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4. Trajetória metodológica

4.1. Primeiros passos

Inicialmente, eu pretendia estudar a formação e a atuação do psicólogo na saúde. Apesar de ter deixado a função de tutoria da RMS há alguns anos, a transformação vivida com os profissionais envolvidos (residentes, docentes, trabalhadores, usuários) foi tão impactante, que senti a necessidade de saber mais como a “mágica” acontecia em dois anos de residência. Chamo de “mágica” porque recordo bem de como os residentes chegavam − em geral, bem inseguros por serem recém-formados – e de como, na avaliação formativa final, constatávamos uma grande mudança.

Começamos o mergulho na relação RMS e formação do psicólogo buscando identificar os Programas de Residência em Saúde da Família (PRMSF) no Brasil que disponibilizavam vagas para psicólogos. Mas, por que somente os PRMSF? Por trabalhar em uma residência nessa modalidade e na APS por muitos anos, era perceptível o quanto o trabalho em equipe multiprofissional e no território deslocava os saberes e práticas já estabelecidos nos campos profissionais da saúde. Logo percebi que teria que incluir outros

programas que também tivessem como cenário o ambiente extra-hospitalar ou comunitário, tais como a saúde mental e a saúde coletiva; acompanhando o movimento de inserção do psicólogo nas políticas públicas de saúde. Nesse momento, pretendia relacionar o treinamento fornecido com a demanda do campo profissional, para saber se a residência preparava, de fato, para a atuação.

O primeiro desafio foi obter as informações sobre as residências multiprofissionais e em área profissional da saúde no país, correlacionadas tanto ao MEC quanto ao MS. Chamou- me atenção que o levantamento de informações acerca de uma política com mais de dez anos de implantação se configurasse como um desafio quase intransponível. Assim, com objetivo de conhecer a dimensão da quantidade de programas e de residentes, reduzi o recorte para o Nordeste e acrescentei novas buscas nos editais mais recentes disponíveis na internet de cada programa.

De acordo com esse levantamento, encontrei 55 Programas Multiprofissionais em Saúde (PRMS) no Nordeste, sendo 26 no âmbito hospitalar (Apêndice A)10 e tendo como foco programas que atuam nos territórios (base comunitária), contabilizando 29 PRMS, sendo residências integradas que apresentam ênfase comunitária e hospitalar (03); na atenção básica/saúde da família (15), na saúde coletiva (06) e em saúde mental (05). Em relação às vagas para psicólogos, foram ofertadas 141 vagas nos editais do período de 2014 a 2016, em todos os programas multiprofissionais do Nordeste, sendo, ainda, 27 vagas para ampla concorrência em programas de saúde coletiva. Essa breve investigação já indicou a RMS como relevante espaço para a categoria. Então, comecei a refletir sobre os(as) psicólogos(as) que buscam esse tipo de formação: por quais motivos e como esse processo produz novos modos de fazer pensar a psicologia na saúde?

10 Levantamento realizado em julho de 2016 por meio de sítios eletrônicos das instituições de ensino que

A primeira intenção foi abarcar os psicólogos egressos de todos os programas do Nordeste por meio de questionário eletrônico. Porém, a realidade dos programas de RMS era muito diversa. Assim, decidi recortar ainda mais, focando nas RMS do Ceará, cenário que abarcava tanto um dos primeiros programas de residência multiprofissional em saúde da família no país quanto programas que acabaram de formar a primeira turma. Além disso, a proximidade com essa realidade nos permitiu articular a pesquisa com muitos pontos da minha trajetória pessoal. Assim, eu questionava: como esse tipo de formação marca os egressos? Será que imprime neles um novo modelo de trabalho? Em que medida a experiência da residência se sustenta na prática e provoca novos modos de subjetivação?

Pesquisar sobre a formação do psicólogo e sua articulação com as residências em saúde diz profundamente acerca da minha própria trajetória profissional. Após dez anos do término da graduação em psicologia, da conclusão do mestrado em saúde pública e de estar atuando na docência na área da saúde, havia uma imensa vontade de estudar a formação do psicólogo. Enfrentava, cotidianamente, os desafios da sala de aula e compartilhava com os colegas as “dores e delícias” de ser psicóloga-professora. Somado a isso, a experiência de tutoria de RMSF no interior do Ceará me marcou profundamente por possibilitar acompanhar as transformações cotidianas dos profissionais de diferentes categorias ao longo de dois anos; por fortalecer o compromisso com o SUS; e por me fazer assumir a preferência profissional pelos trabalhos na Atenção Primária à Saúde (APS)11. Em especial, exercer a tutoria entrelaçou profundamente a minha caminhada junto à docência. Outras experiências docentes na saúde, em diferentes categorias profissionais (psicologia, farmácia, medicina e enfermagem), e também na pós-graduação foram relevantes para mim, sempre tomando como referência a experiência da RMS.

11 Atenção Primária à Saúde: denominação geral para a atenção ambulatorial de primeiro contato. No Brasil,

Ao trabalhar como professora, na área da saúde desde 2008, no interior do Ceará, eu observava que vários psicólogos(as) egressos(as) das RMS estavam entrando na docência logo após o término da residência, muitas vezes ainda sem experiência de mestrado ou com este ainda em curso. Assim, consideramos essa trajetória de inserção na docência dos(as) egressos(as) como campo de intervenção da pesquisa.

A abordagem qualitativa caracteriza pesquisas que têm como objeto de estudo fenômenos complexos e multidimensionais que envolvem a compreensão de processos simbólicos e intersubjetivos (Bosi, 2015). Nesse sentido, a qualidade/qualitativa está relacionada à subjetividade, ou seja, às vivências, aos sentimentos, às emoções, que não cabe quantificar porque expressam as singularidades (Bosi, 2002; Bosi, 2012).

Olhar a trajetória docente a partir do conceito de professoralidade − entendida como como processo de criação que produz modos de pensar, agir e sentir-se (Pereira, 1996) −, implica abordar a produção da subjetividade. Bosi (2012) afirma que “a natureza do objeto condena o método” (p. 578). É nesse sentido a adoção da pesquisa qualitativa.

Entretanto, falar de pesquisa qualitativa refere-se à epistemologia qualitativa, tradição composta por diferentes vertentes, de diversas origens disciplinares e de diversos paradigmas (Bosi & Macedo, 2014), tornando-se necessário demarcar o entendimento de onde parti.

Em coerência com a problemática proposta e com o referencial teórico-analítico exposto no capítulo inicial, os pressupostos da pesquisa-intervenção possibilitam investigar a partir de outros parâmetros de cientificidade. A realidade não está dada e nem é interpretada pelo pesquisador, é inventada no co-engendramento pesquisador-mundo. Isso significa tomar a realidade como rizoma (Deleuze & Guattari, 1995), que “(...) não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais” (p. 23), e que exigiria resistir ao formato de pensamento causa-efeito das ciências positivas, em geral, solo no qual os profissionais de saúde foram forjados nas

graduações. Assim, esses pressupostos provocam-nos a acolher o imprevisível e o que espanta, ao invés de empurrar para “baixo do tapete” o que acontece no processo da pesquisa. A pesquisa-intervenção se coloca como tendência nas pesquisas participativas e propõe uma intervenção sócio-analítica e micropolítica na experiência social (Aguiar & Rocha, 2007), reafirmando o caráter político de toda investigação.

Nessa perspectiva, pesquisar é, antes de mais nada, uma atitude que interroga os homens e os fatos em seu processo de constituição, trazendo para o campo de análises as histórias, o caráter transitório e parcial, os recortes que a investigação imprime nas práticas e a forma como produz seus próprios objetos-efeitos. (Aguiar & Rocha, 2007, p. 654)

Nesse sentido, evidencia-se o mito da neutralidade científica capaz de colocar todos os envolvidos diante de suas implicações. Com suporte nas contribuições de Lourau (1993), a pesquisa-intervenção sugere a análise das condições de pesquisa (implicações do pesquisador com o objeto de estudo, com a organização que realiza a investigação, com a encomenda social e demandas sociais; implicações sociais, históricas e modelos utilizados, e implicações nos meios de exposição dos resultados) como caminho para análise de implicação. Aguiar e Rocha (2007) argumentam que a implicação não é uma questão de decisão consciente do pesquisador, mas uma tentativa de quebra das formas instituídas ao colocar em questão os lugares ocupados pelo pesquisador e os riscos decorrentes dessas posições. Lourau (2004) também recomenda o conceito de sobreimplicação, isto é, a negação da análise de implicação marcada pelo ativismo. Na pesquisa, quanto maiores as certezas, maior a sobreimplicação.

Aguiar e Rocha (2007) informam que, tanto o conceito de analisador quanto de implicação, sugerem a inversão do “otimismo socrático”, de “conhecer para transformar” para “transformar para conhecer”. Essa inversão é uma grande contribuição do movimento institucionalista para a pesquisa, uma vez que afirma que toda investigação científica já é intervenção.

Em síntese, assumir os pressupostos da pesquisa-intervenção exige um exercício crítico do presente, que implica “desestabilização e deslocamento dos lugares de saber e poder que instituímos e nos instituem, interrogando ‘o que somos’ e, mais especificamente, aquilo que já não somos mais e estamos em vias de ser” (Neves, 2002, p. 19).