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PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DO USO DA INFORMAÇÃO ARQUIVÍSTICA

O “A RQUIVO ” C OSTA

D. G ONÇALO DA C OSTA

4. PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DO USO DA INFORMAÇÃO ARQUIVÍSTICA

Se os arquivos se podem considerar hoje objecto de estudo, eles foram no passsado objectos de prova e poder, e essencialmente por isso se foram mantendo ao longo do tempo, permitindo depois a sua historização e tornando-se eles próprios hoje o objecto da “arquivística histórica”. Como se foram constituindo, conservando, alterando, o que se conservou, o que desapareceu, e o porquê. O que nos chegou, chegou porque razão? E o que não chegou, porque não chegou? O que temos hoje será uma pálida imagem do que em determinada altura existiu e é com estas peças de um puzzle que temos que o reconstruir, tentando, mesmo com peças faltando, visualizar o seu todo.

Com os “arquivos”, que tentámos reconstituir, dos primeiros membros da linhagem Costa, nomeadamente do seu fundador, D. Álvaro da Costa, e dos dois filhos varões, D. Gil Eanes e D. Duarte, (pois que o terceiro filho, D. Manuel, foi clérigo e morreu novo, e não se consideraram as filhas, duas que casaram e a terceira que foi freira), mostram-nos duas realidades diferentes, tendo em conta o seu conteúdo.

No que se refere aos arquivos de D. Álvaro e de seu filho D. Duarte, filho que pode ser considerado sob certo ponto de vista o seu herdeiro, pois foi-o do ofício - armador-mor, do património construído - as casas de Lisboa e Évora, e até da última morada - a capela do Paraíso, não nos ficou qualquer vestígio do que teriam sido. Ou melhor, o que restou (com excepção do Regimento do ofício) é tardio e corresponde a ingressos, por casamento, de arquivos de outros ramos familiares. Propriamente a produção/acumulação, tanto do pai como do filho, só fomos encontrar em fundos de instituições com que se relacionaram, quer da Coroa, quer da Igreja, quer de outras instituições públicas ou privadas, como a Misericórdia, as Câmaras ou mesmo outras famílias. As vicissitudes por que terá passado o respectivo arquivo de família já ficaram descritas anteriormente, mas prejudicaram, como é óbvio, o nosso conhecimento deste(s) arquivo(s) que poderíamos chamar da Casa dos armadores- mores.

O caso de D. Gil Eanes da Costa é totalmente diferente. Dele ficou-nos um abundante subfundo ou subsistema, integrado por casamento num fundo ou sistema mais vasto, que chegou aos nossos dias com a designação (incorrecta, conforme também já referimos) de Casa de Santa Iria. Além do mais, considerando a produção/acumulação de D. Gil Eanes, seu filho António e a filha deste, Maria, temos

66 também um inventário desse mesmo arquivo, elaborado em 1836, que nos dá uma panorâmica mais vasta do que ele teria sido, pois que parte significativa dessa produção arquivística também já não se encontra hoje no referido fundo Casa de Santa Iria. Mas igualmente, para complementar o arquivo de D. Gil Eanes, se procurou documentação nas mesmas instituições referidas para D. Álvaro e D. Duarte.

Quais foram esses documentos? E porque muitos deles não estavam já no arquivo da família Óbidos-Palma-Sabugal em 1836 quando foi elaborado o inventário dito Summario alfabético dos documentos existentes no catorio da Ill.ª e Ex. ma Casa dos Senhores Condes de Palma, Obidos e Sabugal?

Alguns poderiam ainda fazer parte do arquivo mas terem sido ignorados no inventário, como as anotações “inútil” ou “sem interesse” apostas nalguns documentos parecem sugerir. Por exemplo, na capilha do testamento de D. Beatriz de Paiva foi escrito “não tem cousa importante” (mas apesar de tudo foi considerado na descrição de 1836). Seriam, no entanto, casos raros. Muitos terão acompanhado as propriedades quando estas trocaram de mão (assim como o próprio Gil Eanes os terá recebido quando as adquiriu), outros foram simplesmente eliminados por já não terem utilidade, outros extraviados por ocasião de questões judiciais, outros ainda “rotos” quando novos documentos eram assinados, como as cartas de padrão.

Assim mesmo, entre 1836 e 1996 (esta última, data em que a Torre do Tombo adquiriu em leilão o acervo que intitulou Casa de Santa Iria), dezenas de documentos teriam saído do arquivo de família116, alguns, como o próprio inventário de 1836, vendidos em outros leilões.

Quanto à documentação produzida pelas duas primeiras gerações, conseguimos identificar um total de 407 documentos que em determinado momento integraram os seus arquivos: 119 documentos no caso de Álvaro da Costa, 185 no de Gil Eanes e 103 no de Duarte, considerando apenas os documentos produzidos e não os acumulados. No respeitante à terceira e quarta gerações, o número de documentos apurados foi menor, 238, apesar de o número de indivíduos ser maior, doze.

116

No total, o inventário de 1836 contém 3.153 entradas, mas na Torre do Tombo só estão 2.432 documentos, alguns já do século XX. Considerando as 258 entradas relativas ao arquivo Costa até à data do casamento (1586) no inventário de 1836, só estão no arquivo dito Casa de Santa Iria (parte que está na Torre do Tombo) 156 documentos da família Costa. Dá-se até o caso curioso de alguns documentos (13) descritos no inventário de 1836 se encontrarem na Torre do Tombo mas numa outra colecção que não o fundo Casa de Santa Iria, a Colecção Adília Mendes, onde terão entrado por compra em outro leilão, o que aumenta para 169 os documentos existentes.

67 Começando pelo fundador da linhagem, Álvaro da Costa, cuja produção documental adiante analisaremos, qual foi o uso que ele lhe deu e como a recuperava?

Certamente que muita da documentação que em determinado momento fez parte do seu arquivo não a conhecemos, nem mesmo pelo processo de a tentar recuperar em arquivos de instituições que com ele se cruzaram. A visão que temos do seu arquivo será sempre parcial e lacunar e não fora o caso de alguns documentos terem integrado o arquivo do filho Gil Eanes, dele não teríamos qualquer documento relativo à sua vida privada, como temos, neste caso, o seu primeiro testamento117 e o de sua mulher D. Beatriz de Paiva. Também chegou até nós a sua carta de conselheiro, que por razões desconhecidas integrou igualmente o arquivo de Gil Eanes, chegando ao presente no seu original118.

O que ficámos a conhecer a partir da documentação identificada foi sobretudo a gestão de numerosas tenças que utilizou grandemente em proveito da sua alma e da de sua mulher e de seu filho D. Manuel, instituindo capelas fúnebres. Mas além destas tenças, geriu certamente outro património, não só urbano (casas de Lisboa, Évora e Almeirim), mas também fundiário. Por via indirecta temos conhecimento de que tinha uma quinta na Portela de Sacavém, uma vinha aforada em Almada e que recebera do rei uma mata em em Montemor-o-Novo. Quanto à mata encontrámos a referência de que existiria o original em pergaminho do alvará de D. Manuel que a concedeu no arquivo de D. Gil Eanes, mas da vinha de Almada só sabemos que existiu por vir referida num tombo da Misericórdia dessa vila, o mesmo acontecendo com a quinta de Sacavém. Por ter sido doado ao mosteiro da Penha Longa, sabemos da existência de um casal em Santo Antão do Tojal. Finalmente o Regimento do Armador-mor perdurou até hoje em mãos dos seus descendentes.

No que se refere à produção documental de Gil Eanes da Costa, identificámos um total de 185 documentos, dos quais 112 provenientes de arquivos de família (Casa de Óbidos, Palma, Sabugal e Casa de Soure e também Casa Palmela) e 74 de diversas instituições (documentos não oriundos dos arquivos de família referidos) incluindo sobretudo os arquivos da administração central.

117 Cf. ANTT – Casa de Santa Iria, cx. 5, nºs 39 e 40. Sabemos, por uma carta de 1542, escrita por D.

Duarte da Costa ao frades da Penha Longa, que à hora da sua morte fez outro testamento. Cf. ANTT – Mostº de São Jerónimo da Penha Longa, mç. 5, doc. 51.

68 Que documentos foram conservados nestes arquivos de família? De entre os 112 documentos de sua produção cujas descrições chegaram até ao nós, 79 são relativos à aquisição e gestão de propriedades rurais ou urbanas (71%) como o quadro em baixo mostra:

Propriedades Açores Lisboa Santarém Almoster Total

Compra e venda 6 3 22 2 33 Aforamento/ Empraz. 2 8 10 Arrematação 2 1 3 Sentença 2 10 12 Composição/Concerto 1 1 2 Doação 1 1 Requerimento 1 1 Alvará 1 2 3 Breve 1 1 Conhecimento/Recibo 1 1 Demarcação 2 2 Embargos 1 1 Lembrança 1 1 Posse 2 3 5 Ratificação 1 1 Troca 1 1 2 Total 15 9 52 3 79

Também nestes arquivos de família se conservaram os documentos de carácter mais pessoal: dotes, contratos de casamento, testamentos, inventários e partilhas, 11 documentos (10%); instituição do seu morgado, do que instituiu para o filho primogénito e das capelas de Almoster e de São Francisco de Lisboa, 12 documentos (11%). Outros 8 documentos (7%) têm a ver com a herança do sogros e da neta, nos Açores. Por fim, no arquivo da Casa de Soure conservavam-se duas cartas missivas do rei para D. Gil Eanes, escritas em 1546, quando da sua embaixada à Corte de Carlos V (2%).

Porque foram estes documentos conservados e não outros? Certamente porque eles provavam e garantiam a posse de bens e direitos, razão pela qual os próprios arquivos se constituíram. O arquivo também ligava a família ao seu passado, simbolizando a sua importância e o seu poder, proporcionando-lhe identidade e projecção social.

69 integrou a documentação produzida por D. João da Costa, seus filhos Gil Eanes e Luísa e também seu irmão D. Gil Eanes da Costa, para só falarmos nos membros da família que analisámos. Também neste arquivo a documentação inventariada demonstra a importância de manter a documentação que provasse a posse de bens e direitos, categoria em que se inseriam também os documentos de carácter pessoal.

Mesmo no arquivo do ramo que chamámos do armador-mor, cuja documentação anterior ao século XVII se terá perdido na sua quase totalidade por razão de um incêndio na casa onde se conservava, como vimos, aquilo que havia no final do século XVIII, conforme a relação que descrevemos no cap. 2, era essencialmente documentação sobre aquisição e gestão de propriedades (64% da totalidade dos documentos), se bem que não possamos considerar esta totalidade, uma vez que entre os “quatro morgados de sua [do armador-mor D. José Francisco da Costa] caza” apenas dois nos poderiam interessar o “Morgado q. instituio o S.or D. Alvaro da Costa e Silva q. chamavão o Queimado”, com três maços de documentos, e o “Morgado q. instituio D. Alvaro da Costa chamado o Grande”, apenas um maço e com documentação, tanto quanto podemos perceber, já do século XVIII. Havia também no cartório um maço único da “Comenda de S. Vicente” e outro de “Papeis avulsos”, mas não sendo datados, não foi possível atribuí-los a nenhum dos membros da família cuja produção analisámos. Portanto, quanto aos usos dados pelos membros da família dos seus arquivos, só podemos conjecturar.

Da totalidade de tipologias apuradas nos arquivos de família, tanto de Gil Eanes da Costa como de seu filho João (referimo-nos concretamente aos arquivos da Casa de Óbidos-Palma-Sabugal e da Casa de Soure), 40 tipologias no total (originais e referência), sobressaem 10 tipologias que em si representam 69% dum total de 232 documentos. São elas:

 Escrituras de compra e venda (23%),

 Sentenças (9%),  Alvarás (6%),  Autos de posse (6%),  Testamentos (6%),  Escrituras de aforamento/emprazamento (5%),  Inventários e partilhas (5%),

70

 Contratos de dote (3%),

 Doação (3%),

 Quitação (3%).

As restantes 30 tipologias representam apenas 31% da totalidade de documentação conservada nestes dois arquivos de família.

D. Gil Eanes, como já referimos, fala no seu “quartório” onde arrecadava as escrituras, possivelmente em arcas ou em “bons armários repartidos por seus repartimentos de caixas destas que saem para fora”, como o cartorário do mosteiro do Lorvão recomendava às freiras que o fizessem em 1543119.

Desconhecemos em absoluto como recuperava essa informação, ou até se teria algum “reportório”, como o que o mesmo cartorário elaborou para as freiras, depois de seleccionar as escrituras que lhe pareceram mais importantes, as “escrituras principais do cartório” como ele próprio declara, organizado tipologicamente e com anotações à margem sobre os locais (sempre os locais, porque a maioria da documentação era de carácter patrimonial) a que essas escrituras diziam respeito. Sabemos pelo menos que

119

CF.Livro de reportório dos documentos do cartório do Mosteiro do Lorvão , 1543 – ANTT - Ordem de Cister, Mosteiro do Lorvão, lv. 326.

Fig. 7

Procuração autógrafa de D. Gil Eanes da Costa a Brás Ferreira para reconhecer o Hospital de Jesus de Santarém como senhorio de certas propriedades, datada de 12 de Dezembro de 1567.

71 D. Gil Eanes se interessava pessoalmente pelo seu cartório e que de sua mão anotou algumas escrituras, como por exemplo o alvará de segurança de arras “de dona Cna mjnha fª”, ou o contrato de dote e arras de sua filha D. Helena para casar com D. Tomás de Noronha, em que escreveu “Comtrato Do Casame to de dona Ilena minha filha”.

Fig. 8

Anotações da mão de D. Gil Eanes da Costa no Alvará de segurança de arras de sua filha Catarina, de 20 de Novembro de 1541. (ANTT- CSI, cx. 2, nº 11)

Fig. 9

Anotações da mão de D. Gil Eanes da Costa no contrato de casamento de sua filha Helena, de 20 de Novembro de 1558. (ANTT- CSI, cx. 3, nº 103)

72 Possivelmente o mesmo já teria feito seu pai, Álvaro da Costa, ao escrever no verso do contrato que estabeleceu em 1512, com João do Outeiro, para casarem os filhos de ambos, Gil Eanes e Maria do Outeiro, “Contrato do casamto

de gylyanes”.

Sabemos que Álvaro da Costa se interessava pela boa conservação dos documentos do seu arquivo também pelo pedido que fez ao rei para lhe ser passada uma nova carta de mercê dos Câmbios do Porto, por ele comprados ao conde de Penela em finais do ano de 1515, “porquanto a letra da dita carta estaua apagada que se podja mall ler e que daquj a pouco se apagaria de todo por ser maao purgamjnho”120

.

Os documentos produzidos por D. Gil Eanes que se conservaram no arquivo dito Casa de Santa Iria apresentam todos dobragens e anotações correspondentes a diferentes períodos de conservação, mais visíveis nos documentos em pergaminho, pois os de papel sofreram, muitas vezes, o corte da última folha quando no século XIX foram cosidos nas capilhas onde foi posta a nova cota. Contam-se pelo menos, nos documentos desse arquivo, duas cotas, a primeira, posta no verso dos documentos, corresponde ao maço e ao número descritos no Summario alfabetico de 1836 e, a

120 Cf. ANTT – Chanc. D. João III, lv. 46, ff. 129v-130 (Carta de doação dos Câmbios do Porto..., de 6

de Julho de 1519). A primeira carta que lhe havia sido passada tem data de 13 de Janeiro de 1516. Fig. 10

Anotação de Álvaro da Costa no Contrato de casamento de Gil Eanes com Maria do Outeiro, de 26 de Agosto de 1512.

73 segunda, a um número sequencial posto nas capilhas, muito provavelmente em data posterior a 1836. Há anotações de várias ortografias nos documentos, mas nos casos que nos interessam (família Costa até final do século XVI) parece não corresponderem a nenhum instrumento de recuperação específico121.

Curioso é notar como no arquivo de D. Gil Eanes da Costa se conservaram (até hoje) os originais tanto dos testamentos de D. Álvaro da Costa e de sua mulher D. Beatriz de Paiva, seus pais, como a carta de conselheiro passada a Álvaro da Costa em 1518, que aparentemente não tinham a ver com os seus interesses. O cartorário que no século XIX redigiu a capilha do testamento de D. Beatriz de Paiva deixou a seguinte nota no fim do resumo que fez do conteúdo: “Não tem cousa importante”. Mesmo assim, para nossa sorte, guardou-o.

121 Neste mesmo arquivo dos Condes de Palma, Óbidos e Sabugal conservava-se um Livro da fazenda

do senhor conde meirinho-mor e rendimento della e dos seus papeis e outras lembranças, datado de 1588-1600, que na 2ª parte elenca os “Papeis” do cartório, o qual estava organizado em maços, tendo dentro de cada maço, devidamente identificado, os documentos, que descreve e data, numerados, permitindo uma eficaz recuperação.

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CAP.3