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Problematizando a Formação Inicial dos Formadores

No documento carlapatriciaquintanilhacorrea (páginas 179-184)

7.1 Trajetória Formativa e Concepções de Formação Docente

7.1.1 Problematizando a Formação Inicial dos Formadores

Em relação à sua formação inicial, cinco coordenadores de área cursaram a Licenciatura e, para três deles, o Estágio Supervisionado não foi avaliado como satisfatório. Dos 6 coordenadores, a metade enfrentou problemas no início da docência. Um dos coordenadores que avaliou seu Estágio como satisfatório cursou sua Licenciatura na década de 1980, período reconhecido na literatura por nós sistematizada como tendo a predominância do modelo da racionalidade técnica na formação de professores. Isso pode representar um indicativo de que esse formador, ao longo de sua trajetória, adotou tal modelo como o ideal em sua concepção de formação, o que poderia explicar a avaliação positiva do seu Estágio, mesmo no provável contexto da racionalidade técnica. O outro coordenador que avaliou seu

Estágio como satisfatório cursou sua Licenciatura no período da instituição das Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação Básica (Resolução CNE/CP nº 01, 18/02/2002). É possível que a Licenciatura por ele cursada ainda tenha sido muito influenciada pelo modelo da racionalidade técnica.

Quanto às supervisoras, metade delas apresenta alguma insatisfação com sua formação inicial. Sete supervisoras apontam o Estágio Supervisionado como satisfatório, mas metade delas enfrentou alguma dificuldade no início da docência. Dentre as quatro supervisoras que tiveram suas expectativas atendidas ao cursarem a Licenciatura, uma delas pontuou: “Um curso que nos proporcionou um conhecimento bem aprofundado dos conteúdos básicos e que nos deu bastante segurança para desenvolver o trabalho de docente” (Supervisora 2, grifo nosso). Percebemos que a ênfase aqui para uma boa formação parece estar no âmbito do conhecimento dos conteúdos, ou seja, da teoria.

Outras duas supervisoras não detalharam sua avaliação positiva da Licenciatura, e a última ponderou: “[...] diante da realidade de uma sala de aula, posso comprovar que os conhecimentos adquiridos foram muito satisfatórios” (Supervisora 1, grifo nosso). Para aprofundar nossa compreensão do que seriam esses conhecimentos adquiridos, cruzamos essa resposta com a opinião da mesma supervisora sobre o que um professor tem que saber para exercer sua profissão: “Acredito que, além dos conteúdos de sua disciplina, o professor precisa ter didática, ou seja, maneiras de viabilizar os conteúdos, objetivando uma aprendizagem dos alunos de forma significativa” (Supervisora 1). Consideramos que a concepção de docência veiculada pela supervisora parece ultrapassar a ênfase no domínio dos conteúdos, para incluir a imperiosa necessidade de saber trabalhá-los junto aos alunos. Contudo, sentimos a ausência da dimensão crítica, característica do modelo crítico de formação de professores, que propõe uma visão política da docência e do fenômeno educativo.

No Capítulo 3, apresentamos o estudo de Cruz e André (2014), que apontou a limitação dos formadores que ministram a disciplina Didática, presos a uma concepção de Didática teórico-prática, distanciada da problematização do cotidiano escolar. Para as autoras, os temas abordados na formação não alcançam uma Didática Fundamental, que articula as dimensões humana, política e técnica intrinsecamente envolvidas na docência. Com uma concepção de docência limitada, os formadores tendem a reproduzir tal concepção na formação dos novos professores. Talvez a dificuldade da supervisora em conceber uma dimensão mais crítica da didática seja proveniente da sua trajetória formativa.

Retomamos a questão feita aos formadores sobre os saberes necessários à docência, apresentada no capítulo anterior. Obtivemos, como resultado, a ênfase no conhecimento do conteúdo a ser ensinado e também a menção ao necessário foco no aluno como as categorias mais citadas pelos participantes. Essa questão necessita de um aprofundamento por meio da temática dos saberes docentes. Muitos trabalhos podem nos auxiliar nessa tarefa113, dentre eles, o realizado por Gauthier et al. (1998). Segundo esses autores, para ensinar, os professores mobilizam os vários tipos de saberes que possuem e que constituem seu “reservatório de saberes”, como apresenta o Quadro 12.

QUADRO 12- O RESERVATÓRIO DE SABERES, SEGUNDO GAUTHIER et al. (1998)

Saberes Saberes Saberes Saberes Saberes Saberes

disciplinares (A matéria) curriculares (O programa) das ciências da educação da tradição pedagógica (O uso) experienciais (A jurisprudência particular) da ação pedagógica (O repertório de conhecimentos do ensino ou a jurisprudência pública validada) Fonte: GAUTHIER et al. (1998)

De modo geral, podemos dizer que o saber disciplinar diz respeito ao conhecimento das diversas disciplinas científicas, envolvendo o conhecimento produzido sobre o mundo. O saber curricular está voltado ao programa de ensino, que apresenta uma seleção e organização de alguns conhecimentos científicos, transformando-os num corpus a ser ensinado. O professor necessita conhecer o programa, que servirá como uma espécie de guia para o planejamento das atividades. O saber das ciências da educação está ligado à formação inicial do professor ou ao seu ambiente de trabalho e pode ser definido como “um conjunto de saberes a respeito da escola que é desconhecido pela maioria dos cidadãos comuns e pelos membros das outras profissões (GAUTHIER et al., 1998, p. 31).

O saber da tradição pedagógica diz respeito à concepção prévia sobre o magistério que povoa o imaginário dos ingressantes na formação de professores. Tal representação possui uma força significativa para guiar as ações dos professores. Já o saber experiencial é produzido quando o professor aprende por meio de suas próprias experiências. “Essa

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ANDRE; HOBOLD; PASSOS (2012); GAUTHIER (1998); MIZUKAMI (2004); MONTEIRO (2000, 2001); NUNES (2001); RAMALHO; NUÑEZ; GAUTHIER (2003); SHULMAN (1986; 2005); TARDIF (2000; 2008; 2005).

experiência torna-se então ‘a regra’ e, ao ser repetida, assume muitas vezes a forma de uma atividade de rotina” (GAUTHIER et al., 1998, p. 33).

Por fim, o saber da ação pedagógica refere-se ao “saber experiencial dos professores a partir do momento em que se torna público e que é testado pelas pesquisas realizadas em sala de aula” (GAUTHIER et al., 1998, p. 33). Este seria o saber mais necessário à profissionalização do ensino, pois na ausência de um saber da ação pedagógica considerado válido, o professor recorre ao bom senso ou à experiência, por exemplo, o que limita sua ação, não a distinguindo de um cidadão comum.

Considerando as respostas dos formadores do nosso estudo, notamos que alguns dos saberes apresentados por Gauthier et al. (1998) são por eles destacados como necessários à profissão. O conhecimento do conteúdo, de acordo com os formadores, é chamado por Gauthier et al. (1998) de saberes disciplinares, enquanto o que foi denominado por nós como foco no aluno pode ser associado ao saber da ação pedagógica, que reúne as experiências docentes validadas pelas pesquisas.

De maneira geral, podemos dizer que coordenadores e supervisoras concordam que o conhecimento do conteúdo e o foco do aluno sejam importantes, mas para as supervisoras o saber da ação pedagógica as leva a atribuir um grau de importância igual entre os dois aspectos, enquanto os coordenadores mencionaram mais o saber disciplinar. A experiência cotidiana com os adolescentes/jovens em sala de aula pode ter auxiliado as supervisoras nessa sutil diferenciação entre os saberes.

Essa reflexão nos leva à questão da avaliação feita pelos formadores participantes do estudo quanto à sua própria formação. A maioria dos formadores indicou nunca enfrentar dificuldades relacionadas à sua própria formação (4 coordenadores e 7 supervisoras)114. Com base na literatura aqui apresentada, indagamos se esse dado seria proveniente de uma limitação na avaliação das lacunas formativas da própria formação. Como vimos, há um indicativo de que boa parte dos formadores tenha sido formada em um modelo de formação pautado na racionalidade técnica. Até que ponto os efeitos desse modelo poderiam dificultar a análise da própria formação, a ponto de fazer com que os formadores alegassem nunca enfrentar dificuldades em relação à sua própria formação? Parece que a resposta dada está mais voltada ao conteúdo específico da sua área com o qual tiveram acesso na Licenciatura.

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Ponderamos que esta questão do instrumento não especificava que a dificuldade enfrentada seria ligada à formação do formador para a docência, o que pode ter interferido na compreensão da pergunta por parte dos respondentes.

Temos apoio para esse argumento em diversas respostas dos formadores participantes, algumas já apresentadas, que priorizam o conhecimento do conteúdo, até mesmo elegendo-o como o primeiro fator a ser registrado na resposta. Dos 16 formadores participantes do estudo, 10 indicaram o conteúdo como o primeiro fator a ser elencado ao responderem o que um professor tem que saber para exercer a profissão. Temos ciência da relevância do conhecimento do conteúdo no exercício da docência, mas ponderamos que outros saberes possuem igual importância no repertório de saberes (GAUTHIER et al., 1998) de um professor. Consideramos que a ênfase no conhecimento do conteúdo é proveniente da influência do modelo da racionalidade técnica na concepção de formação desses sujeitos.

Indícios da racionalidade prática também podem ser constatados, na medida em que uma ênfase na prática foi encontrada nas respostas. Um formador indicou o que um professor precisa saber para lecionar:

Os cursos de Licenciatura, de modo geral, ensinam a teoria, a prática de ensino é iniciada com os estágios e com a observação dos licenciandos enquanto alunos, mas a prática da docência só é aprendida na prática, após a sua formação. É necessário que o professor tenha conhecimento, paciência, métodos de ensino diferenciados e procure entender como o aluno pensa e não como é comum pensar (Coordenador 4).

Reconhecemos a importância dos saberes experienciais, aqueles adquiridos no exercício profissional, como um dos saberes que compõem o reservatório de saberes dos professores (GAUTHIER et al., 1998), mas não concordamos que a docência seja aprendida apenas na prática, por meio das experiências profissionais. Consideramos que a formação docente, na perspectiva do modelo crítico, pode reunir as condições necessárias para que o licenciando tenha clareza das múltiplas dimensões do fenômeno educativo, sendo capaz de atuar com consciência política diante da realidade que o cerca.

A análise das respostas dos formadores, na maioria das vezes, não revelou sinais dessa problematização da atividade docente em sentido mais amplo, ultrapassando os limites do conteúdo ou da prática, e indicando a adoção do modelo crítico de formação. Entretanto, uma das supervisoras, ao apontar o que o docente precisa saber para exercer sua profissão, ponderou: “Um professor precisa analisar a realidade da escola, da turma e, principalmente, do aluno para depois pensar em um plano de ação efetivo” (Supervisora 5). A nosso ver, esse registro contém indícios de uma concepção de docência pautada na racionalidade crítica, tão necessária ao exercício do trabalho docente. A formadora analisa o contexto vivenciado, para, a partir dessa problematização, propor um processo ensino-aprendizagem coerente com as

demandas locais e individuais dos alunos. Outro formador, ao responder a mesma questão, registrou que o professor precisa saber: “conteúdo, didática, instrumentalização, consciência do seu papel formador” (Coordenador 6). Neste depoimento, ressaltamos a indicação da consciência do papel formador que o professor necessita ter, implicando a dimensão política da sua prática, e constituindo um indício de uma concepção de docência pautada no modelo crítico por parte do formador. Dessa forma, procuramos evidenciar que a formação inicial do formador pode repercutir na concepção de docência e, portanto, de formação, que veicula ao atuar formando outros professores, mas sua trajetória formativa oferece um leque de contribuições que oportunizam o revisitar de suas convicções, como veremos a seguir.

No documento carlapatriciaquintanilhacorrea (páginas 179-184)