpressiva presença de artistas de grupos étnicos e raciais menos prestigiados pela sociedade.

Seria uma solução para o caráter excludente do cânone, que hierarquiza obras e autores, a inserção de outros grupos, como mulheres, negros, indígenas entre os autores e obras tidas como canônicas? Conforme Roberto Reis (1992, p.76), essa não seria uma solução. Escreve o pesquisador:

cânon é um evento histórico, visto ser possível rastrear a sua construção e a sua disseminação. Não é suficiente repensá-lo ou revisá-lo, lendo outros e novos textos, não canônicos e não

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canonizados, substituindo os “maiores” pelos “menores”, os escritores pelas escritoras, e assim por diante. Tampouco basta – ainda que isto seja extremamente necessário – dilatar o cânon e nele incorporar outras formações discursivas, como a telenovela, o cinema, o cordel, a propaganda, a música popular, os livros didáticos ou infantis, a ficção científica, buscando uma maior representatividade dos discursos culturais. O que é problemático, em síntese, é a própria existência de um cânon, de uma canonização que reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade.

Considerando que o conceito de cânone, mesmo se abarcasse outros autores e obras de diferentes naturezas, também não abarcaria a pluralidade representada pelo patrimônio cultural da humanidade e, sabendo que o conceito de “cânone” está em diálogo com o conceito de “obra-prima”, volto a pensar a alegria cultural escolar, emprestando novos sentidos à concepção de Snyders (1993). Acredito que o “centro da escola” em lugar de ser a relação do aluno com a obra-prima, como acredita o educador francês, pode ser a relação do aluno com o patrimônio cultural construído pela humanidade, considerando que o conceito de patrimônio cultural da humanidade é, como já referido, plural e mais representativo que um conjunto seleto de obras-primas.

Acreditando no interesse de Sylvia pela conversa, eu ainda ressaltaria que, conforme Snyders, a alegria cultural escolar é a alegria que surge quando

O aluno dá vida à obra, dá sua vida à obra, e essa interpretação pessoal é que constitui a primeira conquista de sua originalidade autônoma. O primeiro “papel” dos alunos é “representar” à sua maneira, inimitável, os teoremas de geometria ou as estrofes de um poema. Pode chegar, assim, a um “olhar produtivo”: associar sua própria experiência à do autor, compará-la, assimilá-la, opôr-se a ela. (SNYDERS, 1993, p. 114)

Neste momento, Sylvia poderia perguntar: “mas como essa alegria pode ser fomentada?” Para o aluno se envolver numa interpretação, o primeiro passo é que ele tenha contato com a obra-prima ou com o patrimônio cultural da humanidade. Visto que, do patrimônio cultural da humanidade, estamos pensando com mais ênfase nas produções literárias, é preciso que os alunos tenham acesso às obras literárias.

Sabemos que as escolas públicas brasileiras recebem acervos literários através de programas de distribuição de livros, o principal deles é o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)11. Através de pesquisas como A mediação da leitura literária no Projeto Leitura Com... “infinito novelo de tantas tramas e cores”, de Joilda

11 O programa distribuiu livros às escolas públicas do país durante toda primeira década dos anos 2000 e até metade da segunda década. Desde o ano de 2015 encontra-se suspenso.

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Albuquerque dos Santos Pereira (2016), e Literatura e ensino: professores e poetas na construção de saberes, de Regina Lúcia de Araújo Gramacho (2013), além das produções das integrantes do projeto Leitura Com... durante os seus dez anos de atividade, tomamos conhecimento de que a presença do acervo nas escolas não assegura o acesso dos estudantes às mesmas. Para garantir o acesso dos estudantes a essas obras, são necessárias ações de mobilização dos acervos, aliadas às práticas pedagógicas que valorizem a leitura literária, que poderão resultar na sua democratização.

Ao pensar as práticas pedagógicas com os textos literários, lemos em Marisa Lajolo alguns caminhos que podem ser valorizados. Lajolo no texto O texto não é pretexto (1988, p.52), afirma que “a presença de um texto literário na escola cumpre funções várias e nem sempre confessáveis, frequentemente discutíveis, só às vezes interessantes”. Em uma releitura do seu próprio texto no ensaio intitulado O texto não é pretexto. Será que não é mesmo?, a autora revisita questões centrais discutidas nele, entre elas a autonomia do texto, a solidão e o caráter individual da escrita e da leitura, ao que Lajolo confessa não acreditar mais, ou seja, Lajolo afirma ter aprendido que

no texto inscrevem-se elementos que vêm de fora dele e que os sujeitos que se encontram no texto – autor e leitor- não são pura individualidade. São atravessados por todos os lados pela história: pela história coletiva que cada um vive no momento respectivo da leitura e da escrita, e pela história individual de cada um; é na interseção destas histórias, aliás, que se plasma a função de autor e leitor. (LAJOLO, 2009, p. 104)

Outro ponto revisado pela autora é a condenação a priori de leituras patrocinadas pela escola, visto que essa ideia subtende a existência de uma única possibilidade de leitura. Lajolo (2009, p.106), afirma que “[...] a migração de textos para atividades escolares subtrai os textos de seu – digamos – gênero original. Mas isso é inevitável: textos são migrantes por natureza, e a migração não ocorre apenas em situação escolar”. E ainda anuncia:

[...] hoje acredito que a forma de alunos aprenderem a ler artigos de jornal, contos e letras de música é, exatamente, distanciarem-se das situações comuns de circulação destes gêneros. Nesse distanciamento, é mais fácil desenvolverem categorias críticas de leitura para que, em situações comuns, exteriores à escola, os alunos possam ser sujeitos críticos da leitura que fazem de tais textos. (LAJOLO, 2009,p.106)

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Apesar de romper com algumas ideias, como foi exposto nos parágrafos anteriores, e rever as certezas que tinha, ao escrever o texto de 1982, em 200812, Lajolo preserva uma das ideias fundamentais, já contidas no título do seu artigo, a ideia de que um texto não é pretexto. O que a escritora, em um tom mais propositivo, renova, é afirmar que, não sendo pretexto, o texto é contexto. Pensar o trabalho escolar com o texto, significa dizer que este pode ser conduzido não por relações baseadas em pretextos, nos quais o texto pode servir de via para o ensino, mas por relações contextuais, entendendo estas como o contexto de produção, circulação e leituras de um texto, pois a consciência das relações contextuais permite a recuperação da dimensão coletiva da escrita e da leitura. O câmbio de uma forma de trabalho com o texto que valorizava o texto como pretexto para uma forma de trabalho que valorize o texto, enquanto contexto, pode contribuir para a superação de desacertos no trabalho escolar com o texto (LAJOLO, 2008).

Acredito na importância da atualização do trabalho com o texto na escola, concordo com Marisa Lajolo (2008), quando a autora propõe que este trabalho valorize as relações contextuais de um texto e ainda defendo que o trabalho contextual pode contribuir para com o fomento da alegria cultural escolar.

Se Lajolo nos apresenta caminhos, ao lançarmos olhares para a leitura literária na sociedade pós-moderna de consumo, desafios se impõem. Snyders, em sua obra Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários traduzida para o Brasil no início dos anos noventa, ao pensar a sociedade contemporânea, afirma que

[...] o lazer se estruturou em instituições. Os instrumentos de lazer, desde a televisão até a organização dos esportes e das férias, ocupam posições-chave em nossa sociedade, sem paralelo com as simples distrações de tempos atrás. Ademais, certas instituições de lazer, consideradas como meios de formação, estabelecem uma concorrência cada vez maior com a escola. (SNYDERS, 1993, p.36)

Se pensarmos na sociedade brasileira, da segunda década dos anos dois mil, as formas de lazer se multiplicaram ainda mais. A expansão da internet, o crescimento das tecnologias da informação e comunicação, nos coloca frente a desafios ainda maiores. O estímulo ao consumo desenfreado, a “diminuição da durabilidade dos bens

12 1982 e 2008 são as datas de publicação da primeira edição dos textos. As edições dos textos visitadas para a escrita deste texto são dos anos de 1988 e 2009.

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duráveis”, coloca os seres humanos em um ciclo de duas fases consumo-descarte em um ritmo acelerado.

Zygmunt Bauman, autor muito conhecido pelos seus escritos acerca da pós-modernidade, em relação à sociedade de consumo, destaca:

Todo es prescindible, nada es verdaderamente necesario, nada es insustituible. Todo nace con la marca de la muerte. Todo se propone con fecha de caducidad. Todo, todo lo nacido o hecho, todo lo humano o fabricado es prescindible.13 (BAUMAN, 2007, p. 45)

Nesse contexto de consumo-descarte, em que as horas parecem insuficientes para as demandas do dia, ler literatura é um ato subversivo. Desenvolvendo uma análise sobre a leitura na pós-modernidade, Lígia Cademartori assinala que

Em meio ao ritmo frenético da vida, parar para ler, pelo simples desejo de ler, que rebeldia, que reação! O leitor, recolhido e concentrado em meio a essa agitação, pode ser visto como um sujeito esquisito. Em época de tempo acelerado e mudança constante, ele escolhe fazer algo que detém a pressa, o fluir constante, a velocidade, o imediato, para exigir o tempo lento da observação e da reflexão, o desvio do olhar e a disposição para uma participação no silêncio. (CADEMARTORI, 2007, p. 124-125)

Eis mais um desafio da alegria cultural escolar: fomentar nos alunos a alegria de conhecer, de descobrir, no caso da pesquisa que aqui se textualiza, através de textos literários, em uma sociedade em que o tempo para a leitura se contrapõe ao ritmo acelerado da humanidade.

Com essas reflexões, é possível que Sylvia mencionasse as palavras da sua amiga Ana Maria Machado, lidas no livro Contracorrente: conversas sobre leitura e política, recebido pela Fada Carioca através dos Correios Celestes14. De acordo com Machado:

[...] só na sociedade moderna de consumo é que surgiu o livro descartável, mercadoria como outra qualquer, planejada para ficar obsoleta em pouco tempo e suscitar nova demanda após o consumo – o livro encomendado pela editora de acordo com uma fórmula previsível. Para se inserir numa série redundante, feita de vários outros quase iguais a ele. (MACHADO, 1999, p. 85)

13 Em uma livre tradução: “Tudo é dispensável, nada é verdadeiramente necessário, nada é insubstituível. Tudo nasce com a marca da morte. Tudo se apresenta com data de validade. Tudo, o nascido ou o feito, tudo que é humano ou fabricado, é dispensável.”

14 Mais informações podem ser lidas no ensaio “Papos de anjo”: conversas sobre alegrias políticas, literatura e escola.

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Eu acrescentaria que, por outro lado, o livro, mesmo como objeto de consumo, também é subversivo e recorreria às palavras de Lígia Cademartori:

[...] mesmo sendo o livro uma mercadoria, os conceitos que animam certos textos subvertem a lógica de uma sociedade marcada pelo descartável, contrariando, assim, o desejo incessante por objetos novos, ao propor algo mais essencial do que a cultura da compra e do desperdício. (CADEMARTORI, 2007, p. 123)

A reflexão de Cademartori dialoga com um conceito de literatura de Ezra Pound (2006, p.33): “literatura é novidade que permanece novidade”. As obras de literatura que compõem o patrimônio cultural da humanidade não são descartáveis por serem antigas, pelo contrário, muitas obras escritas, em décadas ou séculos passados, são elevadas à categoria de clássicos, em consideração à capacidade do que elas têm a comunicar a diferentes gerações. Se chamarmos Italo Calvino (1993,p.11) ao nosso diálogo, o autor afirmará que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.

Finalmente, eu contaria à Sylvia que reconheço a sua obra literária como potência para discussão sobre a alegria cultural escolar pela via da literatura. Assim, contrafeita com o pouco acesso das crianças a obras que compõem o patrimônio cultural da humanidade, considerando os caminhos propostos por Lajolo acerca de práticas que valorizem as leituras contextuais e, sendo desafiada pela incômoda situação da leitura literária na sociedade pós-moderna, eu lhe apresentaria a minha pergunta de pesquisa: que proposições pedagógicas podem ser construídas sobre a alegria cultural escolar com base na leitura do universo literário de Sylvia Orthof? Apresentaria o objetivo geral: inserir no debate sobre a alegria cultural escolar proposições pedagógicas fundamentadas na leitura do universo literário de Sylvia Orthof. E, quando ensaiasse apresentar o seu traçado metodológico, acredito que Sylvia me interromperia para exclamar: Ave alegria!

Talvez olhasse para o céu, e, vendo que já estava tarde e o suco de laranja já havia acabado há muito tempo, me daria duas beijocas e se despediria dizendo, como se me aconselhasse: “[...] toda palavra é pergunta/ e a resposta traz dentro!”. Por último, assoviaria para o céu e dele surgiria o Dragão Severino, que trabalha para Dona Lua15. Sylvia subiria nas costas de Severino e o Dragão alçaria voo, enquanto ela acenaria para mim-, “sempre surpreendente”.

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2.1 RABISCOS METODOLÓGICOS

Após me despedir de Sylvia, ficaria lembrando-me do versinho que ela me disse, ao se despedir: “[...] toda palavra é pergunta/ e a resposta traz dentro!” (ORTHOF, 2007, p.11). Ao desenvolver uma pesquisa científica, temos um objetivo geral, que é elaborado a partir da pergunta de pesquisa e, no decorrer de sua realização, buscamos responder essa pergunta. Para encontrar as respostas, embora Sylvia escreva que a resposta já está dentro dela, precisamos de um corpo de regras e diligências estabelecidas para realizar a pesquisa

.

Antônio Carlos Gil (2002) nos oferece isso de que precisamos e a que chama de metodologia. Para ele, metodologia é um conjunto de procedimentos a serem seguidos na realização da pesquisa. Marconi e Lakatos (2003, p. 221) nos dizem que a metodologia da pesquisa é o que responde, a um só tempo, às questões como?, com quê?, onde?, quando?. Eu acredito que a metodologia está para a pesquisa, como os ossos estão para o corpo humano, sem os ossos, os humanos não teriam sustentação, escolhas metodológicas inconsistentes também afetam a sustentação das pesquisas.

Foi uma escolha teórico-metodológica escrever uma considerável parte deste texto na primeira pessoa do singular, o que eu justifico tendo como base o que teoriza Dominique Maingueneau no livro Análise de textos de comunicação: “Dizer “eu” significa ao mesmo tempo designar alguém e mostrar que esse alguém é precisamente aquele que profere o enunciado em que aparece esse “eu” (MAINGUENEAU, 2002,p.108)”. Lícia Beltrão (2006, p.57), em sua leitura do texto de Maingueneau, re-textualiza o escrito pelo pesquisador francês acerca da enunciação em primeira pessoa do singular da seguinte maneira: “[...] o indivíduo que fala e se manifesta como “eu” no enunciado é também aquele que se responsabiliza por esse enunciado”. Aliando-me aos autores, afirmo que escrevo em primeira pessoa do singular me responsabilizando pelo que enuncio.

Se escrever em primeira pessoa do singular foi uma escolha teórico-metodológica, alternar a primeira pessoa do singular com a primeira do plural em determinados momentos também o foi. Essa escolha se justifica pelas concepções bakhtinianas de dialogismo às quais me alio (Bakhtin, 1997). Compreendo que as minhas palavras são todo tempo atravessadas pelas palavras dos outros, nos

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momentos em que essa mistura de vozes exige ser explicitada, opto pela mudança da primeira pessoa do singular, para primeira pessoa do plural.

É pelo viés do dialogismo que outro fator desta dissertaçãodeve ser considerado: a presença de vozes de sujeitos muito distintos. Vozes de pesquisadoras e pesquisadores, escritoras e escritores, pessoas daqui, dali e dacolá, todas convidadas ao diálogo, pois a concepção de pesquisa em Ciências Humanas a qual me filio também tem fundamento em uma concepção bakhtiniana na qual a construção de conhecimento sobre os sujeitos precisa ser sempre realizada de forma dialógica (BAKHTIN,1997). Seguindo essa concepção, encontro apoio nas palavras de Pessanha (1997, p.19):

Portanto, as ciências fundamentadas nas opiniões precisam do assentimento dos outros e só se constituem dentro dessa trama. Elas não podem ser monológicas, mas dialógicas e plurilógicas. Realizam-se dentro de um dialogismo para que os outros Realizam-se pronunciem, emitam suas opiniões. A partir dessas opiniões, constrói-se a trama epistêmica, científica, dotada de suficiente consistência para merecer o nome de ciência: uma ciência de tipo dialógico e dialético, não monológico mas argumentativa, persuasiva, capaz de interferir nas pessoas, em suas mentes, inteligências, desejos, vontades.

Voltando às escolhas metodológicas, também optei por iniciar a minha pesquisa estabelecendo um diálogo ficcional com A escritora Sylvia Orthof.

A minha opção pela ficcionalidade teve início com experiências empíricas, no Curso de Licenciatura em Pedagogia. Entre os oitos semestres de Curso, fui aluna dos componentes EDC B84 – Linguagem e Educação, EDC 302 – Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e EDC 306 – Leitura e Produção de Textos, ministrados pela Profa Lícia Beltrão. No mesmo período, sob sua coordenação, fui bolsista do Projeto Leitura Com..., projeto inscrito no Programa Permanecer da Universidade Federal da Bahia, que objetivava democratizar a leitura literária, mobilizar o acervo literário do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e ampliar as capacidades leitoras dos estudantes que participavam das atividades.

Envolvida nessas duas experiências, como aluna e como bolsista, comecei a observar as possibilidades de diálogo entre a ciência e a ficção. Citarei dois exemplos.

Como aluna, experimentei, na EDC 302 – Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa -, ficcionar a prática de ensino de Língua Portuguesa, sendo professora da Escola Bom Tempo. Como tal, vivi sua dinâmica, interagi com gestoras, professores e colegas e me responsabilizei, junto a outros professores, pelo

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planejamento de aulas de leitura, oralidade, escrita e aspectos linguísticos, visando a práticas com estudantes de escolas públicas do Ensino Fundamental, anos iniciais

Como bolsista do Projeto Leitura Com..., planejei e implementei a oficina “Trem dos Escritores”, desenvolvida com crianças do Grupo 5 da Educação Infantil ao quinto ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Batista Vasco da Gama16. Nessa oficina, convidamos as crianças a imaginarem a escola como uma estação de trem. Naquela estação, a cada semana, um escritor desembarcaria e compartilharia conosco parte da sua obra. Com o convite aceito pelas crianças, o movimento da estação foi iniciado. O primeiro escritor a desembarcar do trem de ferro foi o maquinista Manuel Bandeira. Após o Manuel, desembarcaram Sylvia Orthof, com o livro Ervilina e o Princês, ou Deu a louca em Ervilina, Ziraldo, com o livro A Bela Borboleta, Mary Arapiraca, com o poema A Locomotiva do João e Ruth Rocha, com o livro O trenzinho do Nicolau.

Se, com Vaihinger, eu aprendi sobre a relevância da ficção para o fazer científico, com Roland Barthes, eu aprendi sobre a linguagem literária e a linguagem científica. A importância de estudar essa produção de Barthes se dá em virtude das duas linguagens se fazerem presentes em meu texto e pela minha crença de que a literatura pode contribuir para com o fazer científico. Alio-me às palavras de Roland Barthes, quando o autor afirma que

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (BARTHES, 2013, p. 18-19)

Continuando o diálogo com Barthes, ele prossegue escrevendo que “[...] a literatura trabalha nos interstícios da ciência” (BARTHES, 2013, p. 19), ou seja, a literatura trabalha na fenda da ciência, nos seus intervalos. Ainda no mesmo texto, Barthes pontua que “a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa” (BARTHES, 2013, p. 19). Eu acredito que a ciência não precisa ser grosseira, há lugar para a delicadeza, para as subjetividades, para implicação no fazer científico. Acredito em uma ciência não neutra. Busco um exemplo

16 Escola que integra a Rede Municipal de Ensino da cidade de Salvador, localizada no Vale das Muriçocas

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dessa ciência em que acredito, nos estudos feministas, quando as pesquisadoras da década de 70, em seus estudos feministas começaram a se aproximar da academia e provaram que é possível fazer uma pesquisa implicada, com sentimento, sem deixar de lado os status de ciência. As primeiras pesquisadoras feministas sofreram a recusa da academia e tiveram até suas pesquisas contestadas, mas nos deixaram um legado. Ao tratar das contribuições dos primeiros estudos feministas, Guacira Lopes Louro (1997, p.19) nos conta:

Coloca-se aqui, no meu entender, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu caráter político. Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído, convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a lançar mão, cada vez com mais desembaraço, de lembranças e de histórias de vida; de fontes iconográficas, de registros pessoais, de diários, cartas e romances. Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinha (e tem) pretensões de mudança. (grifos da autora)

É valorizando a herança deixada por essas pesquisadoras e reafirmando a crença da potência da literatura para o fazer científico que borrei as fronteiras entre o científico e o literário e assumi desenvolver uma pesquisa nisso interessada, sem deixar de lado o afetivo, a partir das já mencionadas concepções de afeto (SPINOZA, 2016) (LEONE, 2014). Ressalto ainda que, ao escrever dessa maneira, não me eximo do compromisso com o rigor acadêmico, para tanto me alio aos pesquisadores Roberto Sidnei Macedo, Álamo Pimentel e Dante Galeffi e defendo Um Rigor Outro, ou seja, um rigor que não se confunda com a rigidez nem com a pureza, um rigor em que haja espaço para inventividade na pesquisa. Roberto Sidnei Macedo, acerca de uma pesquisa com rigor, anuncia:

A pesquisa, segundo nossas posições é, acima de tudo, uma aventura pensada, implica conhecimento historicamente acumulado, mas, também, um imaginário em criação; é produzida numa comunidade de argumentos, existe para provocar alterações, turbulências de escalas, inacabamentos, relações instáveis, consensos não resignados. É neste movimento que a idéia de rigor deve se inspirar e ser constituída. (MACEDO, 2009, p.86)

Feitas essas considerações, é necessário prosseguir para tratarmos dos outros aspectos metodológicos da pesquisa que ora textualizo.

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Ao intitular o traçado metodológico da minha pesquisa de “Rabiscos Metodológicos”, me inspiro na narrativa A Rainha Rabiscada, de Sylvia Orthof. Nela, A Rainha do lápis cria reinos, estradas e florestas. Chegando à Brasília, a rainha decide rabiscar novos caminhos para a política do nosso país, usando o seu lápis. Essa personagem me inspira pela sua capacidade de criar, refletir sobre o a sua criação e, se necessário, reformulá-la. Penso que a metodologia de uma pesquisa científica também deve implicar em constante reflexão sobre as ações. Cada decisão deve ser acompanhada de reflexão, em alguns momentos, é preciso mudar os rumos da nossa pesquisa e tentar algo novo. Foi através de rabiscos, feitos e refeitos, pensados e repensados, todos motivados pelo meu problema de pesquisa, que cheguei às duas linhas metodológicas que serão expostas na subseção seguir.

2.1.1 Rabiscando duas linhas

Pensando na realização da minha pesquisa, estabeleci dois caminhos, ou duas linhas a serem seguidas. Estas linhas não são caminhos opostos, são caminhos que se cruzam, mas cada uma tem sua especificidade, uma linha me conduz à pesquisa teórica, e outra linha me conduz à empiria.

Na primeira linha que me conduz à pesquisa teórica, o primeiro movimento realizado foi a leitura de obras de Sylvia, considerando a diversidade de gêneros (poemas, narrativas em versos, contos, crônicas, gênero dramático, autobiografia) e a diversidade de temática (narrativas com personagens do universo feérico, que apresentam animais como protagonistas, com personagens que marcaram a história da humanidade, como Mozart, Santos Dumont, Vitalino e Hieronymus Bosch). O segundo movimento consistiu em criar motes a partir dos sentidos atribuídos ao conjunto de livros de Sylvia lidos previamente. Para a elaboração dos motes, foi pensada a relação entre a produção literária de Sylvia Orthof e as alegrias culturais escolares. Os motes resultantes desse processo foram: “Sylvia Orthof e o patrimônio cultural da humanidade” e “Sylvia Orthof e a política”.

Referentes ao primeiro mote, os livros selecionados foram: A Onça de Vitalino, Sonhando Santos Dummont e Cadê a peruca de Mozart?. Referentes ao segundo mote, os livros selecionados foram: Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro, Quem roubou meu futuro?, Papos de anjo, Ervilina e o Princês ou Deu a louca

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em Ervilina e O Fantasma Travesti. Os livros que compõem os motes foram analisados, tendo como suporte a concepção polissêmica de leitura, conforme Orlandi (2001), já exposta na seção Ponto de tecer pesquisa deste texto. Tudo quanto foi produzido com as análises foi textualizado sob forma de ensaio.

A inspiração para textualizar os estudos do universo literário de Sylvia Orthof sob a forma de ensaios provém da tese A escrita do outro: anúncios de uma alegria possível, de autoria da Profa. Dra. Lícia Maria Freire Beltrão. Interessada pela escrita escolar e pelas possibilidades de renovação de sentidos no trato da escrita dos alunos por parte da escola, a pesquisadora textualiza seus estudos em quatro ensaios. Motivada pela leitura da tese, me alio ao argumento defendido pela autora para escolha do gênero: “Talvez como todo gênero textual, é também o ensaio uma produção híbrida, um texto “polifacetado”. A sua definição, por isso, não se faz de modo linear, requer um grau mais sofisticado de conceituação”. (BELTRÃO, 2006, p. 56) Da comunidade argumentativa evocada pela autora para tratar do gênero “ensaio”, me alio a Massaud Moisés (2004).

Ao tratar do gênero ensaio, Massaud Moisés (2004) confessa ser praticamente impossível delimitar de forma rigorosa os limites para escrita ensaística. Moisés faz referência a Montaigne como precursor da denominação “ensaios”, quando denominou em 1580 os seus textos de Essais. O filósofo Theodor W. Adorno, também teorizou sobre o gênero ensaio, em seu conhecido texto O ensaio como forma, ele levanta características do gênero e dos seus escritores. Sobre o assunto, ele expressa o que segue citado:

Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sobre as condições geradas pelo ato de escrever. (ADORNO, 2003, p. 35)

É com essa aspiração que, após ler a obra de Sylvia Orthof por diferentes ângulos, considerando o seu texto verbal, as ilustrações, as relações entre essas duas linguagens, questionando e refletindo sobre o que ali está posto, desejei, ao compor os meus ensaios, resgatar a polissemia que foi valorada no momento de estudo dos livros. Pretendi trazer para os ensaios o que foi principal para responder à minha pergunta de pesquisa, sem me esquecer dos momentos de riso, como nas situações de quiprocó em Uxa, ora fada, ora bruxa, como também aqueles em que as minhas

Referências

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