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PRISÃO E TORTURA DE ESTUDANTES LIGADOS À ALA VERMELHA EM

No documento Relatório final Comissão da Verdade (páginas 79-82)

A TERCEIRA ONDA REPRESSIVA NA UFES: GRAVES VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS NO ESPÍRITO SANTO

PRISÃO E TORTURA DE ESTUDANTES LIGADOS À ALA VERMELHA EM

Em 1971, a Ala Vermelha, uma dissidência do Partido Comunista do Brasil (PC- doB) criada em 1966, seria praticamente desarticulada em todo o país depois da prisão de um de seus principais dirigentes, Edgard de Almeida Martins, cujo codinome era Miro. O que acarretou um direto envolvimento com um grupo de estudante da Ufes.

Preso em São Paulo, depois de submetido a torturas no Destacamento de Ope- rações de Informações-Centro de Operações de Ordem Interna (DOI-CODI) de São Paulo, Edgard de Almeida Martins revelou aos torturadores toda a estrutura da organização, inclusive os nomes de militantes e dirigentes, desencadeando uma onda de prisões em vários estados do país. Miro não entregou apenas mi- litantes da Ala Vermelha do PCdoB, mas também revelou nomes de ativistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde militou antes da criação da organiza- ção, bem como de dissidências do próprio grupo, como o Movimento Revolucio- nário Tiradentes (MRT) e o Movimento Revolucionário Marxista (MRM) 140.

No caso do Espírito Santo, além de revelar os nomes de militantes ligados à Ala Vermelha no estado, Miro ainda acompanhou os militares do DOI-CODI até Vitória para fazer o reconhecimento de militantes presos. As prisões ocorreram entre os dias 22 e 23 de março de 1971, quando foram presas nove pessoas, sendo quatro estudantes da Ufes: João Amorim Coutinho e Edson Hilário de Freitas, es- tudantes de Geografi a; José Fernando dos Santos, de Engenharia; e Laura Maria da Silva Coutinho, do curso de Odontologia. Os presos foram detidos e levados para o quartel do 3º Batalhão de Caçadores, em Vila Velha, onde foram subme- tidos a violentas torturas por agentes do DOI-CODI, sendo transferidos poucos dias depois para São Paulo 141.

140 Informações colhidas no relatório A Ala Vermelha do PCdoB, Deops/SP, 1971. Arquivo Públi- co do Estado de São Paulo.

141 Não foi possível determinar o dia exato em que os estudantes foram transferidos para a sede do DOI-CODI de São Paulo, mas documentos obtidos no acervo da Delegacia Estadual de Or- dem Política e Social de São Paulo (Deops) no Arquivo Público do Estado de São Paulo mostram que eles prestaram depoimentos às equipes de tortura do DOI-CODI, chamadas de “equipes de interrogatório inicial”, já em 27 de março de 1971.

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No depoimento prestado à CVUfes e à Comissão Estadual da Verdade, João Amorim Coutinho contou que agentes do DOI-CODI/SP cercaram sua casa com carros e metralhadoras e o prenderam.

No dia 22 de março de 1971, após o primeiro dia de aula na Ufes, voltei pra casa e almoçamos, eu e a minha mulher na época, Laura, que fazia Odontolo- gia. Almoçamos e fomos dar uma descansadinha, antes de sair pra dar aula em Itanguá e depois no Ibes. Estudava e dava aula pra sobreviver. Foi quando a re- pressão chegou, através de um comando vinculado ao DOI-CODI de São Paulo, famigerada Operação Bandeirantes. Me chamaram com metralhadoras e a casa cercada. 142

O relato do então militante da Ala Vermelha mostra que a violência começou desde os primeiros momentos de sua prisão. Segundo ele, ainda “zonzos” em função da “forte emoção” provocada pela prisão, ele e a mulher foram tortura- dos com choques elétricos logo que chegaram às instalações do quartel do 3º BC, antes mesmo de serem interrogados. “Me colocaram sentado numa cadeira, amarraram os meus dois pulsos e foram colocados fi os em torno dos punhos, dos dedos, da língua e nos ouvidos” 143 .

Segundo o então estudante da Ufes, ele e os demais presos eram monitorados por militares armados dia e noite. No período em que permaneceram no quartel, João Amorim e a esposa, Laura Coutinho, foram separados dos outros presos e colocados na enfermaria, devido a uma leve disritmia que ela sofria. Mesmo as- sim, recrutas do Exército armados fi cavam na porta o tempo todo, vigiando seus movimentos, criando assim um clima de tortura psicológica, em que suas atitu- des poderiam causar até mesmo suas mortes.

Há alguns lances interessantes, que acho que captam bem a situação da épo- ca. Minha mulher estava passando mal, para tentar dormir, a gente foi apagar a luz da sala e um dos guardinhas, eram recrutas que estavam de plantão, colocou o cano da baioneta na porta e falou: “acende essa luz, senão eu atiro!”. “Calma, ela está passando mal”. “Acende essa luz, senão eu atiro!” Eu fi cava ouvindo eles conversando a noite toda e tinham repassado para eles que nós éramos perigosíssimos. “Não vacila não, senão esses caras saem e matam vocês”. Aque- las paranoias que tinham os pobres dos recrutas. Foi aí que senti que, se não acendesse a luz, eles iriam atirar mesmo, mais por medo do que por culpa 144.

Segundo Amorim, todas as noites os presos passavam por tortura física, parte

142 Depoimento de João Amorim Coutinho à CVUfes. 143 Depoimento de João Amorim Coutinho à CVUfes. 144 Depoimento de João Amorim Coutinho à CVUfes.

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integrante dos interrogatórios a que eram submetidos. A rotina na prisão era marcada pela privação de condições de higiene. Os banhos eram bastante limi- tados, a cada quatro ou cinco dias, e a alimentação considerada “ruim”. O isola- mento da família foi mantido por mais de um mês, mesmo depois dos militantes terem sido transferidos para São Paulo.

Depois de alguns dias sujeitos à violência repressiva nas dependências do 3º BC, João Amorim e os outros militantes da Ala Vermelha no Espírito Santo foram transferidos para as dependências do tristemente célebre DOI-CODI/São Paulo, localizado na rua Tutóia. Lá, eles experimentaram e viram o clima de terror físico e psicológico a que estavam sujeitos os indivíduos acusados de ações subversivas, em uma das instalações repressivas mais sinistras da ditadura militar.

Amorim relata que, depois de separado de sua esposa, ele e mais dois ou três presos foram instalados em uma cela de aproximadamente nove metros quadra- dos, junto com mais cinco ou seis pessoas que lá se encontravam. Sua rotina era marcada pelas sessões de tortura no período da noite. Pela manhã, os presos permaneciam nas celas e tentavam se recuperar das torturas se ajudando mutua- mente. Os gritos e urros de dor dos presos torturados irrompiam das instalações, amplifi cando o clima de terror.

Diante da situação comum de violência que viviam, os prisioneiros resistiam cotidianamente também a partir de laços de solidariedade que se fi rmavam a fi m de garantir a sobrevivência dia após dia de tortura e restrições. Isso é evidenciado pelo depoimento de João Amorim, que indica esse traço do cotidiano durante sua permanência no DOI-CODI/SP:

Durante o dia, era o momento que a gente fi cava conversando, avaliando a si- tuação, porque estava naquela situação. Tinha horário de alimentação, alimen- tação normal, um cuidando do outro, alguns mais machucados do que os outros. Tinha um companheiro que tinha fi cado tanto tempo, que perdeu o movimento das pernas, então tinha que fazer uma massagem nele para tentar melhorar. En- fi m, situações terríveis que a gente assistiu. Tinha gente numa situação muito pior do que a minha e a gente fi cava naquele trabalho solidário ali na cela 145.

Alguns dos presos pelos agentes do DOI-CODI não tinham relação alguma com a luta armada ou participação em qualquer tipo de organização política, expres- sando como a suspeição generalizada, ao mesmo tempo em que seletiva, levou os órgãos de repressão a equívocos e injustiças ao intervirem violentamente no

145 Depoimento de João Amorim Coutinho à CVUfes.

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cotidiano dos brasileiros. João Amorim falou dos trabalhadores e trabalhadoras que buscavam melhores condições de vida em São Paulo, mas que, por alguma suspeita dos órgãos de repressão ou pela necessidade de amplifi car a repressão atacando a família dos presos, foram expostos à privação da liberdade e de con- dições dignas de sobrevivência.

Acho que se torturava por prazer mesmo, pela prática. Parece inércia, caiu aqui, tem que sofrer. Isso com pessoas absolutamente inocentes, que não ti- veram participação nenhuma em nada, que eram parentes de gente que estava presa lá em São Paulo, que foram presas e ameaçadas, não sei se chegaram a ser torturadas de fato, com choque elétrico e tudo. Pessoas que tinham ido daqui conquistar emprego em São Paulo, levados por um dos companheiros nossos. [...] Quando eu entrei, identifi quei justamente essas pessoas, que eram de Santo Antônio. Pessoas absolutamente simples, que estavam lá para buscar trabalho. Era o cunhado de um companheiro nosso, o Paulo Roberto, que tinha sido preso lá 146.

Depois de três meses afastado das atividades acadêmicas por conta da sua pri- são, ao retornar ao Espírito Santo, Amorim relatou não ter encontrado difi culda- des para retomar o curso de Geografi a na Ufes. Ele disse ter contado com o apoio dos professores, os quais propiciaram condições para que recuperasse o tempo perdido e não perdesse o ano, como determinava o regimento da Universidade na época. Mas, antes disso, disse ter fi cado chocado com o aborto que Laura sofrera nas dependências do DOI-CODI/SP, resultado das sessões de tortura.

Seguindo a vida no Espírito Santo, conseguiu ainda ingressar, por concur- so público, como funcionário no Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (BANDES), engajando-se na luta sindical da categoria, sendo, anos mais tarde, em 1985, eleito presidente do Sindicato dos Bancários. Apesar de retomar a vida comum, João Amorim diz que foi obrigado a carregar por muito tempo ainda o estigma pejorativo de “subversivo”, infl uenciando o olhar das pessoas sobre o seu presente e, principalmente, o seu passado militante.

No documento Relatório final Comissão da Verdade (páginas 79-82)

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