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PRISÃO E PROCESSOS MOVIDOS CONTRA OS LÍDERES ESTUDANTIS DE

No documento Relatório final Comissão da Verdade (páginas 69-74)

A SEGUNDA ONDA REPRESSIVA NA UFES: A DITADURA SE FECHA

PRISÃO E PROCESSOS MOVIDOS CONTRA OS LÍDERES ESTUDANTIS DE

A onda repressiva pós-manifestações de 1968, sobretudo materializada pela decretação do AI-5, resultou em prisões e convocações de líderes estudantis no Espírito Santo para prestarem depoimentos junto ao DPF e ao DOPS e, principal- mente, no quartel do então 3º Batalhão de Caçadores (3º BC), atual 38º Batalhão de Infantaria (38º BI). A CVUfes identifi cou três processos na Justiça Militar em função das mobilizações estudantis ocorridas em 1968. Dois deles foram resulta- dos de IPMs montados pelo comando do 3º BC para investigar atividades “sub- versivas” entre os estudantes do Espírito Santo. O terceiro foi aberto a partir de um inquérito na PF. Contudo, a CVUfes só conseguiu localizar a cópia integral de um desses processos no acervo eletrônico do projeto Brasil Nunca Mais. Nele, encontramos documentos que fornecem apenas algumas informações sobre os outros dois e o que foi feito deles.

Embora não seja possível identifi car, com os documentos que dispomos, quan- do foi aberto, o primeiro IPM está relacionado diretamente às prisões ocorridas no Congresso de Ibiúna, já que todos os 13 delegados do Espírito Santo presos na ocasião foram citados e indiciados por terem participado do evento. No rela- tório fi nal do inquérito, datado de 13 de abril de 1969, o encarregado do IPM, 1º tenente Francisco Danillo Bastos Scotello Orrico, concluiu que, em 1968, houve grande “agitação” estudantil em Vitória, caracterizada pela grande distribuição de panfl etos, boletins, com o grande aliciamento de pessoas em diversos locais de ensino, com comícios, greves, passeatas, etc., levando a efeito “ofensas mo- rais” contra as autoridades constituídas, com o objetivo de reorganizar entidades estudantis “legalmente” dissolvidas, visando “subverter” a ordem político-social vigente 110.

De acordo com o tenente, duas facções disputavam a liderança do movimento do meio universitário no Espírito Santo, uma liderada por Cesar Ronald Pereira

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Gomes, então presidente do DCE/Ufes, e a outra por Jussara Lins Martins, na época vice-presidente da UEE. O primeiro é chamado de “agitador profi ssional”, que aliciou outros estudantes e dirigiu a ação deles em atos “nitidamente sub- versivos”, dado seu “inconformismo” com a política educacional do governo. Im- portante destacar que, naquele momento, nenhum dos dois líderes estudantis morava mais em Vitória. César Ronald se encontrava na clandestinidade e Jussa- ra Martins havia transferido seu curso de Engenharia Civil para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O coordenador do IPM pediu o enquadramento de Cesar Ronald, Jussara Lins Martins e dos outros 11 acusados de participação na tentativa de realização do congresso da UNE em dispositivos da Lei de Segurança Nacional (LSN) da ditadu- ra – Decreto-lei nº 314, de 13 de março de 1967.

Além dos 13 nomes já citados neste relatório, também foram indiciados a es- tudante da FAFI e noiva de Cesar Ronald, Zélia Stein, e o secundarista Hilton Moreira Rocha Sobrinho, então diretor da União Municipal dos Estudantes Se- cundaristas (UMES) de Vitória. No documento, o tenente Orrico destaca que Zé- lia vivia “maritalmente” com César Ronald, e Rocha Sobrinho era apontado como “elemento de ligação” entre o líder estudantil e os demais indiciados, cuja prin- cipal atividade seria a transmissão e divulgação de notícias 111.

O segundo IPM foi consequência do primeiro, sendo criado por meio da Por- taria 7-Sec, baixada em 15 de abril de 1969 pelo então comandante do 3º BC, tenente-coronel Venício Alves da Cunha 112. O ofi cial justifi cou a criação do novo

inquérito, alegando que, no desenrolar das atividades do primeiro IPM, teriam sido constatadas outras atividades “atentatórias” à segurança nacional, anexan- do a ele vários depoimentos prestados, especialmente o de Hilton Moreira Rocha, que comprometia diversas pessoas no estado, inclusive um deputado estadual com atividades em organizações de esquerda.

Novamente, foi o militar Francisco Danillo Bastos Scotello Orrico nomeado para coordenar o IPM, ao qual foram anexadas cópias de vários depoimentos e documentos apreendidos em operações de busca e apreensão realizadas duran- te o inquérito anterior. A nova “investigação” foi centrada, entre outros fatos, num panfl eto distribuído pela UEE e pelo DCE/Ufes durante o vestibular da Uni- versidade, realizado em janeiro de 1969; bem como nos jornais, panfl etos e pu-

111 SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Apelação nº 3.169/70, fl . 224-225. 112 Ibid., fl . 4.

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blicações estudantis produzidos em 1968 pelo DCE, pela UEE e pelos diretórios acadêmicos das faculdades de Filosofi a (FAFI), Medicina, Engenharia e Direito.

O relatório fi nal do IPM, de 4 de junho de 1969, indiciou o ex-presidente em exer- cício do DCE/Ufes, José César Leite (FAFI); o ex-presidente e a ex-vice-presidente da UEE, respectivamente, Antônio Carlos Dall´Orto 113 e Jussara Lins Martins; os

estudantes Marcelo Santos Neves (Escola Politécnica), Domingos Freitas Filho (pre- sidente do DA/FAFI), Helena Maria Soares Rezende (FAFI), Iran Caetano (Faculdade de Medicina) e Roberto Gomes (Faculdade de Medicina); a então funcionária da Ufes Carmélia Maria de Souza, conhecida jornalista e cronista do estado; a profes- sora formada na FAFI Antonieta Maria Rabelo Leite; e o estudante secundarista e jornalista Rubens Manoel Câmara Gomes, fi lho de Rubens Vervloet Gomes. 114

Também foram indiciados os proprietários de duas gráfi cas de Cachoeiro de Itapemirim, Joel Pinto e Nemir Antônio de Moraes, acusados de imprimir jornais e publicações estudantis durante o ano de 1968. Ambos tiveram seus estabeleci- mentos invadidos pelos militares em busca de “provas” de atividades “subversi- vas” e foram levados para prestar “esclarecimentos” no 3º BC 115. Tudo indica, in-

clusive, que Joel Pinto teria fi cado mais tempo preso na PF, já que se encontrava detido nas dependências daquele órgão quando foi convocado pelo militar Orrico para depor no segundo IPM, quase dois meses depois de ter prestado depoimento no primeiro inquérito 116.

Durante as investigações do segundo IPM, o ofi cial Orrico também chegou a determinar a prisão, para “averiguações”, de Jussara Lins Martins 117, Marcelo

Santos Neves e Domingos Freitas Filho. Jussara e Marcelo, que haviam trans- ferido seus cursos para a UFRJ, foram presos no Rio de Janeiro e levados para o quartel do 3º BC, onde foram “entregues” pela PF no dia 26 de abril de 1969 118.

O encarregado do IPM determinou a prisão e a realização de operação de busca e apreensão na residência de Domingos Freitas Filho, em 13 de maio de 1969, com o pretexto de investigar a denúncia feita na PF, segundo a qual o estudante, então presidente do DA da FAFI, estaria usando o dinheiro arrecadado pela enti-

113 Trabalhava como médico em Itamaraju (BA) e faleceu em 2015. 114 SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Apelação nº 3.169, fl . 231-235. 115 Ibid.

116 Ibid., fl . 121.

117 Poucos dias antes de ter tido sua prisão decretada no IPM do 3º BC, em 11 de abril de 1969, Jussara Lins Martins foi presa junto com outros 33 estudantes numa manifestação realizada no

campus da UFRJ, no Rio de Janeiro, o que a levou a ser enquadrada no DL 477/69 e expulsa da-

quela Universidade (PM prende 34 estudantes na Cidade Universitária. O Globo. 12 abr. 1969, p. 8). 118 SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Apelação nº 3.169/70, fl . 69.

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dade em festas, rifas e na cantina da Faculdade com “fi ns subversivos” 119. O líder

estudantil foi enviado para a então Penitenciária Estadual de Pedra D’Água, loca- lizada na região da Glória, em Vila Velha. Os três estudantes só tiveram a prisão relaxada pelo militar Orrico em 26 de maio daquele ano 120.

Entre a “farta documentação” anexada como “provas” no processo, estão jor- nais e boletins produzidos pelas entidades estudantis, publicações que analisam a política educacional da ditadura, os chamados acordos MEC/USAID e recortes de reportagens de jornais. Depois de concluídos e enviados para a Justiça Militar, os dois IPMs acabaram tendo tramitação, já que inicialmente foram distribuídos juntos – a chamada “distribuição por dependência” – na 1ª Auditoria Militar da Marinha, no Rio de Janeiro.

Essa distribuição foi contestada pelo primeiro procurador militar encarregado do processo, Rubens Pinheiro de Barros, o qual alegava que ambos tratavam de fatos diversos enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN) em épocas di- ferentes, apesar do encarregado dos dois IPMs ser o mesmo 121. Assim, os autos

do segundo inquérito foram enviados para a 2ª Auditoria Militar da Aeronáuti- ca. Ocorre que o procurador daquela unidade, Roberto Albuquerque, suscitou o chamado “confl ito negativo de jurisdição”, considerando a 1ª Auditoria Militar do Exército como competente para julgar os dois IPMs. No entendimento dele, o segundo inquérito girava em torno de publicações estudantis, muitas delas re- produção de artigos favoráveis ao ponto de vista dos estudantes e publicados em jornais de grande circulação, como o Jornal do Brasil.

Aqui, na antiga capital, sob as vistas de autoridades zelosas e vigilantes estes artigos não foram tidos como subversivos, mas como crítica a um acordo as- sinado e por muitos combatido no âmbito universitário. Seria, quando muito, oposição, discordância, ponto de vista contrário, mas jamais subversão por não se difi rgir (sic) contra o “regime”, por não conter nada com o sentido de modi- fi ca-lo, etc. Assim, afora este aspecto novo, tudo o mais que consta do processo inquisitivo-policial se afi na com que consta do anterior. A convicção que forma- mos do estudo do processo nos levaria a denunciar aqueles mesmos denuncia- dos no processo em curso na 1ª Auditoria do Exército, pelos mesmos motivos e fundamentos – nunca pelos novos, que reproduziam artigos de terceiros e não dos denunciados 122.

119 Ibid., fl . 167. 120 Ibid., fl . 218. 121 Ibid., fl . 239-240.

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Enquanto isso, o representante do MPM na 1ª Auditoria do Exército entendeu que os fatos objetos de investigação do primeiro IPM estavam relacionados ao Congresso da UNE, recebendo o apoio do juiz auditor, que enviou o processo para a 2ª Auditoria do Exército, em São Paulo, onde ele acabou sendo apensado ao processo nº 67/68, conhecido como “Congresso de Ibiúna”, no qual haviam sido denunciados 694 estudantes acusados de participar daquele evento, entre os quais estava a maior parte dos indiciados no inquérito do 3º BC 123.

O STM julgou o confl ito de jurisdição somente em 3 de abril de 1970 e deter- minou que os autos do segundo IPM, relativo às publicações estudantis e outros fatos, fossem enviados de volta à 2ª Auditoria Militar da Aeronáutica para que o processo fosse julgado. Assim sendo, o procurador substituto Gastão Ribeiro apresentou a denúncia contra os indiciados no IPM apenas em 11 de junho de 1970. Dos 15 indiciados no IPM, foram denunciados os estudantes da Ufes José César Leite, Antônio Carlos Dall´Orto, Jussara Lins Martins, Marcelo Santos Ne- ves, Domingos Freitas Filho, Helena Maria Soares Rezende, Iran Caetano, Rober- to Gomes e Rômulo Tadeu Finamori Simoni; a jornalista e funcionária da Ufes Carmélia Maria de Souza; a professora Antonieta Maria Rabelo Leite e o diretor e proprietário do Colégio Brasileiro, Rubens Vervloet Gomes 124.

O representante do MPM explicou que havia deixado de oferecer denúncia con- tra o estudante secundarista Rubens Manoel Câmara Gomes (Rubinho Gomes), por ele ser menor de 18 anos na época dos fatos denunciados. Em relação aos empresários Joel Pinto e Nemir Antônio de Moraes, ele alegou que não os denun- ciaria por entender que os donos das gráfi cas localizadas em Cachoeiro de Itape- mirim não tinham agido com dolo e que, só o fato de terem sido chamados a ir a Vitória para esclarecer as suas atividades no IPM, já era uma boa “advertência” para que no futuro eles tomassem mais cuidado 125.

Depois de muitas idas e vindas, com os acusados tendo que se deslocar várias vezes ao Rio de Janeiro para comparecer às audiências, o processo foi fi nalmente julgado pelo Conselho de Sentença da 2ª Auditoria da Aeronáutica em 30 de no- vembro de 1971. Todos os acusados foram absolvidos. Posteriormente, o próprio MPM acabaria pedindo a absolvição dos réus 126. A sentença foi confi rmada pelo

123 Ibid., fl . 273-274. 124 Ibid., fl . 2-2-f.

125 SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Apelação nº 3.169/70, fl . 286-288. 126 Ibid., fl . 841-845.

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STM em 5 de abril de 1973, quase quatro anos depois da abertura do IPM 127.

Nas páginas do mesmo processo relativo às atividades “subversivas” no ME capixaba, encontramos a denúncia e a sentença de uma terceira ação movida na Justiça Militar, que foram anexadas aos autos a pedido da defesa de Marcelo de Almeida Santos Neves. O referido processo também havia tramitado na 1ª Auditoria da Aeronáutica e tinha como réus o então presidente em exercício do DCE, José César Leite; o representante estudantil no Conselho Universitário José Carlos Risk; a vice-presidente da UEE, Jussara Lins Martins; o próprio Marcelo de Almeida Santos Neves e o estudante secundarista Gildo Loyola Rodrigues.

A origem da denúncia feita pelo MPM foram cartazes e publicações afi xados no mural do DCE/Ufes no Restaurante Universitário, com dizeres considerados “ofensivos” à ditadura e apreendidos pela PF em 15 de janeiro de 1969 128. No

mesmo dia, à tarde, policiais federais invadiram a sede do DCE e prenderam César Leite, apreendendo mais “farto material subversivo” na entidade. Risk foi preso pela PF no dia seguinte e indiciado no processo, exatamente por ter denunciado a invasão do DCE e a prisão do presidente da entidade numa reunião do Conselho Universitário da Ufes, conforme já citado neste relatório.

Jussara e Marcelo foram indiciados devido a uma mera citação feita pelo es- tudante secundarista Eustáquio Salatiel Barros, conhecido como “Pastor”, que em depoimento prestado na PF, disse ter visto os dois “arrumando” panfl etos que estavam sendo impressos no mimeógrafo do DCE, juntamente com César Leite 129. Tratavam-se dos mesmos panfl etos distribuídos no vestibular de 1969.

Entretanto, também nesse processo, os acusados acabaram sendo absolvidos por insufi ciência de provas pelo Conselho da 1ª Auditoria da Aeronáutica, em julga- mento realizado em 17 de outubro de 1970.

No documento Relatório final Comissão da Verdade (páginas 69-74)

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