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3. Inserção: compondo o plano de análise

3.2. A Psicologia e o campo da saúde

3.2.1. Psicologia como ciência e profissão no Brasil

Neste tópico, discutiremos a constituição do campo psicológico, tomando como referência a relação entre psicologia e saúde. A seguir, pretendemos problematizar a relação da psicologia com o campo da saúde no Brasil, buscando compreender as ressonâncias da passagem de um campo liberal privado para os espaços das políticas públicas na atuação e na formação de psicólogos (Ferreira, 2011; Paulon, 2013).

A psicologia tornou-se disciplina científica com o advento das ciências humanas, propondo-se a investigar o que torna os indivíduos sujeitos da razão, ou seja, os processos cognitivos conscientes, dentro das condições de possibilidade da episteme da modernidade industrial (Medeiros, Bernardes & Guareschi, 2005; Prado, 2014). Assim, nasce como um conhecimento técnico que ampara práticas de ordenamento e regulação social ao delimitar faixas de normalidade, “(...) marcando os normais e os diferentes pelo jogo das identidades e reconduzindo os desviantes (Prado, 2014, p. 88).

Europa ocidental, como modo de disciplinamento das populações, a psicologia não foi convocada para esse momento porque tomava como objeto indivíduos “saudáveis”. Entretanto, segundo Medeiros et al. (2005), os estudos laboratoriais dos processos da percepção e da consciência estabeleceram uma relação entre mente e organismo, alargando o campo disciplinar para o encontro com outros saberes, como a psicossomática, por exemplo.

Para Prado (2014), é a psicanálise freudiana que instaura o estudo da individualidade, servindo de solo epistêmico para as psicologias. Aqui, o foco não é mais o sujeito que conhece, mas o desconhecimento que o sujeito tem de si. É no inconsciente, portanto, que se localiza, segundo a psicanálise, a verdade do sujeito. Tendo como referência a medicina, Freud e Jung enfocaram as afecções mentais que produziam sintomas no corpo. Nesse momento, a psicologia ligou-se à saúde por meio da psicopatologia (Medeiros et al., 2005; Zurba, 2011). Assim, foram necessárias estratégias de autoconhecimento por meio de práticas de escuta e fala, tendo como referência o método clínico.

Tanto a medicina quanto a psicologia, ao focarem a saúde e nela investirem, conformam uma região de interioridade, de privatividade que se encontra no corpo ou na alma/mente, ou seja, tanto uma quanto a outra tornam materializáveis os corpos e as almas/mentes, realidades factíveis, artificiais, no sentido de serem forjadas e de criarem necessidades de investimentos públicos (Medeiros et al., 2005, p. 266).

Assim, a psicologia, juntamente com outros discursos sobre a saúde, promoveu o entendimento de que acessar o “eu interior” é processo de produção de saúde e de que esse “eu interior” está sempre em situação de incompletude, de inacabamento.

Segundo Prado (2014), “as psicologias que surgem até o final dos anos 1920 trazem o estigma do pensamento científico clássico, que é fragmentário, indutivista, quantitativista e positivista (...)” (p. 92); como não poderia deixar de ser a qualquer saber que se pretendesse ciência naquela época. A partir dos anos 1930, a psicologia começa a abrir-se para outros modos de produção de verdades, como a psicologia sócio-histórico-cultural de Vigotsky, por exemplo. Assim, dá-se início a um movimento de descolamento da biologia e de aproximação

das ciências sociais.

É no período pós-guerra, no entanto, que “(...) as psicologias ganham visibilidade e reconhecimento, transformando-se em tecnologia humana e política disponível à sociedade” (Prado, 2014, p. 96); principalmente, por meio das psicotécnicas e de sua aplicação nos mais diferentes contextos (exército, indústria, escola etc.). Essas práticas não propunham uma teoria do sujeito, eram, antes, “(...) tecnologias da subjetividade produzidas a partir do encontro com as formas de administração, de otimização, de adestramento dos corpos” (Medeiros et al., 2005, p. 267). Assim, produziram o “sujeito necessário”. Apesar de serem aplicadas no indivíduo, investiam nos grupos que precisavam ser regulados, moldando peças de uma engrenagem. Em relação à saúde, as psicotécnicas reforçaram e recriaram as noções de indivíduo, comportamento e adoecimento. Para Medeiros et al. (2005),

Objetiva-se, com as psicotécnicas, o nivelamento dos sujeitos em relação a critérios de normalidade e anormalidade que se aproximam da definição do conceito de saúde como ausência de doença. Nessa esteira, as práticas psicológicas passam a se ocupar do sujeito trabalhador, tanto nas organizações de trabalho quanto nas comunidades urbanas, formando um sujeito psicológico a partir da noção de funcionalidade (…). (p. 267).

A partir da década de 1960, um intenso movimento de mobilização popular em torno de causas sociais abre espaço para outras práticas psicológicas na clínica, na educação, nas organizações e na psicologia social (Medeiros et al., 2005; Prado, 2014). Não obstante, as experiências pontuais de psicólogos na área hospitalar e materno-infantil desde a década de 1950, a inserção dos psicólogos na saúde pública no Brasil pode ser demarcada a partir dos movimentos de Reforma Sanitária e Psiquiátrica que ocorreram no final da década de 1970 (Cezar, Rodrigues, & Arpini, 2015; Dimenstein & Macedo, 2012).

Foi por meio da saúde mental que grande parte dos psicólogos se inseriu na saúde, em um movimento de contestação do modelo manicomial e de proposição de novos modos extra- hospitalares de cuidado, ampliando o mercado de trabalho no âmbito municipal e estadual. A atuação estava voltada para a prevenção de transtornos mentais por meio da identificação de

fatores de risco nas populações e da abordagem psicoterápica. Entretanto, os avanços no processo de desinstitucionalização abriram espaço para práticas inovadoras que incluíram a psicologia no rol de saberes capazes de romper com a concepção tradicional de saúde mental e com práticas manicomiais (Dimenstein & Macedo, 2012).

Medeiros et al. (2005) assinalamque, nos espaços comunitários, a psicologia abriu-se para o fenômeno da população, em especial, em situação de vulnerabilidade, com intervenções na área de saúde mental, configurando o sujeito psicológico a partir dos processos mentais de saúde e adoecimento. No hospital, a psicologia passou a trabalhar na perspectiva da reabilitação pós-cirúrgica, posteriormente reconhecida como psicossomática, no sentido de compreender o que faz o indivíduo adoecer, produzindo um sujeito psicológico que sofre de afecções orgânicas. Na saúde comunitária, apropriou-se dos discursos da medicina preventiva, com ênfase nas ciências da conduta, recaindo sobre as formas de viver das populações como estratégia de controle.

Com a criação do SUS, estabelece-se não apenas uma política de saúde, mas modos de ser e se relacionar com o mundo, conforme a noção de cidadania e de sujeitos de direitos estabelecidos após a Constituição de 1988. Nesse sentido, ser cidadão e sujeito de direitos são formas de subjetividade, formas de viver e se relacionar consigo (Medeiros et al., 2005). Assim, quando a saúde passa a estar relacionada à produção de vida − ou seja, a condições físicas, psicológicas, sociais e como direito de cidadania −, tornam-se possíveis outros modos de se fazer saúde. E essa é justamente a virada epistemológica produzida pela saúde coletiva (Guimarães & Meneghel, 2003): a possibilidade de trabalhar com os determinantes e condicionantes da saúde.

Saúde passa a ser entendida como um processo singular e subjetivo de negociação permanente de sentido em um campo social, processo de construção e de desconstrução de normas para o enfrentamento da realidade e da (re)qualificação da vida. (Dimenstein & Macedo, 2012, p. 234).

possibilidades de existir, o arcabouço teórico-metodológico da psicologia torna-se insuficiente para intervir na saúde, demandando articulações com outros campos do saber e dentro da própria psicologia.

Vale destacar que, nas décadas seguintes, na regulamentação da profissão − que ocorreu em 1962 −, a clínica permaneceu como principal área de atuação da psicologia, justamente para atender à demanda da classe média em ascensão, em virtude do processo de industrialização do país. Os anos de 1980 e 1990 presenciaram a crise da psicologia, com o declínio de áreas tradicionais como a clínica, as escolas e as organizações; a perda de empregos com o impacto no poder de consumo da classe média; e as críticas ao baixo impacto do modelo clínico tradicional (Dimenstein & Macedo, 2012; Prado, 2014). Com o movimento de redemocratização do país e a universalização das políticas públicas a partir da Constituição de 1988, houve a necessidade de uma maior quantidade de profissionais para trabalhar nos serviços públicos e os cursos de graduação começaram a tentar responder a essa demanda incluindo disciplinas e estágios nessas áreas (Yamamoto & Oliveira, 2010).

A inversão da lógica sanitária do país, iniciada com o processo de implantação do SUS, possibilitou a ampliação da Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo de APS e implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); importante espaço de inserção profissional. Atualmente, o setor saúde é uma das áreas de maior contratação de psicólogos (Alves, Santos & Alves, 2019; Macedo & Dimenstein, 2013; Yamamoto & Oliveira, 2010).

A clínica continua sendo a principal área de atuação do psicólogo. O campoda saúde, contudo, ocupa já o segundo lugar, com significativo aumento de atividades desenvolvidas tanto no setor público quanto no privado, em serviços de atenção primária, secundária e terciária (Bastos et al., 2010; Macedo & Dimenstein, 2013; Yamamoto & Oliveira, 2010). Apesar de uma maior variedade de espaços de trabalho, os psicólogos parecem realizar as

mesmas atividades, em especial na área clínica, saúde e escolar, que os entrevistados descrevem de modo muito semelhante (Bastos, Gondim e Borges-Andrade, 2010). Na saúde, o modelo de atuação é o mesmo, independentemente de onde o psicólogo esteja, da clientela ou das necessidades de saúde da população (Dimenstein & Macedo, 2012).

O processo de restruturação urbana, a consolidação das políticas de bem-estar social nas áreas da saúde e da assistência social, bem como a expansão do Ensino Superior têm contribuído para a expansão e interiorização da profissão para municípios de médio e pequeno porte. É um movimento relacionado a uma maior participação da profissão nas causas importantes para o país (envolvimento com os movimentos sociais e diversas bandeiras políticas), no questionamento do compromisso social da psicologia e na busca por espaço no mercado de trabalho (Macedo & Dimenstein, 2011). Nesse sentido, a Psicologia, reconhecida como profissão urbana, encontra-se mudando de perfil. Os profissionais que operam nas pequenas e médias cidades superaram ligeiramente a quantidade de psicólogos nas capitais dos Estados, sendo um importante indicador de que os psicólogos estão chegando à grande parte da população que não tinha acesso anteriormente a esses serviços (Bastos, Gondim, & Borges-Andrade, 2010; Seixas, 2014).

Essa alteração no cenário impõe desafios à atuação do psicólogo, uma vez que exige lidar com demandas diferentes daquelas para as quais foram formados. Por exemplo, a lida com a população rural, que vive de uma economia baseada nos empregos públicos e nos benefícios sociais; ou com a pobreza, os conflitos políticos e a deficiência na prestação de serviços públicos (Dimenstein & Macedo, 2012; Leite, Macedo, Dimenstein, & Dantas, 2013). Para Paulon (2013), essas tensões forçam “(...) os limites daquilo que se instituiu como psicologia, instituindo novos fazeres que ressignificam também aquilo que se foi delineando como território de um saber-poder especializado” (p. 731).

subjetividade interiorizada para uma “geografia da subjetivação”, que parte das experiências concretas no território (Paulon, 2013, p. 732), ampliando o campo de análise dos profissionais.

Diferente disto, o que queremos chamar atenção é para a importância de uma torção ético-político-metodológica nos modos individualizados e despolitilizados de inscrição das práticas do psicólogo no trato com os processos coletivos, constituintes da vida e do viver (Barros & Neves, 2014, p. 91).

Dimenstein e Macedo (2012) apontam que o modelo hegemônico de atuação do psicólogo no SUS está amparado em concepções biologizantes e mecanizadas da vida, além de orientado para práticas prescritivas, com tendência ao trabalho individualizado - apesar da categoria fazer parte de equipes multiprofissionais - e ainda direcionado a intervenções pouco variadas e circunscritas à queixa e à remissão dos sintomas. Esse modus operandi não está distante da prática dos demais profissionais de saúde. Assim, podemos afirmar que a psicologia se tornou mais um operador a “(...) intervir na resolução de problemas e na correção dos desajustes e desvios identificados nas engrenagens sociais em nome da promoção da saúde” (Dimenstein & Macedo, 2012, p. 237). Por isso, tem sido alvo de duras críticas (Barros & Neves, 2014; Benevides, 2005; Dimenstein & Macedo, 2012; Macedo & Dimenstein, 2011; Ferreira, 2011; Leite et al., 2013; dentre outros).

Não é desconhecido que essa dimensão de controle e governo dos corpos e da vida é constitutiva da história da psicologia, que nasceu e se perpetuou, em nome da razão, comprometida com a produção de saberes e técnicas objetivas e neutras voltadas para processos de adaptação dos indivíduos às normas sociais, tomadas como naturais e a- históricas, servindo, dessa maneira, de suporte científico das ideologias dominantes, das desigualdades e da exclusão social. (Dimenstein & Macedo, 2012, p. 237).

As críticas às formações na área da saúde apontadas por Feuerwerker (2014) e Heckert e Passos (2009) – formação voltada para o mercado ou para a formação precoce de pesquisadores; produtivismo, dificuldade em desenvolver práticas interdisciplinares – também se aplicam às graduações em psicologia. Nesse sentido, a formação inicial precisa, muito mais do que abordar os conteúdos da saúde, problematizar o fazer. Portanto, um conhecimento que

prepare para a atuação em saúde deve enfrentar as tradições formativas da sua área, em geral, distante da lógica do SUS, e que configuram a identidade profissional que valoriza ações tecnológicas específicas e especializadas (no nosso caso, a clínica) em detrimento de uma disposição para o trabalho multiprofissional (Pereira & Ferreira, 2011, p. 256).

A formação do psicólogo deveria favorecer aspectos fundamentais para sua efetivação, a saber: a articulação política, a vinculação teoria e prática, a atribuição dos currículos para atuação na saúde pública e saúde mental, o oferecimento de estágios curriculares e residências multiprofissionais em instituições públicas no sentido de superação do modelo clínico tradicional e a estimulação da prática de pesquisa participativa no campo das políticas públicas (Macedo & Dimenstein, 2013). Assim, são necessários novos modelos acadêmicos (novas metodologias de ensino, organização dos conteúdos e cenários de aprendizagem) orientados por uma concepção crítica e reflexiva, baseada na construção do conhecimento amparado na problematização da realidade, da articulação teoria-prática e na participação ativa do aluno no processo de aprendizagem.

Bernardes (2012) enxerga que é possível, de fato, transformar a formação e o fazer profissional: “(...) há alguma possibilidade de resistirmos às racionalidades práticas ditadas pela psicologia aplicada e de produzirmos uma formação que esteja atenta às questões da vida, buscando transformações sociais e atendendo às necessidades das populações” (p. 223). A articulação academia-serviço-comunidade possui potencial para, no trabalho coletivo, entre professores, alunos e profissionais de saúde, produzir saúde de maneira interdisciplinar e sustentada nas necessidades da comunidade. Além disso, é fundamental entender o currículo para além das disciplinas cursadas, como conjunto de experiências formativas (estágios, extensão, eventos científicos etc.) ao longo da graduação (Pereira & Ferreira, 2011).

Nesta direção, a docência em psicologia deixa de se configurar como uma atividade complementar para ser atividade principal de parte dos psicólogos (Bastos et al., 2010).

Compreendemos que esse movimento envolve aspectos relacionados à valorização e à remuneração da profissão e de interiorização das oportunidades de mercado, em especial com a expansão das Instituições de Ensino Superior (IES) privadas.

Entretanto, no contexto de expansão e interiorização do Ensino Superior, o crescimento dos cursos de psicologia ocorreu principalmente em IES privadas, que priorizam o ensino em detrimento da articulação com a pesquisa e a extensão (Seixas, 2014). Nesse sentido, acaba por fortalecer um território da profissão direcionado para ações individuais e curativas. É justamente a pesquisa e a extensão que permitem o contato com o cotidiano, com as singularidades, e tencionam por modos de cuidar inovadores, rompendo com o modelo normalizador de condutas (Macedo & Dimenstein, 2011).

As mudanças na formação de psicólogos passam pela discussão das Diretrizes Curriculares para os cursos de psicologia (DCN), que foram aprovadas em 2004 e que, nesse momento, passam por processo de reformulação por meio de um amplo debate coletivo, desencadeado e organizado em parceria entre a Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Federação Nacional de Psicólogos (FENAPSI).

Para os estudiosos Cury e Ferreira (2014), pensar em termos de habilidades e competências implica em uma mudança na lógica de formação, que ainda demandará debates aprofundados e tempo para que os docentes possam apropriar-se dessa perspectiva, considerando que grande parte deles foi formada na lógica conteudista. Na minuta das novas DCN, que estão em processo de apreciação pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), a formação de professores de psicologia está garantida por meio de formação complementar ao bacharelado, devendo ser ofertada pela IES e facultado ao estudante fazê-la ou não. São mais 1.000 horas de formação abordando conhecimentos e práticas acerca das políticas públicas educacionais, abordagens teóricas que caracterizam o saber educacional e pedagógico e

conteúdos na perspectiva da promoção de uma educação inclusiva.

Diante dos desafios expostos anteriormente na formação de psicólogos para atuarem nas políticas públicas e de maior espaço na docência como área de atuação com a expansão do Ensino Superior, torna-se fundamental problematizar como vem se dando o ensino de psicologia e quais são as principais questões acerca do tema.