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1. A construção sócio-histórica da paternidade

1.3. Privatização e sentimentalização das relações familiares

A emergência da família conjugal viria a ser associada pela historiografia social a movimentos históricos de privatização e de sentimentalização das relações familiares (Ariés 1973; Shorter (1975) 2001). Na verdade, estes reflectem a modernização da família e a sua associação quer à intensificação da diferenciação social, quer ao desenvolvimento gradual de formas de individualismo, enquanto horizontes estruturais e ideológicos das relações sociais (Bauman 2001; Beck, Giddens e Lash 2000; Beck e Beck-Gernsheim 2002; Elias 1993; Giddens 1997), quer, ainda, ao enraizamento social de valores de igualdade, de democracia e de cidadania (Attias-Donfut, Segalen e Lapierre 2002; Therborn 2004). Como vimos, tanto Simmel como Durkheim já tinham enunciado algumas das facetas desta relação transformadora entre diferenciação social, individualismo e relações familiares. Toqueville (1962, [1835-1840]) também a enunciou, mas olhou-a através do ângulo do impacto dos valores democráticos nas relações familiares, complementando-a, assim, com a previsão de que a sua democratização seria um processo inevitável e com um forte impacto nas relações pai-filhos - como hoje sublinham Singly (2000) e Giddens (1996). Mas, vejamos o que prenunciava Toqueville: «Quando a situação social se torna democrática e os homens adoptam por princípio geral que é bom e legítimo julgar todas as coisas sozinhos adoptando as crenças antigas como ensinamentos e não como regras, o poder de opinião exercido pelo pai sobre o filho torna-se menor, assim como o seu poder legal. (…). Penso que, à medida que os costumes e as leis são mais democráticos, as relações entre pai e filho se tornam mais íntimas e brandas; a regra e a autoridade se encontram menos; a confiança e a afeição muitas vezes são maiores, e parece que o laço natural se aperta, ao passo que o social se afrouxa.» (idem., 448).

Com efeito, encontramos nestes autores as primeiras previsões dos movimentos de privatização e de sentimentalização das relações familiares, processos transformadores das formas de organizar e viver a família que, de acordo com sucessivas análises posteriores de historiadores e sociólogos, não se deram em toda a parte ao mesmo tempo e foram sofrendo abrandamentos e acelerações, sob o efeito de forças sociais, ideológicas, económicas e políticas diversas. A relação íntima entre as transformações no mundo da vida privada e o

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processo histórico de modernização das sociedades ocidentais estará sempre presente no âmago da análise sociológica, tornando as relações familiares um objecto privilegiado de compreensão das sociedades contemporâneas. Ilustrativas desta relação são as teses de que a família conjugal é a primeira família moderna, fruto de uma modernidade iniciada no Renascimento, de que a esta sucedeu a segunda família moderna, ou família relacional – na qual emerge a paternidade relacional ou íntima (Castelain-Meunier 2002a; Dermott 2008); e de que a família contemporânea seria o fruto da radicalização da sempre crescente diversidade e complexidade social, assim como da natureza reflexiva das relações sociais, sinalizada a partir das últimas décadas do século XX (Beck, Giddens e Lash 2000; Beck e Beck- Gernsheim 2002; Giddens 1996; 1997; Singly, François 2000).

A ideia de privatização da família liga-se à da emergência de «processos de individualização social», ao designar uma maior autonomia da vida privada em relação à vida pública, resultante da libertação dos indivíduos da sujeição aos interesses colectivos do grupo familiar, do parentesco e da comunidade. O que está em causa é a concepção de uma maior autonomia dos indivíduos para agirem, expressa quer na possibilidade de escolha do cônjuge e das formas de organização da vida familiar, quer na valorização dos interesses e do bem- estar individual dos seus membros. Como constata Elias, são colocadas novas exigências aos indivíduos na família: « (…) uma maior participação e uma maior regulamentação própria por parte das pessoas envolvidas.» (1993, 227). Com efeito, o que defendem as teorias da modernidade é que os processos de individualização teriam iniciado uma pluralização gradual dos quadros normativos, institucionais e simbólicos das sociedades. E que, neste contexto, os papéis sociais se teriam tornado menos explícitos, mais fluidos e abertos, mudando, assim, as relações entre as identidades individuais e sociais e os papéis sociais. Cada vez mais, os indivíduos seriam confrontados com a negociação, a adesão ou a reconstrução de modelos de papéis sociais do passado e do presente, num jogo entre identificação social e construção de si, como ser único, que se dá num contexto de incertezas, constrangimentos e oportunidades estruturais que delimitam o que para cada um é possível (Beck, Giddens e Lash 2000; Beck e Beck-Gernsheim 2002; Giddens 1996; 1997; Singly, François 2000; 2003). Contudo, a privatização das relações familiares não significa um movimento de desinstitucionalização, no sentido de uma total libertação dos indivíduos de condicionalismos normativos e institucionais na família e na sociedade, mas, sim, como alguns autores constatam, da sua inserção em novos quadros institucionais que tendem a substituir os colectivos anteriores, como, por exemplo, o legal. Com efeito, é o Estado e as suas instituições que passam a ter um papel central na construção da conjugalidade - ainda que esta possa ser percepcionada como

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uma relação escolhida e construída entre cônjuges - bem como da parentalidade, regulada e intervencionada a vários níveis quer pelos sistemas jurídico e escolar, quer por sistemas periciais (Beck, Giddens e Lash 2000; Singly 1993). A diferenciação de papéis de género que se consolidou com a separação entre as esferas públicas e privadas é um outro exemplo, pois a privatização que lhe deu lugar foi acompanhada pelo enquadramento legal do confinamento da mulher à esfera doméstica e do homem à esfera produtiva do trabalho assalariado, tornando-a a base da sua paternidade (Castelain-Meunier 2002a). Desta forma, a privatização aponta para o duplo movimento de desinstitucionalização e reinstitucionalização centrado no indivíduo como sujeito reflexivo (Beck, Giddens e Lash 2000; Beck e Beck-Gernsheim 2002).

O conceito de privatização está ligado ao de sentimentalização, que se refere à importância que os afectos vão ganhando nos laços familiares enquanto fontes de gratificação individual e auto-expressão, quer por via do amor romântico como base das relações íntimas, quer do amor parental. O que não significa que anteriormente a afeição e os laços sentimentais não existissem na família e que nela não continuem a ser geridos outros bens, interesses e necessidades materiais e simbólicas, como no passado. Mas, sim, que se dá ênfase a uma representação da família como refúgio e espaço de intimidade e de realização individual por via dos afectos (Attias-Donfut, Segalen e Lapierre 2002; Bawin-Legros 1996; Kellerhals et al., 1982; Shorter (1975) 2001; Singly 1993). Shorter ((1975) 2001, 244) fala de uma viragem dos laços significativos de fora para dentro da família no sentido da domesticidade: « (…) a consciência que a família tem de si enquanto unidade emocional preciosa que deve ser protegida com privacidade e isolamento do intruso exterior, que foi a terceira ponta de lança do grande surto de sentimento nos tempos modernos». Constata, ainda, que desta domesticidade emerge o companheirismo entre marido e mulher e entre pais e filhos, por via de uma maior comunicação, de laços humanos mais íntimos e de relações mais próximas.

Ora, se a sentimentalização conjugal enaltece o casal e o seu espaço como objectivo do casamento, dando força ao movimento de privatização que conduziria à conjugalização da família; a parental traduz a transformação do lugar da criança na família, também ele privatizado (Gélis 1990), e como os investimentos afectivos e pedagógicos nela inscritos tornaram a parentalidade o eixo fundamental de modernização da família (Ariés 1973; Cunha 2007a; Dagenais 2002; Singly 1993; 2000).

Com efeito, a tese da sentimentalização parental refere-se a uma nova atitude face à criança que cresce na família. Aríes (1973) chama-lhe processo de sentimentalização da

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infância, enquanto idade vulnerável necessitada de protecção, de cuidados e de formação11. Shorter ((1975) 2001) fala da emergência do amor maternal, fruto da proximidade criada entre a mulher, liberta das suas funções económicas, e o seu bebé. Laço que, segundo Ariès (1973), acaba por envolver o marido e os filhos mais velhos, unindo-os pela convicção na necessidade de protecção do bebé. Gélis (1990) realça que o sentimento da infância expressa igualmente uma tendência para a individualização da criança, na medida em que esta deixa de ser apenas investida como continuidade de uma linhagem e da comunidade e passa a ser encarada como fonte de troca de afectos.

Nas teses da sentimentalização das relações familiares a ênfase é colocada, sobretudo, no amor maternal, pois é através deste que é explicado como os afectos entre progenitores e crianças se aliam a novas atitudes face à criança e geram novos sentidos para a parentalidade no casal. Na penumbra, escondida pela tónica nas interpretações do declínio da autoridade paterna, fica a participação do amor paternal nestes processos – algo que, como vimos, já Toqueville falava (1962, [1835-1840]). Ariès ao afirmar que o homem é chamado à protecção da infância pela mulher deixa, entre linhas, a ideia de que o sentimento da infância não é apenas feminino, mas não vai mais além do que isso. Porém, mais tarde, é a própria historiografia da paternidade a assinalar que os afectos, a ternura e a participação na educação das crianças, assim como a preocupação com o seu bem-estar sempre fizeram parte da paternidade e, portanto, a par do sentimento maternal também se constituiu o sentimento

paternal; o que foi mudando ao longo do tempo foram as suas formas de expressão, em

função das alterações das expectativas sociais associadas às práticas paternas e familiares do homem (Delumeau e Roche 1990; Hogan 1999). Hogan (1999) acrescenta que o ideal do companheirismo, à medida que se consolidou como ideal normativo, promoveu mudanças nos ideais da paternidade e da masculinidade. Tal como Shorter (1977), aponta a relação entre os valores do companheirismo e a norma da domesticidade conjugal masculina, mas explica que esta prescrevia ao homem que abdicasse das sociabilidades masculinas na vida pública para estar mais tempo com a família, por um lado, e ao pai que garantisse o bem-estar das crianças

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Ariès (1991) o sentimento da infância resulta da sua valorização, iniciada com uma visão da criança como objecto de divertimento dos adultos (Século XVI) e, numa segunda fase (Século XVIII), da tomada da consciência da fragilidade e especificidade da criança, influenciada por moralistas, homens da Igreja e médicos que viram na educação uma tarefa nobre da família. Badinter (1980) apresenta uma crítica à tese de Ariès, afirmando que a construção do sentimento maternal foi um processo político que visava diminuir a taxa de mortalidade infantil, resultante da prática de entregar as crianças a amas logo após o seu nascimento, para serem amamentadas e criadas até aos 3 anos – prática comum na época nas várias classes sociais e que associa a uma suposta indiferença materna em relação à criança. Ora, neste período, existia uma forte mortalidade infantil nestas idades que foi associada a cuidados insuficiente por parte das amas. A ideia de que a transferência dos cuidados às crianças pequenas para as mães diminuiria a sua mortalidade levou a que estes fossem incluídos no papel social das mulheres. Segundo a autora, esta alteração de perspectiva sobre os cuidados à criança emerge de uma outra mudança: esta começa a ser considerada como um bem da nação, que poderia assegurar a reprodução da força de trabalho essencial ao desenvolvimento económico do país.

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obtendo recursos para a família, vigiando os cuidados prestados pela mãe e assumindo a orientação moral da sua educação, pelo outro. Trata-se, como explica Collier (1995), de um movimento de construção do homem familializado.

1.4. Parsons e a família conjugal moderna: complementaridade funcional