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2 Território, agricultura e mundialização: elementos conceituais para

2.1 Princípios teóricos da mundialização: o motor único

A geografia do mundo contemporâneo é cada vez mais densa e complexa. As transformações ocorridas na base técnico-produtiva das

empresas e as novas configurações na esfera normativa dos Estados-Nação possibilitam o surgimento de novas arquiteturas espaciais com integração regional, reestruturação produtiva e organizacional das empresas, especialização territorial produtiva, criação de redes intrarregionais e internacionais e mudanças na forma de agir do Estado na esfera econômica e social.

A totalidade desses processos, por vezes, fica obscura nas análises geográficas, uma vez que estas se limitam nos eventos ao invés de perceber os processos que os impulsionam perante o mundo (SANTOS E SILVEIRA, 1996). A configuração atual do mundo permite-nos pensar em um novo período histórico. A globalização deve ser entendida enquanto período histórico demarcado por eventos que se materializam nos lugares, aliando ciência e tecnologia, criando um meio técnico-científico-informacional (SANTOS; SILVEIRA, 1996).

Esse período demarca a emergência de um novo processo de acumulação econômica com a incorporação dos espaços econômicos periféricos na economia-mundo, com base na difusão dos conhecimentos egressos do tripé eletrônica/informática/comunicação (FURTADO, 1999). Este ciclo a que nos referimos é definido como mundialização do capital por Chesnais (1996).

A mundialização é o embricamento do político e do econômico, em que a esfera rentista e usurária do capital é largamente fortalecida por Estados e empresas para consolidar novas formas de acumulação em escala mundial. A mundialização deve ser entendida como processo que impulsiona o desenvolvimento do capitalismo no período histórico atual; a globalização, como forma de superexploração econômica atual.

A mundialização apresenta múltiplas dimensões, a saber: a financeira, a produtiva, a tecnológica, a comercial e a territorial. Em todas, a hierarquia territorial é fortalecida, colocando as economias periféricas, aparentemente excluídas da dinâmica econômica mundial, em situação de disputa com as economias centrais promovendo uma integração hierarquizada por meio das especializações produtivas, fortalecendo, desse modo, o discurso da competitividade nacional (FURTADO, 1999).

Como marco temporal, Alves (1999) acredita que a mundialização se instaura como forma dominante de acumulação a partir da recessão de 1974 a 1975, aliada às políticas neoliberais incentivadas por Estados capitalistas e materializadas em ações de desregulamentação econômica, privatização e liberalização de mercados. Furtado (1999, p. 98), ao analisar o fenômeno, destaca que “estaríamos em uma fase nova de desenvolvimento do sistema econômico, caracterizado pelo predomínio da dimensão que ultrapassa o quadro nacional e vai além da dimensão internacional tradicional”. Esclarece ainda que há duas correntes analíticas a respeito do surgimento da mundialização: a) os que a consideram uma evolução natural da expansão comercial do século XIX; e b) os que a consideram uma superação do crescimento econômico interrompido pelas grandes guerras do século XX.

Para o autor, a mundialização apresenta um conjunto de continuidades e rupturas na qual,

a onda atual de mundialização consiste na expansão sem precedentes do sistema, numa escala ampliada, segundo modalidades e características próprias, distintas das anteriores e que rompem com suas trajetórias. Estabelece-se agora hierarquias sem nenhum precedente histórico, que ocorrem em três planos: o das frações do capital, o dos grupos sociais e o das regiões ou espaços. Mudaram concomitantemente as relações entre as diferentes modalidades da riqueza, com novos setores dominantes, sobretudo com a financerização, com a busca de modalidades de valorização em que os grupos econômicos característicos do capital concentrado arbitram entre diferentes aplicações – em que funções produtivas e comerciais tomam cada vez mais as características próprias do capital financeiro (FURTADO, 1999, p. 100).

As barreiras de entrada a esse processo são quebradas nas economias nacionais com a adoção de políticas que fortalecem o comércio internacional como forma de superávit, estimulando a presença da empresa multinacional, por meio da concessão de crédito, isenção fiscal, investimento na infraestrutura pública para beneficiar a empresa que se instala para produzir mercadorias com ampla aceitação no mercado externo, por parte das empresas nacionais e internacionais.

As formas impositivas de normatizações globais visam atender às demandas de um mercado global que busca uma mais-valia universal,

chamada por Santos (2004, 2009) de motor único. A formação desse motor único, segundo o autor, tornou-se possível graças a um conjunto de internacionalizações dentro da mundialização que acirra a competividade como nunca antes visto, na qual os que não têm poder de concorrência acabam sendo engolidos e extinguidos. Para o autor,

esse motor único se tornou possível porque nos encontramos em um novo patamar da internacionalização, como uma verdadeira mundialização do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo, da informação. Esse conjunto de mundializações, uma sustentando e arrastando a outra, impondo-se mutuamente, é também um fato novo (SANTOS, 2004, p. 30).

O motor único, a mundialização, se realiza nos lugares graças à unicidade das técnicas (SANTOS, 2004, 2009) produtivas que possibilitam a criação de padrões de produção e consumo, difundidos em escala global para dar legitimidade ao processo de superprodução do sistema capitalista, que coloca em competitividade as economias nacionais, imperando a lógica das empresas: a lucratividade.

A unicidade técnica é possível pela convergência dos momentos (SANTOS, 2004, 2009), que se efetiva pela possibilidade de conhecimento e integração entre os lugares produtivos e os lugares de comando e consumo. Essa possibilidade é proporcionada pelo avanço nos sistemas técnicos de informação e comunicação. A introdução nas atividades agrícolas desses sistemas técnicos presume uma relação de instantaneidade entre os agentes dos processos produtivos, os agentes logísticos e os agentes financeiros.

Nessa configuração dos processos mundializantes que impulsionam o espaço global, Heidrich (2008) aponta para o processo de transnacionalização das economias, fenômeno antigo, segundo o autor, mas que ganha novos contornos com as políticas de regulação criadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Destarte, as áreas periféricas foram tomadas como estoques de matérias primas e mão de obra na expansão do capital. A incorporação das economias emergentes, a partir da segunda metade do século XX, atende aos interesses de apropriação mercantil do território com a exploração de recursos

naturais e com a formalização dos espaços do mandar e do fazer (SANTOS, 2008).

Sublinhe-se com relevância as políticas de financiamento externo comandadas por instituições como Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que colocam com proeminência a excessiva dependência de financiamento externo como forma de amparo às economias em desenvolvimento, aumentando a dívida pública e impondo medidas de austeridade aos governos (HEIDRICH, 2008).

Temos no cenário mundial a formação de um Sistema de Estados Nacionais paralelamente a um Sistema de Economias Internacionais que se desenvolvem de modo complementar e contraditório. Complementar porque a circulação de capitais entre os Estados-Nação é necessária à mundialização, para isso é preciso que haja uma (des)regulamentação dos mercados e uma padronização dos protocolos normativos de produção e consumo, possibilitando a efetividade de acumulação mundializada. Contraditório, no entanto, porque as relações ocorrem em escala regional ou internacional de abrangência limitada, fortalecendo as relações comerciais na forma de importação de matéria prima e exportação de manufaturados, no clássico modelo de comércio internacional (metrópole e colônia) de países que já participavam do sistema de comércio de escala internacional (Figura 1).

Esse cenário, por sua vez, processa-se na maior parte das vezes por meio de relações internacionais clássicas entre as nações de modo bastante conhecido. Primeiro, numa relação de simetria comercial entre países de semelhante poderio econômico; segundo, em relação de assimetria financeira em que países de elevada envergadura econômica exploram os recursos primários de países emergentes e, posteriormente, fazem-nos consumidores de produtos manufaturados. O esquema da Figura 1 mostra de modo simplificado como ocorre essa relação.

Subjacente a esse movimento de transformação econômica que passa o mundo, desencadeia-se um conjunto de reestruturações alicerçado no discurso do avanço tecnológico e do progresso técnico (ALVES, 1999), que chegam aos lugares em forma de verticalidades alijando a população dos seus interesses e formas tradicionais de reprodução social.

Figura 1 – Representação esquemática da mundialização.

Fonte: Elaboração Andrade, 2016 com base em Heidrich, 2008.

De acordo com Michalet (1984), a transnacionalização das economias nacionais não é fenômeno recente. Partindo de um entendimento que coloca a transnacionalização para além do comércio internacional, apresenta a criação das empresas transnacionais ou multinacionais americanas e europeias no final do século XIX. Para o autor, o grande equívoco está presente nas análises que se propuseram a estudar as empresas multinacionais, uma vez que, em suma, as empresas sempre foram analisadas como entidades independentes supranacionais, sem relação com os países de origem e de implantação. Tal fato resulta no “grave inconveniente [...] de dissociar este tipo de empresa de sua economia de origem, transformando-a em entidade autônoma” (MICHALET, 1984, p.30).

A partir dos anos 1950, a transnacionalização da economia foi liderada pelo movimento de multinacionalização das empresas, conduzida pelos países de capitalismo avançado em direção aos países de capitalismo tardio. A

exemplo desse processo, ocorreram intensos e excludentes processos de industrialização na América Latina, Caribe, África do Sul e Sudeste da Ásia, favorecendo e fortalecendo as elites locais na exploração de recursos territoriais, em atividades tradicionais, como as ligadas à agricultura e pecuária, ou com a implantação de novas atividades, em especial as industriais.

Nesse momento, uma geografia da transnacionalidade é forjada enquanto forma de transgressão da escala local. Passa-se de uma internacionalização das mercadorias para uma multinacionalização das empresas e caminha-se para uma mundialização da produção. O foco agora é o controle da produção em escala global. O motor desse fenômeno é o domínio dos mercados produtivos de forma intersetorial e transnacional, para uma reprodução plena e plural do sistema capitalista a partir da produção de mercadorias, na diversificação da esfera financeira pelos setores produtivos e pelo fortalecimento do capital usurário e rentista.

A mundialização é um fenômeno antigo na composição do sistema capitalista de produção. Contudo, metamorfoseia-se a cada período histórico (MICHALET, 1984; HEIDRICH, 2008). Seu aporte político foi renovado nas formulações neoliberais, em voga desde os anos 1970, cunhado nos países de capitalismo avançado, e sua base técnica apoia-se nos avanços dos sistemas de comunicação, informática e eletrônica, promovendo uma reestruturação produtiva com o surgimento de novas redes de circulação, produção e consumo, visualizadas num primeiro momento na empresa multinacional.

As multinacionais, por muito tempo, motivaram a compreensão do processo transfronteiriço da acumulação ampliada do capital. Por elas, as redes eram exemplificadas e usadas como argumento do fim das fronteiras ou do estreitamento entre os lugares. Estas empresas eram vistas como agentes independentes dentro do sistema econômico mundial. As trocas de mercadorias também corroboravam na argumentação de que um processo global de unificação/destruição dos lugares estava em curso. A ideia que a venda de uma mercadoria nacional para outro país colocava a produção e o consumo de ambos os países na condição de globalizados foi largamente difundida.

Heidrich (2008) e Michelet (1984) comungam da compreensão que não basta uma empresa comercializar seus produtos no mercado internacional para

que ela seja considerada uma empresa multinacional ou global, tampouco a abertura de uma filial em outra nação. A dimensão global ou nacional está na expansão geográfica do controle de produção e dos mercados, impondo padrões produtivos e de acumulação, alterando relações de trabalho e de reprodução social em escala extranacional, promovendo uma (re)estruturação da produção e nas relações de poder e soberania entre Estados e empresas.

A esfera do comércio internacional é apenas um dos elementos da mundialização, segundo Michalet (2003). A multidimencionalidade do processo de mundialização abarca a dimensão das trocas de bens e serviços, a mobilidade da produção e a circulação de capitais financeiros (MICHALET, 2003, p. 15). Sua complexidade está no imbricamento desses elementos e no modo como se apresentam no território e na formação das redes.

A superação do fordismo enquanto modo de regulação econômica da produção e da sociedade se fez necessária para que o capital adquirisse flexibilidade e mobilidade em sua reprodução. Aumentar a escala de atuação do modo de acumulação e diminuir os empecilhos a sua reprodução tornou-se objetivo a ser alcançado a partir dos anos de 1970. Para tanto, não bastava apenas expandir as fronteiras da produção e do consumo, era necessário que a intervenção do Estado deixasse de existir, ou fosse minimizada, e que a “mão invisível” do mercado passasse a prevalecer, o que ocorre em partes. Percebemos em alguns contextos nacionais que a intervenção estatal não deixou de existir, ao contrário, foi fortalecida, a exemplo do que acontece no Brasil com a formulação de políticas que regulam o mercado.

No entanto, o alargamento da área de produção e de consumo não ocorreu de modo global abarcando todas as partes da superfície terrestre, ou seja, todos os lugares: sua expansão ocorreu de modo seletivo e racional, marginalizando as áreas que não forneciam uma lucratividade imediata, criando frações de reserva no território.

Enquanto estratégia fordista, a ampliação do internacionalismo impulsionou a configuração econômica dos territórios nacionais, permitindo não só o comércio, mas também a aplicação de investimentos externos em economias frágeis, contribuindo com a relação de dependência entre as nações. Para Harvey (2012), esse movimento causou, dentro da economia mundial, oscilações e descompassos na medida em que a estagnação de

ciclos econômicos locais foi compensada por um crescimento razoável da economia mundial.

Compreender o processo de mundialização é discutir que o capitalismo, enquanto modo de produção e acumulação, não se desenvolve em uma única fração do território: sua sobrevivência é alcançada graças às relações que promove em territórios nacionais distintos e descontínuos. O uso desses territórios nacionais ocorre mediante um conjunto mundializado de técnicas e normas que racionaliza e padroniza a produção, a circulação e o consumo; um motor que impulsiona a vida econômica e social (MICHALET, 2003; SANTOS, 2009).

Desse modo, a concepção de mundialização que adotamos em nossa pesquisa é definida por Benko (1996) ao entender que a mundialização

[...] designa o espaço de acumulação flexível que se caracteriza por uma hipermobilidade do capital, tendendo a uma existência nomádica, e pela integração flexível de uma pluralidade irredutível de estratégias de exploração e de modos de dominação que põe em concorrência os assalariados, no seio, digamos assim, de uma imensa jornada de trabalho em escala planetária (BENKO, 1996, p.42).

Na concepção de Benko (1996), a mundialização compreende quatro dimensões espaciais, a saber: 1) a mobilidade de capital; 2) a formação e relação entre blocos econômicos; 3) a transnacionalização da economia e do comércio; e 4) o papel intervencionista do Estado no território. Ao considerar as múltiplas dimensões da mundialização, vemos que ocorre a superação da dicotomia local-global que os coloca na condição de complementaridade.

Coadunando com a concepção de mundialização, pautamo-nos pela noção de totalidade-mundo e os lugares, de Santos (2009), sendo estas as coordenadas que seguiremos ao examinarmos a materialidade presente de nosso objeto de estudo. Assim, a produção de frutas irrigadas no Rio Grande do Norte ocorre engendrada a movimentos externos de normatização e controle dos mercados produtores de alimentos e da integração entre produção e consumo por uma complexa rede de circulação de capitais e mercadorias em territórios nacionais descontínuos, mas com implicações diretas na esfera

socioespacial o Rio Grande do Norte foi inserido na esfera mundial com a produção de frutas.

Mundialização e globalização são termos usados como sinônimos ou até mesmo como expressões distintas para um mesmo fenômeno. No entanto, Chesnais (1966) apresenta as devidas distinções e esclarece que o termo global cunhado nas escolas de administração de empresas norte-americanas e amplamente difundido pelas multinacionais, a partir dos anos 1980, é impregnado de ideologias e transmite a ideia de homogeneização dos lugares e o fim das fronteiras, discurso que dentro da ideologia política do neoliberalismo faz todo o sentido.

Nessa lógica, a expressão global remete à estratégia traçada por grandes empresas, em especial as detentoras de monopólios, em que sua atuação se pauta em responder as seguintes questões: qual parte do globo me é possível explorar? Em que parte do globo posso expandir meu mercado?

A expressão mundialização, por sua vez, expressa um processo complexo de integração seletiva de frações do território com delimitações estabelecidas a partir da possibilidade concreta de acumulação, que de modo geral, mas não exclusivo, ocorre com a exploração da força de trabalho. Nesse sentido, a mundialização, na perspectiva de Chesnais,

[...] deve ser estritamente compreendida, como mecanismo complementar e análogo ao da ‘exclusão’ da esfera da atividade produtiva, que atinge, dentro de cada país, uma parte da população, tanto nos países industrializados como nos países em desenvolvimento (CHESNAIS, 1996, p. 18).

A mobilidade do capital é elemento central na compreensão da mundialização contemporânea. A esse processo Harvey (2012) chama de acumulação flexível e afirma que

ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobre tudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual tanto

entre setores como entre regiões geográficas [...] (HARVEY, 2012, p. 140).

Os avanços técnicos e o estreitamento entre a política das empresas e a política dos Estados (SANTOS, 1997) são elementos imprescindíveis para análise da mundialização como fenômeno que cria formas de apropriação/expropriação nos usos contemporâneos do território por meio das atividades produtivas. A mundialização como concretude dos processos de acumulação age enquanto motor único de um intenso e rápido processo de reestruturação produtiva conectando escalas e agentes, simultaneamente, em um sistema de produção flexível, mas racional e padronizado; um sistema- mundo para além da dimensão econômica.