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Princípios Orientadores da Gestão de águas

3. ASPECTOS CONCEITUAIS DO GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS (*)

4.4 Princípios Orientadores da Gestão de águas

Os princípios orientadores da gestão racional do uso, controle e proteção das águas foram sintetizados por Veiga da Cunha et al. (1980):

- "A avaliação dos benefícios coletivos resultantes da utilização da água deve ter em conta as

várias componentes da qualidade de vida: nível de vida, condições de vida e qualidade do ambiente."

Esse princípio é auto-explicativo. Os benefícios devem ser considerados da forma mais ampla e abrangente, em termos de suas contribuições à qualidade de vida. Isso leva em conta o nível e condições de vida, ou seja, dentro de determinada condição que pode ser ditada pelo ambiente, tradições e cultura, qual nível de vida, representado pela possibilidade material de acesso à satisfação, pode ser atingido e que padrão mínimo deve ser alcançado compulsoriamente. A inserção da qualidade ambiental reflete a íntima relação entre a qualidade do ambiente e a satisfação, no presente e a longo prazo.

- “A unidade básica de gestão dos recursos hídricos deve ser a bacia hidrográfica”.

A bacia hidrográfica, através da rede de drenagem fluvial, integra grande parte das relações causa-efeito que devem ser tratadas na gestão. Embora existam outras unidades político- administrativas a serem consideradas, como os municípios, estados, regiões e países, essas unidades não apresentam necessariamente o caráter integrador da bacia hidrográfica, o que poderia tomar a gestão parcial e ineficiente caso fossem adotadas.

- "A capacidade de autodepuração dos cursos de água deve ser considerada como um recurso

natural cuja utilização é legitima, devendo os benefícios resultantes dessa utilização reverter para a coletividade; a utilização dos cursos de água como meio receptor de efluentes rejeitados não deve, contudo, provocar a ruptura dos ciclos ecológicos que garantem os processos de autodepuração."

O transporte, diluição e depuração de efluentes são considerados usos dos recursos hídricos. Os corpos de água têm uma capacidade de assimilação de resíduos que deve ser obedecida sob pena de haver poluição e degradação das águas. Essa capacidade de assimilação deve ser adequadamente rateada entre a sociedade, evitando o seu comprometimento unilateral. Por exemplo, uma indústria, ao lançar seus efluentes em um rio poderá utilizar toda sua capacidade de assimilação, impedindo que outros usuários o façam, sem que ocorra a poluição. Tal capacidade deve ser rateada entre os potenciais usuários promovendo o máximo de satisfação para a sociedade.

- ”A gestão de águas deve abranger tanto as águas interiores superficiais e subterrâneas como

as águas marítimas costeiras."

Esse princípio introduz na gestão de águas a unidade do ciclo hidrológico, que acarreta a inviabilidade de gerir separadamente o que é naturalmente unificado. A qualidade das águas interiores afetará a qualidade das águas costeiras. A gestão quantitativa e qualitativa das águas superficiais afetará a quantidade e a qualidade das águas subterrâneas e vice-versa.

- “A gestão dos recursos hídricos deve considerar a estreita ligação existente entre os problemas de quantidade e qualidade das águas."

Esse princípio amplia o anterior ao evidenciar que os aspectos qualitativos da água são indissociáveis dos aspectos quantitativos. A qualidade da água é estabelecida pela concentração de substâncias que nela são diluídas. O aumento de concentração e o conseqüente comprometimento da qualidade podem acontecer tanto pelo aumento da emissão dessas substâncias quanto pela diminuição do volume de água que as dilui. Ao serem estabelecidas obras que afetem o regime quantitativo dos corpos de água a sua qualidade será também afetada, e tais questões devem ser tratadas de forma conjunta.

- "A gestão dos recursos hídricos deve processar-se no quadro do ordenamento do território,

visando a compatibilização, nos âmbito regional, nacional e internacional, do desenvolvimento econômico e social com os valores do ambiente”.

O ordenamento territorial estabelece a compatibilização entre a disponibilidade e a demanda de uso dos recursos ambientais, evitando conflitos e promovendo a articulação das ações. O uso de um

recurso ambiental raramente ocorre de forma isolada. Para ficar apenas em um exemplo, a gestão dos recursos hídricos tem repercussões no uso do solo, e vice-versa. Dessa forma, as águas não podem ser geridas de forma isolada, sua gestão deve ser articulada no quadro da gestão de todos os recursos ambientais, que deve ser realizada pelo ordenamento territorial.

- "A crescente utilização dos recursos hídricos bem como a unidade destes em cada bacia

hidrográfica acentuam a incompatibilidade da gestão de águas com sua propriedade privada."

Alguns recursos ambientais, como o solo, podem ser geridos com razoável eficiência através da admissão da propriedade privada. Isso decorre de que a maioria das conseqüências de uma boa ou má gestão. Por exemplo, o grau de fertilidade e de erosão decorrentes do manejo agrícola é especialmente limitado, atingindo, via de regra, a própria área onde se verifica, ou seja, a propriedade agrícola. As perdas de fertilidade e de solo têm ocorrido, em certas regiões de forma preocupante, mas os proprietários tendem a reagir adequadamente às campanhas de conservação, pois os prejuízos decorrentes de não fazê-1o serão sofridos na sua maior parte por eles mesmos. Isso significa que os efeitos colaterais ou externalidades negativas são pequenos. No caso dos recursos hídricos isso geralmente não ocorre pelo fato de ser um recurso fluido e móvel. A poluição de um rio é um exemplo que mostra que nem sempre o seu causador é o que sofre suas conseqüências.

Existem certas correntes que argumentam que se a água fosse propriedade privada o problema de poluição não ocorreria. O proprietário, ao constatar a poluição, poderia exigir de seus causadores ressarcimento dos prejuízos. No entanto, existem enormes dificuldades para que essa tarefa seja devidamente realizada. Inicialmente, a constatação da poluição, que somente pode ser realizada visualmente quando atinge níveis elevados. Depois, a sua quantificação, para o que são necessários a amostragem freqüente e exames laboratoriais caros e inacessíveis a grande parte da população. Em seguida, o problema da identificação dos poluidores, tarefa que exige uma fiscalização permanente, incompatível de ser assumida por uma parte privada. Finalmente, a questão de responsabilização legal, que gera contenciosos que se arrastam por vários anos, com custos inacessíveis para grande parte da sociedade. Ocorrem, nesse caso, dificuldades insuperáveis de negociação e de responsabilização legal entre as partes envolvidas, devido às dificuldades de identificação do problema e de seus causadores, ao longo do tempo, e aos altos custos necessários para o acerto entre as partes. Diante disso, há uma tendência mundial de estabelecer a água como bem de propriedade do Estado (União e suas divisões). Isso no Brasil é objeto de dispositivo constitucional.

- “Todas as utilizações dos recursos hídricos, com exceção das correspondentes a captações

diretas de água de caráter individual, para a satisfação de necessidades básicas, devem estar sujeitas a autorização do Estado”

Esse princípio visa assegurar na prática o exercício de propriedade ou domínio da água pelo Estado e estabelecer um instrumento importante de gestão, pela possibilidade de compatibilizar o uso com a disponibilidade dos recursos hídricos.

- “Para pôr em prática uma política de gestão de águas é essencial assegurar a participação das

populações por meio de mecanismos devidamente institucionalizados”.

A participação direta da sociedade nas decisões visa o estabelecimento de uma descentralização de decisões, da consideração de diversos pontos de vista na gestão e de um comprometimento consciente da população com as medidas que sejam implementadas. Esse processo

de participação pública é de difícil implantação devido à falta de costume e à inexistência de mecanismos institucionais que a viabilizem. Uma das experiências de maior sucesso que têm sido desenvolvidas é a criação de comitês de gerenciamento de bacia hidrográficas, que reúnem representantes de entidades públicas e privadas, de usuários e de associações comunitárias, interessados na gestão de águas de uma bacia. A esses comitês são atribuídas funções de decisão sobre as medidas a serem implementadas para promoção do uso, controle e proteção da água na bacia.

- “A autoridade em matéria de gestão dos recursos hídricos deve pertencer ao Estado”

Por serem os recursos hídricos de propriedade ou domínio do Estado, cabe a ele a autoridade de gestão. Esse princípio estabelece, portanto, limitações à participação da sociedade na gestão, justificada pela constatação de que poderão existir interesses sobre as águas de uma bacia que extrapolam os interesses da população local. Exemplos disso são a energia elétrica, que pode ser gerada em um rio para ser consumida em centros distantes, e a proteção ambiental, que pode ser do interesse de toda sociedade e das gerações futuras, e entrar em conflito com os interesses locais. Esses exemplos mostram que a gestão de águas se desenvolve através de um processo de negociação social, que pode envolver parte substancial da sociedade atual e das gerações futuras. A autoridade de gestão deve pertencer ao Estado para permitir que tal negociação seja realizada de forma legítima, considerando todos os interesses envolvidos, tantos das gerações presentes quanto das futuras.

- "Na definição de uma política de gestão de águas devem participar todas as entidades com

intervenção nos problemas da água. Todavia, a responsabilidade pela execução dessa política deve competir a um único órgão que coordene, em todos os níveis, a atuação daquelas entidades em relação aos problemas da água.”

Sendo múltiplos os usos da água, diversas entidades deverão participar de sua gestão. A articulação e a harmonização dos diferentes interesses deve ser da responsabilidade de um organismo único, viabilizando a necessária coordenação, em todos os níveis de decisão existentes. Esse organismo tem sido projetado na forma de Conselhos Nacionais ou Estaduais de Recursos Hídricos, que reúnem representantes de ministérios e secretarias estaduais relacionados com a água, seus usuários e representantes da sociedade, atuando de forma sistêmica.