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Problemas de tradução e retroversão do conhecimento tácito: a articulação e o vibrato

I PARTE: FERRAMENTAS CONCEPTUAIS

CAPÍTULO 2: Problemas de tradução e retroversão do conhecimento tácito: a articulação e o vibrato

A investigação científica e a explicitação do conhecimento tácito

Para aceder aos pormenores e especificidades dos elementos da execução, explicitando o seu conhecimento tácito, um instrumentista pode recorrer a dois tipos de investigação: uma observação empírica introspectiva, frequentemente partilhada com outros especialistas da mesma área, ou uma investigação científica potencialmente objectiva mas impessoal. Pelos dois processos é possível articular descrições, justificações ou eventuais instruções, que podemos considerar conhecimento explícito.

Desde a segunda metade do século XIX, o interesse pela investigação científica de aspectos ligados à execução musical começou a ganhar relevo, mas a sua imediata utilidade pedagógica é controversa.

Cornelius Reid (1965), critica uma metodologia pseudo-científica do ensino do canto, que considera ser ao mesmo tempo má ciência e má prática de ensino:

A ciência aplicada desenvolve-se através de fórmulas testadas e até agora, nenhuma fórmula foi apresentada que assegure um resultado esteticamente válido seguindo rigidamente um programa fixo baseado em princípios científicos. Nem tal é provável que venha a acontecer pois a disciplina do treino vocal não pode ser abordada nestes termos1 (Reid, 1965: 5).

Para Cornelius Reid os professores da idade de oiro do Bel Canto, até meados do século XIX não possuíam um conhecimento explícito da anatomia e da mecânica da função vocal e por isso o ensino era empírico e nunca se exprimia em termos físicos. Reid (idem: 3) vai ao ponto de afirmar que a invenção do laringoscópio, que permitiu observar as cordas vocais em acção, teve consequências nefastas para o ensino do canto, ao encorajar esforços para conseguir um controlo mais directo da função vocal.

Na técnica pianística, são de realçar os estudos científicos de Bernstein (1929, citados em Altenmüller et al 2006: 93) e Ortmann (1925 e 1929). Mas Chiantore (2001) na                                                                                                                

1 Texto original: “Applied science proceeds from tested formulas and, as yet, no formula has been advanced which will ensure an aesthetically valid result by rigidly following a fixed program based upon scientific principles. Nor is this ever likely to happen as the subject of vocal training is not one which can be dealt with in these terms.”

sua “História da Técnica Pianística” questiona também o sucesso duma aplicação de dados científicos à pedagogia do piano:

Mas o que resta de tanta ‘ciência’ no ensino dos pedagogos de hoje? Algumas ideias gerais, sem dúvida, e um vocabulário básico. Mas o estudo racional dos mecanismos pianísticos não chegou a substituir o eficaz sincretismo que caracterizou os maiores pedagogos novecentistas2 (Chiantore, 2001: 722).

O ensino do piano continua a estar marcado pela correcção do detalhe e por uma análise dos problemas concretos de cada aluno, na qual a experiência pessoal do pedagogo prima, geralmente, sobre o conhecimento teórico da técnica. Os tratados do século XX não conseguiram criar uma espécie de ‘gramática’ da técnica universalmente aceite; a música mostra-se rebelde a uma excessiva racionalização dos seus fenómenos. Na opinião de Chiantore, o principal problema da ‘tecnologia pianística’ residiu precisamente numa análise exclusivamente mecânica da ‘técnica’.

Na mesma linha, sobressai na literatura flautística a obra publicada por Werner Richter (1986), um ambicioso tratado de flauta intitulado “Técnica Flautística Consciente”, com um longo subtítulo: “A técnica da Flauta Travessa deduzida e explicada a partir de fundamentos exactos. Ensaio duma completa interpretação. Reflexões sobre pedagogia”.3 O livro de Richter descreve de forma científica todos os aspectos da técnica e os parâmetros físicos da produção do som e as características e movimentos dos lábios. Trevor Wye, um dos pedagogos de flauta transversal mais procurados na actualidade, na bibliografia comentada que fornece nos textos de apoio ao seu programa de estudos4, faz um lacónico e irónico comentário sobre a obra de Richter: “muito pedagógico, mas demasiado detalhado”. De facto pode surpreender que o trabalho que disseca da forma mais exaustiva a técnica flautística não tenha sido objecto duma tradução para inglês, ou que Werner Richter não se tenha tornado um pedagogo de flauta internacionalmente reconhecido e procurado. Mas manifestamente a quantidade de informação sobre o ‘que fazer’ e ‘como fazer’ apresentado de forma tão sistematizada não tem uma relação directa com os resultados.5

                                                                                                               

2 Texto original: ”Pero que queda de tanta ‘ciencia’ en la enseñanza de los pedagogos de hoy? Algunas ideas generales, sin duda, y un vocabulario básico pero el estudio racional de los mecanismos pianísticos no ha llegado a sustituir al eficaz sincretismo que ya caracterizó a los grandes de la pedagogía decimonónica.” 3 Título original: “Bewusste Flötentechnik: Die Spieltechnik der Querflöte, abgeleitet und erklärt aus exakten Grundlagen. Versuch einer gesamtheitlichen Darstellung. Überlegungen zur Pädagogik.”

4 http://www.trevorwye.com/studio%20bibliography.html. Consultado em Fevereiro de 2009.

5 Trevor Wye coloca um parágrafo no seu currículo (Wye, 1993: contracapa) em que afirma que “apesar de não ter tido a desvantagem [sic!] de frequentar uma Escola Superior de Música foi durante 14 anos professor

A articulação e o vibrato permitem concretizar os problemas colocados pela tradução e posterior retroversão do saber tácito e para ilustrar como as descrições de aspectos técnicos da execução da flauta, que pelo seu carácter subjectivo, apresentam discrepâncias que os resultados da investigação científica ou duma aturada auto- observação nem sempre conseguem resolver. Os resultados da investigação científica ou da auto-observação, de resto, nem sempre garantem uma eficaz aplicação aos procedimentos pedagógicos. Na exposição seguinte, procurarei ilustrar e clarificar alguns dos conceitos expostos no primeiro capítulo.

A Articulação na Técnica Flautística

Dada a analogia linguística que propus para o processo de transmissão ou partilha explícita do conhecimento tácito, a técnica de articulação é particularmente adequada para ilustrar a natureza dos conceitos sistematizados no capítulo anterior. Um flautista traduz aquilo que faz com a língua para iniciar e separar as notas, em termos de sílabas fonéticas extraídas da linguagem falada. A estreita relação existente entre a voz e a emissão instrumental é claríssima: com os instrumentos fala-se e desde sempre nos tratados de flauta, a voz é apresentada como o modelo a imitar (Ganassi, 1980, 1ª ed 1535; Quantz, 1966, 1ª ed. 1752; Boehm, 1964 1º ed. 1871).

Nos tratados históricos abundam as referencias a sílabas articulatórias, que seriam usadas para destacar as notas. Da sua variedade ressalta uma sensibilidade muito grande às diferenças no ataque das notas, que progressivamente vai diminuindo, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII, quando a ligadura passa a ser utilizada com frequência crescente para obter variedade na articulação.

As tentativas dos flautistas historicamente informados compreenderem a forma de operacionalizar esses processos de articulação configuram, na realidade, um processo de retroversão de informação explícita, transformando-a num movimento tácito da língua que produza um efeito sonoro. Tácito no sentido em que, ao falarmos, não estamos focalmente atentos aos movimentos precisos da língua.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                na Guildhall School of Music”, demonstrando assim um certo desprezo por uma formação académica sistemática e ‘científica’.

As primeiras referências ao uso de sílabas articulatórias datam pelo menos do século XVI. Ganassi (1980, 1ª ed. 1535) publicou o tratado de flauta de bisel mais detalhado até ao século XX, onde defende eloquentemente a capacidade do instrumento imitar a voz humana:

... que assim como um digno e perfeito pintor imita todas as coisas criadas pela natureza variando as suas cores, com tal instrumento de sopro ou corda poderás imitar o proferir da voz humana... E se na verdade o pintor imita os efeitos da natureza com várias cores, o instrumento imitará o proferir da voz humana com a proporção do sopro e com a oclusão da língua com a ajuda dos dedos6 (Ganassi, 1980: Cap. 1).

Pouco depois ao fornecer um quadro com uma grande variedade de consoantes seguidas de todas as vogais7, sugere ao flautista que as experimente:

Nota como eu procedo com as vogais para que possas investigar qual a sílaba ou letra com que a natureza te dotou para exprimi-las com maior velocidade... Nota que querendo exercitar-te em algum movimento destas línguas supracitadas, na primeira original, investigarás algumas daquelas sílabas que te agradam, e ao exercitá-las com a prática as farás velozes8 (idem: capítulo sete).

Ganassi adopta aqui uma estratégia pedagógica não totalmente prescritiva, na medida em que enumera várias possibilidades, encorajando o aprendiz a experimentá-las todas para verificar aquela que melhor se coaduna com as suas características pessoais. Ganassi acrescenta que há outras formas de articular para além das que são sugeridas, “em outros modos que não escrevo [aqui], segundo [o modo] como a natureza opera...9 (idem).

Esta menção passa desapercebida a uma leitura ciosa de procurar informação relevante. No entanto não será legítimo especular que Ganassi não se deu ao trabalho de descrever essas outras formas de articular por desafiarem uma tradução fonética?

Curiosamente, um flautista mais tardio (Gunn 1992, 1ª ed 1793), critica a articulação entre os lábios, afirmando que não pode ser exprimida por uma sílaba como as                                                                                                                

6 Texto original: “che cosi come il degno & perfetto di pintor imita ogni cosa creata ala natura con la variation di colori con tale istrumento di fiato & corde potrai imitare el proferire che fa la humana voce : & che sia la verita il pintor imita li effetti de natura con varii colori lo istrumento imiterà il proferir della humana voce con la proportion del fiato & offuscation della lingua con lo agiuto de detti…”

7 Tacha, teche, tichi, tocho, tuchu; dacha, deche, dichi, docho, duchu; tara, tere, tiri, toro, turu; lara lere liri loro luru; dara, dare, dari, daro, daru; chara, chare, chari, charo, charu.

8 Texto original: “Nota come io procedo da le litere vocale accioche possi invistichar quala silaba over litera la natura ti habia dotato di esprimere talche con piu velocita... Nota che volenco tu essercitarti in alcuno moto di queste língua sopra ditta in nela prima originale tu invistigerai alcune de quelle sillabe qual piacera a te & essercitaria che con la frequentatione la farai veloce... “.

outras.10 John Gunn parece assim impor de forma prescritiva a necessidade duma tradução fonética das formas aceitáveis de articular.11 De facto, em vez duma descrição fastidiosa e provavelmente impossível do movimento da língua, usa-se uma analogia biomecânica com uma acção que qualquer pessoa tacitamente executa ao falar.

Fiabilidade da tradução e da retroversão

Sr. Explícito: Movendo a língua articulando sílabas, consigo os efeitos que pretendo e depois é só dizer aos alunos.

Sr. Tácito: E achas que toda a gente move a língua da mesma maneira?

Será que podemos confiar que a tradução dos movimentos da língua em consoantes resulte sempre na sua aplicação pelos aprendizes de modo a produzir os efeitos desejados? Ou seja, a retroversão dessas sílabas em movimentos da língua e numa configuração interna da cavidade bucal não estará sujeita a equívocos? A experiência empírica de qualquer professor de flauta mostra que sim, e uma releitura da citação de Alexander12 (1997: 90) do capítulo anterior, dá-nos pistas para procurar as razões.

Segundo Abbs (1986) há uma distinção entre a intenção linguística e a sua implementação neuromotora. Os comandos para a elocução serão concebidos para obter resultados acústicos mais do que espaciais. Nessa perspectiva, os resultados acústicos dependem mais da posição relativa do que da posição absoluta dos articuladores (Rosenbaum, 1991: 313). Estudos sobre fonética mostram assim que configurações articulatórias muito diferentes podem ser usadas para produzir consoantes ou vogais com características acústicas semelhantes (Noteboom 1970). Em português o ‘rr’13 não é pronunciado por todos da mesma forma: uns usam a parte posterior da língua, outros a anterior.

                                                                                                               

10 Texto original: “that is by all means to be avoided; namely a manner of tonguing, the articulation, or rather action, of which cannot, like the others be expressed by a syllable, but may be described to be similar to the action of the tongue in spitting saliva, or any other thing out of the mouth, whereby the tongue is made to pass between the lips which greatly impedes the sound in passing through that aperture” (John Gunn, 1793: 13).

11 Também será de referir a polémica entre Quantz e Moldenit (Powell, 2002:101 e Castellani & Durante, 1987: 57). Este último desmentia a articulação propugnada por Quantz, afirmando articular com os lábios e a sílaba ‘pi’. Como Moldenit não compareceu num “concurso/duelo” musical com Quantz para que ouvintes imparciais confirmassem as suas técnicas de execução, é habitualmente descartado como uma fraude. Mas na realidade a articulação com os lábios é usada e recomendada em certas situações (cf. por exemplo Bernold n.d., Wye, 1980, Floyd, 1990).

12 “...O “fazer” nesta perspectiva significa para o aluno a execução duma série de movimentos físicos a levar a cabo de acordo com a concepção que ele tem das instruções do professor” (Alexander, 1997: 90).

Mas, num instrumento de sopro, o objectivo dos movimentos articulatórios da língua não é um resultado acústico fonético, mas sim um resultado acústico no transitório de ataque e de extinção da nota. Pretende-se dotar o flautista dum reportório diversificado de coordenações dos numerosos músculos da língua de forma a imprimir-lhe movimentos que permitam diferenças na duração da oclusão da passagem do ar e na energia do ataque e da extinção.

As crianças identificam regularidades na quantidade de estímulos acústicos14 ouvindo subtis diferenças entre sons que os adultos não distinguem. Com a maturação categorizam uma gama de comprimentos de onda num único fonema. É por isso que os japoneses que têm na sua língua um fonema intermédio entre o ‘r’ e o ‘l’, incluem os dois sons na mesma categoria, sendo incapazes de distingui-los ou diferenciá-los15 com clareza em línguas estrangeiras (Ratey, 2003: 278).

Portanto, a concepção dos movimentos necessários para pronunciar um fonema é muito diversificada. Na terminologia que adoptei, este tipo de situações pode ser descrito como uma divergência na percepção das saliências acústicas.16

A convicção de que a língua materna condiciona a forma e a facilidade com que certas sílabas articulatórias são usadas é reforçada por um filme que o médico e flautista amador Jochen Gärtner fez em 1986.17 Gärtner filmou o interior da boca de flautistas profissionais e estudantes, franceses e alemães, através de raios X. A articulação dupla (‘tiki’ ou ‘digi’) mais frequentemente utilizada na actualidade na flauta transversal, observada em câmara lenta mostrou uma clara diferença entre franceses e alemães: os franceses moviam a língua duma forma muito mais elegante e económica do que os alemães, conseguindo maior velocidade e clareza.18 Gärtner aconselhava por isso os seus alunos com dificuldades de articulação, a aprenderem francês. Uma solução talvez eficaz,

                                                                                                               

14 Sobre este assunto, ver Mithen (2006: 75): “natural born statisticians”.

15 Devido à minha origem nortenha, tenho dificuldade em distinguir e diferenciar a pronúncia de ‘som’ e ‘são’. Esse facto já provocou mais do que uma vez equívocos com alunos de Lisboa que nas primeiras aulas ficavam confusos quando eu falo em ‘qualidade de som(ão)’.

16 O episódio da narrativa do primeiro capítulo, é outro exemplo do mesmo fenómeno: uma acentuação métrica implica geralmente uma subtil e variável combinação da intensificação da dinâmica e do alongamento duma nota (Sloboda 1983; Houle 1987).

17 Visionei estes filmes numa conferência proferida pelo Dr. Jochem Gärtner na “Fluitweek” de Amsterdam em 1987, mas até à data não consegui obter uma cópia dos filmes e aparentemente não chegou a ser publicado qualquer trabalho sobre o assunto.

mas que não têm em consideração que a categorização dos fonemas é feita em tenra idade e bastante difícil de alterar por um adulto.19

Conscientes da necessidade de clarificar a natureza dos movimentos articulatórios traduzidos foneticamente em tratados históricos de várias proveniências, Castellani & Durante (1987) publicaram um estudo sobre o assunto, procurando interpretar as sílabas com base na fonética de cada língua. Num capítulo dedicado às relações entre onomatopeias e articulação instrumental (idem: 75-116), especulam que elas poderiam representar uma tentativa de tradução, não baseada na percepção acústica, mas antes na reprodução dos processos mecânicos e articulatórios que estariam na sua base. Castellani & Durante encontraram numerosos exemplos numa plêiade de línguas, em que onomatopeias associadas a instrumentos de sopro se assemelham às sílabas articulatórias propostas nos tratados. Referem, por exemplo, uma canção alemã: ”Du, du, du so macht mein Fagott; Dill, dill, dill, so macht mein Flöt”,20 anterior à descrição que Quantz (1966) faz no seu tratado de 1752 da articulação ‘didl’, que contribui para a tese de que a onomatopeia é também a descrição do movimento da língua. De acordo com a conjectura de Castellani & Durante (1987) poderemos admitir a hipótese de que ‘tiroliro’, que em português significa o nome e o toque do pífaro seria, não apenas uma descrição do som da flauta, mas também da sua técnica de execução.

São conhecidas algumas diferenças nacionais nas sílabas usadas na articulação de passagens mais rápidas. A articulação dupla ‘didl’ é mencionada em tratados alemães e ingleses mas ignorada ou desprezada na maioria dos tratados franceses. Quantz (1966: 79) realça que a segunda sílaba não é pronunciada com a ponta da língua, mas com as bordas laterais e não há lugar à pronúncia duma vogal. ‘Didl’ e não ‘didel’. Esse facto é descurado por Vanderhagen no seu “Méthode nouvelle et raisonnée pour la flûte” de 1788, onde o autor muito realisticamente reconhece a dificuldade duma tradução:

... o golpe de língua duplo, por não poder ser bem explicado por escrito, é preciso que seja bem demonstrado por um mestre. Vários autores procuraram demonstrar o DiDelDiDel, e apesar dos esforços, o estudante perde o seu tempo a procurá-lo. Pela minha parte estou convencido que o golpe de língua duplo não pode ser demonstrado exactamente por escrito21 (Vanderhagen, 1788; citado em Castellani & Durante, 1987: 56).

                                                                                                               

19 Um facto evidenciado pela extraordinária facilidade com que as crianças de pais de diferentes nacionalidades aprendem duas línguas sem um sotaque acentuado, em qualquer uma delas.

20 Tradução: “Du, du, du assim faz o meu fagote; Dil, dil, dil, assim faz a minha flauta.”

21 Texto original: “...le double coup de langue, car ce dernier ne peut être bien explique par écrit il faut qu’il soit bien démontré par un Maitre. Plusieurs auteurs ont cherché à le démontrer DiDelDiDel, et malgré tous

Em tratados franceses, o mais aproximado que encontramos é a articulação dupla de Delusse (1997, 1ª edição c. 1761): “Golpe duplo de língua: faz-se aproximando os lábios dos dentes e conservando sempre a língua na boca de forma que indo e vindo com uma rapidez extrema sobre o palato, ela articula a sílaba LOUL”22 (Delusse, 1997: 4).

Este “indo e vindo com uma rapidez extrema” é habitualmente interpretado como um movimento antero-posterior, mas como veremos mais adiante a exploração de movimentos laterais da língua proporcionou-me resultados inesperadamente eficazes. Como movimentos laterais da língua não são habituais na linguagem falada essa hipótese raramente é considerada.

Do outro lado do Canal da Mancha, um outro flautista anuncia de forma bombástica a sua tradução da articulação dupla:

Vou aqui desvendar o Grande Segredo da Articulação dupla, que com grande esforço, assiduidade e trabalho, levei quatro anos a dominar, mas que agora frequentemente ensino num número de horas inferior... pela acção e reacção da língua contra o palato, pronunciando as palavras too-tle, too-tle23 (Lewis Granom. Plain and easy Instructions for playing on the German-Flute, Londres, 1766; citado em Castellani & Durante, 1987:195).

Granom dá a ideia de ter descoberto a maneira de fazer aquilo que outros flautistas do continente já faziam24 e a palavra ‘tootle’ aparece como um verbo num poema de 1820 associado ao canto do pintarroxo (Castellani & Durante, 1987: 115).

Será que o movimento que Granom pacientemente trabalhou se revelou semelhante à pronúncia daquelas palavras, que assim passou a utilizar como recurso pedagógico? Ou será que o seu domínio da articulação dupla se consumou quando resolveu experimentar pronunciar aquelas palavras? Por outras palavras: tootle é uma tradução fonética da solução encontrada por Granom na sua exploração das possibilidades de coordenação dos movimentos da língua ou a descoberta da nova forma de articular resultou da retroversão