• Nenhum resultado encontrado

I PARTE: FERRAMENTAS CONCEPTUAIS

Capítulo 5: A TÉCNICA ALEXANDER

2. Uso e Funcionamento

Uma premissa da TA é que o uso afecta o funcionamento do organismo. Importa portanto definir o que Alexander entende por “uso”:

...sempre que utilizo a frase ‘uso e funcionamento’ não me refiro à actividade mecânica em si, mas incluo no conceito todas as manifestações da actividade humana envolvidas no que designamos como concepção ou compreensão, dar ou recusar o consentimento, pensar, raciocinar, dirigir, etc.4 (Alexander, 1985: 53). O título do seu quarto e último livro, “A constante universal na vida” (Alexander: 2000a), refere-se precisamente à constante e universal influência do “bom” ou “mau” uso no melhor ou pior funcionamento do organismo, na eficiência da execução de qualquer actividade e nas dificuldades criadas por uma deficiente articulação dos processos conscientes e inconscientes. Alexander (1995b: 32) insiste repetidamente em três problemas típicos do mau uso: excessiva tensão muscular, energia mal direccionada e falta de fiabilidade da percepção sensorial.5 Ou seja, se há tensão excessiva, muitas vezes esta                                                                                                                

3 Texto original: “First, there is always a residue of particulars left unspecified; and second, even when particulars can be identified, isolation changes their appearance to some extent.”

4 Texto original: “... whenever I use the phrase ‘use and functioning’ I do not indicate by it mechanical activity as such, but include in the phrase all manifestations of human activity involved in what we designate as conception or understanding, withholding or giving consent, thinking, reasoning, directing, etc.”

5 Texto original: “Undue muscular tension, misdirected energy and untrustworthiness of sensory appreciation.”

tensão está mal direccionada e é resultado duma percepção sensorial que nos leva a usar músculos desnecessários para a acção, incapazes de distinguir os músculos necessários, daqueles que o não são ou são mesmo contraproducentes. Um “bom uso” estará assim dependente da utilização dos músculos correctos, no grau de tensão estritamente necessário e no momento adequado e da capacidade de inibir a contracção dos músculos desnecessários.

Os quatro níveis de construção dos movimentos propostos por Bernstein (1996: 115-170; Davids, Button & Benett, 2008: 175-8) descritos no capítulo anterior, permitem uma compreensão dos aspectos do movimento que a TA procura alterar. À medida que o controlo do tónus da musculatura postural (nível A), dos movimentos das extremidades responsáveis pela locomoção (nível B) e dos movimentos que implicam o contacto ou manipulação com o espaço exterior (nível C) vão sendo progressivamente relegadas para níveis inferiores da consciência, automatizados e incorporados no nosso conhecimento tácito somático, a destreza e o controlo das acções, constituídas por sequências de movimentos que em conjunto resolvem um problema motor (nível D) podem ver a sua eficiência comprometida pela incapacidade de aceder aos primeiros níveis para alterar adaptações e correcções ineficientes mas que se tornaram habituais.

Alguns dos efeitos imediatos duma aula de TA,6 melhoria do bem estar geral, descontracção, sensação de leveza e capacidade de fazer as mais diversas actividades com menor esforço, criam na generalidade das pessoas o conceito errado, ou pelo menos parcial, de que se trata dum método ou terapia de correcção postural e relaxamento. Na realidade pode ser apenas isso, para quem não a queira ou possa aprofundar, mas a sua essência é bastante mais do que isso.

Nesse sentido há dois rótulos que são frequentemente associados à TA: postura e relaxamento. No entanto estas palavras são extremamente redutoras da verdadeira natureza da Técnica e são frequentes as citações de Alexander que mostram como ele punha em causa estes dois conceitos:

                                                                                                               

6 A numerosa bibliografia de divulgação sobre a Técnica Alexander inclui numerosos depoimentos em que se pode notar uma homogeneidade nas descrições que englobam estes aspectos. Ver por exemplo: Alcântara (1997a e 1999); Barker (1991); Brennan (1997); Chance (1998); Conable (1991); Craze (1996); Drake (1996); Gray (1990); Stevens (1987); Vineyard (2007). Ver também Benham et al (1993) para uma discussão das experiências de três instrumentistas de sopro com a TA.

...eu não gosto da palavra postura. Postura é uma condição estática, é o fim a ser atingido, não o meio de consegui-lo e o meu trabalho está relacionado exclusivamente com os meios...7(Alexander, 1995a: 185).

Uma posição correcta não existe como tal, mas há uma coisa chamada direcção correcta8 (idem: 194).

À concepção e prescrição duma postura “correcta” como uma condição estática o fisiologista Raymond Dart (1996: 109-151) contrapõe uma visão mais dinâmica à qual atribui a denominação de “poise”. Equilíbrio, alinhamento, atitude e porte são quatro traduções do dicionário que em conjunto englobam de alguma forma o conceito.9 Barlow (1978: 101), um médico formado por Alexander na sua Técnica afirma que uma boa postura não implica um padrão idealizado mas a vontade ou capacidade duma pessoa manter as relações entre as diferentes partes do corpo que assegurem o mais eficiente comportamento e funcionamento fisiológico. Na visão de Bernstein (1967) a postura não é somente a manutenção do equilíbrio mas também a preparação para a acção, ideia expressa por Alexander ao afirmar que a melhor postura é aquela a partir da qual mais facilmente mudamos de posição. Nesse sentido, prescrever uma postura correcta, concebida como um mero alinhamento ideal dos segmentos do corpo, corre o risco de induzir um indivíduo a procurar manter esse alinhamento criando rigidez nas articulações. Alcantara (1999) propõe por isso o conceito de “mobilidade latente”: qualquer posição deve ser mantida com o mínimo esforço muscular, permitindo iniciar qualquer movimento com facilidade e fluidez. Essa disponibilidade permanente para o movimento proporciona o tipo de movimentos e realinhamentos passivos resultantes de alterações do centro de gravidade motivadas por pequenos movimentos da cabeça, pelo simples levantar dum braço ou ao empunhar a flauta, que serão ilustrados nos capítulos 7 e 9.

Quanto ao relaxamento, Alexander vê na sua prática o não reconhecimento da inconsequência de realizar qualquer movimento sem usar a tensão correcta e nesse sentido considera qualquer instrução no sentido de relaxar como vaga e imprecisa:

Instruções pouco claras sobre “fazer coisas duma forma relaxada” em oposição a estar tenso – são imprecisas, porque todo o movimento à excepção do cair, ocorre através duma contracção muscular. Uma instrução para relaxar com demasiada frequência interfere com a coordenação. Acarreta uma espécie de colapso muscular                                                                                                                

7 Texto original: “I don’t like the word posture. Posture is a static condition, it is the end to be gained, not the means whereby you should gain it. Now, my work is concerned entirely with the “means whereby”...” 8 Texto original: “There is no such thing as a right position, but there is a thing as right direction.” 9 Dicionário Porto Editora, 1984.

em certas partes do corpo exigindo assim trabalho extra a outros músculos10 (Alexander, 2002: 135).

Para uma situação em que este fenómeno se pode verificar remeto o leitor para uma citação do Dr. Philip Chamagne (2000: 124) na página 196-7.

Alexander (2002) considera que o uso instintivo, no fundo uma forma de conhecimento tácito, sempre serviu a humanidade até à aceleração do desenvolvimento da civilização. Muitos dos males do mundo moderno (doenças psicossomáticas, dores nas costas, obesidade, etc.) devem-se a problemas de adaptação à vida sedentária e urbana. A medicina creditada com inegáveis avanços no combate a graves doenças mortais ou debilitantes, não tem respostas definitivas para este outro tipo de males e na maior parte das vezes limita-se a combater os sintomas com analgésicos, relaxantes musculares ou antidepressivos. São males que se devem em parte, a um “mau uso”, que na perspectiva de Alexander poderiam ser evitados ou minimizados por uma tomada de consciência das capacidades adaptativas do ser humano. Frequentemente se confundem causas com efeitos e sintomas: o “stress” não é consequência imediata da moderna vida buliçosa, mas da nossa reacção a esse estímulo. Há assim duas soluções possíveis: mudar o estímulo ou mudar a reacção. A TA procura ajudar a implementar a segunda hipótese.

Alexander dá numerosos exemplos daquilo que considera mau uso: “má direcção do uso encontra-se na pessoa que ao pegar numa caneta para escrever, imediatamente procede contraindo os dedos em excesso, faz movimentos com o braço que deveriam ser feitos com os dedos, chegando mesmo a contorcer a face”11 (Alexander, 1985: 61).

Assim o mau uso manifesta-se nos actos mais quotidianos, como estar de pé, ou falar. O estar de pé, que em inglês é expresso por um gerúndio (standing), implica uma actividade, em grande parte inconsciente, mas nem por isso menos real, de responder à gravidade e manter o equilíbrio.12 No entanto é um erro considerarmos que os actos motores envolvem apenas os músculos: o pensamento é responsável pela activação dos                                                                                                                

10 Texto original: “Careless talk about ‘doing things in a relaxed manner’ as opposed to being tense – are imprecise, since all movement, except falling occurs by means of muscular contraction. The instruction to relax all too often produces interference with co-ordination. It entails a sort of muscular collapse in some parts of the body, and therefore throws extra work on to other muscles.”

11 Texto original: “Misdirection of use is to be found in the person who takes up a pen to write and proceeds at once to stiffen the fingers unduly, to make movements of the arm which should be made by the fingers, and even to make facial contortions.”

12 Em nenhum momento deixa de haver movimento no nosso corpo. A respiração e o bater do coração, geram oscilações posturais (Roberts, 1995).

músculos, e inversamente o estado muscular é uma das manifestações do estado emocional e portanto afecta o pensamento.

Há sinais visíveis do uso duma pessoa, como por exemplo a posição habitual da cabeça na sua relação com o pescoço; o alongamento ou arqueamento das costas; a forma como respira sugando o ar precipitadamente; a mobilidade da caixa torácica; a forma como se move, a velocidade de reacção e a fluidez do movimento. Como tudo isto afecta o funcionamento do organismo e aumenta a predisposição para certas doenças, Alexander escreveu um capítulo sobre o diagnóstico e a importância de um médico saber observar o uso dum paciente (Alexander, 1985: 86). Em 1937, um grupo de médicos escreveu uma carta ao British Medical Journal recomendando a introdução da TA no currículo médico argumentando que o diagnóstico dum paciente permanece incompleto se não tiver em consideração a influência do uso no funcionamento (Alexander, 2000: 13). Esta capacidade de extrair informação da linguagem corporal é uma forma de conhecimento tácito presente em muitas pessoas e Polanyi considera o diagnóstico médico dependente desse tipo de conhecimento (Polanyi, 1997: 54). Da mesma forma, um professor de instrumento deverá possuir ou desenvolver essa capacidade de detectar o bom ou mau uso do estudante nos mais pequenos detalhes.

Este conceito de “uso de si mesmo” leva muitos praticantes da TA a dedicarem algum do seu tempo a prestar atenção à sua atitude geral no desempenho das actividades do dia a dia. Aquilo a que chamam de “trabalhar sobre si mesmo” (work on oneself). No fundo é uma forma de aguçar a consciência dos gestos quotidianos e de praticar formas de economizar energia em actividades que damos por adquiridas. Baseia-se na convicção de que se alterarmos a forma como nos comportamos nas actividades mais automatizadas, será possível transferir essa aprendizagem para actividades mais exigentes.13