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3. O ATIVISMO JUDICIAL NA APLICAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

3.1 Judicialização da saúde

3.1.2 Princípio da Reserva do Possível

Expressão ‘’Reserva do Possível’’ é advinda de uma decisão da Corte Constitucional Germânica de 1972, em caso que ficou conhecido como ‘’numerus

clausus’’, que discutiu o direito de acesso às vagas do curso de Medicina nas

universidades de Hamburgo e Munique, tendo os alunos que não foram aceitos nas referidas universidade recorrido ao Poder Judicário, solicitando acesso ao curso, cujas vagas são limitadas. A resposta obtida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha foi de que a resposta estatal dada às demandas da sociedade devem estar de acordo com os limites da razoabilidade e possibilidade, tendo sido a estipulação de número de vagas considerada coerente com tal prerrogativa.

Trazida ao ordenamento brasileiro, tal teoria sofreu algumas modificações, deixando de estar intrinsecamente associada à ideia de proporcionalidade, tendo uma maior abordagem orçamentária, relacionada à disponibilidade dos recursos estatais e

chegando até mesmo a ser denominada como ‘’teoria do financeiramente possível’’.

A teoria da reserva do possível é, atualmente, um dos principais argumentos utilizados em posicionamentos contrários à efetivação do direito à saúde pela via judicial. No entanto, tem-se que, para que a maioria dos direitos sociais seja efetivado, é necessário que recursos públicos sejam destinados a tal finalidade, sendo falacioso ignorar tal fato, qual seja, o da onerosidade gerada pelos direitos, pois conforme afirma

Canotilho “os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos”. Assim, para um real comprometimento estatal com os direitos fundamentais

e sua execução nos casos concretos da sociedade, também é necessária uma responsabilidade orçamentária, ciente dos custos que tais direitos exigem.

Antes de se falar em necessidade, convém falar em prioridades, e a confusão entre estas pode ser em muito prejudicial na execução dos Direitos Fundamentais, pois as necessidades serão, logicamente, contínuas, e ainda que infindas, poderão ser classificadas como essenciais ou supérfluas. A destinação dos recursos deve dar-se, assim, de forma a atender necessidades urgentes e de maior prioridade, considerando o que é imprescindível ao cidadão. Apesar disso, ainda é extremamente comum a justificativa com embasamento na reserva do possível para a não concretização de direitos sociais.

Não deixa de ser compreensível a dificuldade de concretização total dos direitos sociais, com satisfação de toda e qualquer demanda, principalmente no que diz respeito à saúde, todavia, não convém que o Estado utilize-se desta realidade para burlar seu compromentimento com tais causas, utilizando tal cláusula de forma absoluta. E, não existindo, de fato, possibilidade de atendimento ao direito requerido, a escassez de recursos deve ser devidamente comprovada, cabendo ao Estado o ônus de demonstrar a realidade estatal que impede a execução da pretensão, não utilizando-se apenas de desculpa que garante burla a um dever constitucional.

No entendimento de Ingo Scarlet, é possível o desdobramento da teoria da Reserva do Possível em dois elementos, sendo um fático e outro jurídico. O primeiro faz referência à disponibilidade de recursos financeiros suficientes à satisfação do direito prestacional, enquanto o segundo relaciona-se com autorização orçamentária e legislativa, para que sejam destinados os recursos públicos. O mesmo autor ainda expõe:

Sustenta-se, por exemplo, inclusive entre nós, que a efetivação destes direitos fundamentais encontra-se na dependência da efetiva disponibilidade de recursos por parte do Estado, que, além disso, deve dispor do poder jurídico, isto é, da capacidade jurídica de dispor. Ressalta-se, outrossim, que constitui tarefa cometida precipuamente ao legislador ordinário a de decidir sobre a aplicação e destinação de recursos públicos, inclusive no que tange às prioridades na esfera das políticas públicas, com reflexos diretos na questão orçamentária, razão pela qual também se alega tratar-se de um problema eminentemente ompetencial. Para os que defendem esse ponto de vista, a outorga ao Poder Judiciário da função de concretizar os direitos sociais mesmo à revelia do legislador, implicaria afronta ao princípio da separação dos

poderes e, por conseguinte, ao postulado do Estado de Direito. (SARLET, 2001,p. 286)

Tal conceito ainda é bem ilustrado nos autos da ACP nº 2003.81.00.009206-7, movida pelo Ministério Público Federal contra a União, Estado do Ceará e Município de Fortaleza. Dulciran Van Marsen Farena cita o juiz Federal George Marmelstein Lima, desta forma:

As alegações de negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode é deixar que a evocação da reserva do possível converta-se "em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti- Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de direitos sociais (FARENA, 1997, p. 12).

Ressalte-se que, dentro da discricionariedade e autoexecutoriedade de que goza o Poder Executivo, detém este considerável autonomia para eleger onde investir os recursos públicos. Todavia, espera-se o mínimo de bom senso e ponderação por parte dos gestores em tal escolha, uma vez que o Estado tem o dever de tutelar os direitos fundamentais, apesar de não ser incomum a constatação de destinação de consideráveis quantias a setores supérfluos e que não garantem retorno relevante à população.

Exemplifica tal afirmação os gastos governamentais com publicidade institucional. Segundo levantamento realizado pela Associação Contas Abertas, as despesas com propaganda aumentaram cerca de 65% no ano de 2016. O levantamento aponta que despesas com publicidade passaram de R$ R$ 234,1 milhões no primeiro semestre de 2015 para R$ 386,5 milhões no mesmo período de 2016. Apenas em abril de 2016 foram destinados R$ 79,9 milhões para a despesa, 98% a mais do que no mesmo mês do ano anterior. Já no mês de junho, foram pagos R$ 82,1 milhões com publicidade, valor cerca de 50% superior ao de 2015. O levantamento foi realizado com base nos recursos pagos no período (pagamentos do ano mais os restos a pagar). Os

valores são correntes. Os dados consideram os gastos com publicidade de utilidade pública, institucional, legal e mercadológica.12

No entanto, em via oposta, ainda é espantoso o número de pessoas que morrem diariamente em razão de falta de instalações em hospitais, remédios e tratamento. Tal discrepância revela o grau de alarmância da situação atual, e o quão inconveniente faz- se o condicionamento do direito à saúde com embasamento na falta de dinheiro público. Assim, antes de qualquer afirmação relativa à escassez de recursos, deve-se analisar se, na verdade, estes não estão sendo utilizados em finalidades supérfluas e de forma injusta.