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CAPÍTULO 3 A BIODIVERSIDADE, O BIOMA MATA ATLÂNTICA E AS

3.2 Aspectos históricos e socioeconômicos da ocupação da região dos Campos de Cima da

3.2.2 Processo histórico de ocupação dos Campos de Cima da Serra

O processo de ocupação e de desenvolvimento da agricultura da região dos Campos de Cima da Serra, conforme Ambrosini et al. (2012), pode ser dividido em quatro fases: a) indígena (até 1700 aproximadamente); b) sesmarias (1760-1860); c) tropeirismo regional (1860-1940); e, d) sistema agrário atual (1950-...).

De acordo com Kern (1994 apud Ambrosini et al. 2012), a região dos Campos de Cima da Serra é ocupada por humanos a mais de quatro milênios, sendo habitada por grupos humanos caçadores-coletores que se deslocavam através da paisagem conforme as estações.

Esses indígenas viviam em grupos e sua alimentação estava baseada na caça de animais nativos como veados, capivaras, ratões do banhado, na pesca e na apropriação de espécies da floresta nativa, coletando raízes, mel silvestre, frutas nativas e pinhão.

Os povos indígenas que viveram nesta região possuíam uma relação bastante próxima com os recursos naturais disponíveis na Floresta das Araucárias, pois dependiam dos frutos,

70 sementes, raízes e dos animais que habitavam esse ambiente, ressaltando o uso do pinhão e das frutas nativas na alimentação.

A coleta de pinhão e mel era realizada na floresta de pinhais. Também da floresta era obtida matéria-prima para confecção de artesanato, madeira para mãos-de-pilão – instrumento utilizado para moer o milho e o pinhão –, além de flechas, pedra para confeccionar as lâminas dos machados bifaciais e, ainda, fibras, peles e ossos. (KERN, 1994 apud AMBROSINI et al. 2012 p. 175).

O aspecto da coleta do pinhão e das frutas nativas existentes na Floresta das Araucárias pelos povos indígenas permitirá compreender a relação histórica que se estabelece entre os grupos humanos que habitaram esta região, caracterizando a floresta como um espaço importante de produção de alimentos para os grupos humanos.

Entretanto, como veremos a seguir, as estratégias de produção de alimentos passaram por fases que aos poucos foram perdendo essa relação mais próxima com a Floresta das Araucárias, passando a desenvolver a agricultura e a pecuária e promovendo grandes transformações nas características desta região. Uma das primeiras transformações ocorridas foi a introdução da pecuária de corte nos campos nativos.

No início do século XVI os campos, então chamados Baqueria de los Pinhales, começaram a ser ocupados por jesuítas espanhóis como passagem do gado da região das Missões para São Paulo. Visto ser uma grande área de campos naturais privilegiada por estar naturalmente protegida foi escolhida para ser uma reserva de gado. (OLIVEIRA, 1959 apud DONAZZOLO, 2012 p. 86).

Durante muitos anos esta região foi marcada pela criação de gado de corte que se multiplicava de forma natural, sendo este um dos atrativos dos açorianos vindos de Laguna, que receberam terras do governo português nas áreas de campo, mediante a concessão de sesmarias. (BARBOSA, 1978 apud DONAZZOLO, 2012).

O sistema extensivo de criação da pecuária de corte foi predominante até a década de 1920, realizado nas fazendas concomitante com a produção de uma diversidade de espécies agrícolas para o consumo interno. Assim, a produção de grãos como o trigo, milho e feijão existiam na pequena escala e eram tidas para o autossustento além de uma diversidade bastante grande de outros cultivos, como aponta Barbosa:

[...] as fazendas também possuíam um pequeno quintal, onde se cultivava legumes e hortaliças dos mais variados (ervilha, feijão-de-vagem, repolho, alface, couve, couve- flor, fava, mostarda, batata...), o pomar, onde se cultivam inúmeras frutíferas como laranjeiras, macieiras, maçã-cravieira, bergamota, lima, limão, ameixa preta, ameixa

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da Europa, pêras de várias qualidades, pêssego, figo, marmelo, destinadas geralmente à agroindústria caseira. (BARBOSA, 1978 apud DONAZZOLO, 2012 p. 87 e 88).

Do ponto de vista econômico, a criação de gado foi o que sustentou essa fase importante do sistema agrário desta região e de modificação das relações dos humanos com o ecossistema dos Campos de Cima da Serra. Contudo, o que se aproveitava do gado neste período era o couro, pois era o produto que possuía mercado, somente depois se começou a aproveitar o sebo. Mais tarde, com ascensão das Minas Gerais e o advento das charqueadas a carne passou a ser o objetivo da criação dos animais. (BARBOSA, 1978 apud DONAZZOLO, 2012).

Essa fase dá início a uma nova mudança no sistema agrário desta região que passa a contar com o tropeirismo, que segundo Lavalle (2004 apud Ambrosini et al. 2012), constitui- se na atividade econômica mais rentável no território meridional brasileiro na primeira metade do século XVIII. Esta fase marca o início das tropas de muares para transporte de mercadorias e de gado bovino para abastecer de alimento os mineiros (RECCO, s/d.). Isso fará do Rio Grande do Sul o principal fornecedor de gado para Minas Gerais. (OLIVEIRA, 2004; SILVA, 2004 apud AMBROSINI et al. 2012 p. 177).

É importante destacar que mesmo a criação de gado começando a ter maior expressividade e que o campo nativo com forrageiras variadas tenha sido fundamental para o desenvolvimento da pecuária nesta região, um aspecto que merece destaque - e que posteriormente contribuirá para compreensão sobre o uso do pinhão e das frutas nativas - é o deslocamento dos animais para a região da serra no período de inverno. As grandes fazendas se dividiam entre áreas de campo com pastos nativos e áreas de serra onde predominava a vegetação densa, com predominância da araucária16.

Estas áreas cobertas por araucárias e uma diversidade de frutas nativas serviam de abrigo para os animais no inverno e eram chamadas de “invernadas”. O pinhão servia de alimento para o gado e também para a engorda de porcos que eram criados nas fazendas e tornava-se um dos principais alimentos para os peões que trabalhavam na lide com estes animais na temporada do inverno. Segundo Flores,

Em abril, formava-se uma comissão de peões que seguiam com a tropa de gado, cavalos e porcos para a serra para abrigar-se do frio. Os porcos alimentavam-se de pinhão e no fim do inverno estavam gordos e prontos para serem abatidos. Após, era extraída banha, feita a linguiça e o charque, que seguiam para a sede da estância para serem consumidos durante o ano. O gado retornava para a fazenda, onde era vendido

16 O mosaico de floresta e campo é umas das características da Floresta das Araucárias nos Campos de Cima da

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para as tropas ou usado pelo estancieiro. (FLORES, 1988 apud AMBROSINI et al. 2012 p. 178).

Neste período também foi criada uma nova categoria de uso da terra para fins de recenseamento, caracterizada como “invernadas e campos de engorda”. Este fator passou a demonstrar a importância da atividade pecuária na região dos Campos de Cima da Serra e perante todo o estado. Vacaria por um longo período foi o município que possuía a maior extensão de áreas ocupadas por invernadas no Rio Grande do Sul.

É importante destacar que nestas áreas de floresta o solo possuía maior fertilidade do que nas áreas de campo nativo, sendo as áreas de floresta escolhidas para fazer as pequenas lavouras de grãos e cultivar as espécies destinadas ao autoconsumo das famílias da fazenda. De acordo com Donazzolo (2012), essas áreas de terra na serra, não raro, mais tarde eram destinadas para peões que desejassem ser autônomos e também para dar vida independente a muitas famílias de afrodescendentes após a abolição da escravatura quando seus antigos senhores não os permitissem na fazenda.

Nessas áreas foram introduzidas espécies agrícolas que contribuíram para a formação de um sistema de produção de alimentos que permitia o autoconsumo das famílias, o que não impediu a continuidade da apropriação do pinhão ou mesmo das frutas nativas que existiam nesta região.

Mais tarde, essas posses de terras foram sendo comercializadas para os imigrantes italianos vindos de Caxias do Sul e Antônio Prado. (ORTH; LUCATELLI, 1986 apud DONAZZOLO, 2012 p. 89).

Esse processo ocorreu com as áreas onde hoje se encontram o município de Ipê e seus distritos de Segredo e São Paulino, além das áreas que hoje são os municípios de Campestre da Serra, Monte Alegre dos Campos e Pinhal da Serra. (DONAZZOLO, 2012 p. 89).

A interferência dos imigrantes italianos na forma de fazer agricultura foi bastante importante nesta região, pois possuíam uma prática de agricultura diversificada. Entretanto, as primeiras atividades desenvolvidas quando da chegada na terra que lhes foi destinada era a derrubada do mato, construção das casas e abertura de estradas e posteriormente a área era cultivada.

Os primeiros cultivos dos imigrantes italianos chegados no Rio Grande do Sul foram o milho, o trigo e depois outros cereais de inverno como o centeio e a cevada, além disso, eram plantadas árvores frutíferas, como bergamoteiras, laranjeiras, macieira, marmeleiro, figueira, além da criação de bois, vacas, galinhas e porcos. (ZERO HORA, 1998).

73 A terceira fase do sistema agrário desta região, segundo Ambrosini et al. (2012) ocorre entre os anos de 1940 e 1960, como uma transição do sistema agrário do tropeirismo regional para o sistema agrário atual da região dos Campos de Cima da Serra. Entretanto, a forma de ocupação ocorre de maneira diferente entre as regiões de serra com as matas de araucárias e a região dos campos.

Especialmente na região de serra, onde popularmente denominava-se de “terra de mato”, Donazzolo (2012), destaca:

A primeira etapa foi a derrubada da floresta, com a implantação de cultivos de subsistência mediante a queima, num sistema de pousio e aproveitamento da fertilidade natural, onde eram cultivados milho, feijão, trigo, batata doce entre outros, exploração da madeira e criação de suínos como principal atividade. Nas áreas de campo a criação extensiva de gado de corte ocupava o território exclusivamente sobre o campo nativo. Este período foi do início da colonização italiana até meados de 1930 e foi considerado a implantação da agricultura colonial. De 1930 até 1960-70 as áreas coloniais da região passaram por uma intensificação do desmatamento e da agricultura colonial, com uma crise de reprodução do sistema pela redução do tempo de pousio. O aumento da população e escassez de terras levou a uma migração da colônia velha para outras regiões. (DONAZZOLO, 2012 p. 90 -91).

Neste sentido, a colonização da região da costa do Rio Pelotas, divisa com o estado de Santa Catarina, ocorreu mediante a intensificação da exploração florestal que possivelmente tenha sido o fator que impulsionou o desmembramento de distritos que antes pertenciam a Vacaria, como é o caso do distrito de Esmeralda e, consequentemente o distrito de Pinhal da Serra.

Ainda, a região onde localiza-se o atual município de Pinhal da Serra era considerada uma das regiões de Serra, coberta por Araucárias e que era usada como invernada pelos antigos estancieiros desta região.

Nesse período houve um intenso processo de exploração da madeira da Araucária, através da instalação de várias serrarias que, no entanto, se retiraram da região assim que a floresta de araucária passou a diminuir. (BARBOSA, 1978 apud AMBROSINI et al. 2012). O ciclo de exploração da madeira de Araucária não foi muito duradouro, pois logo em 1976, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), instituiu a Portaria Normativa DC- 20 de 1976 proibindo o corte da araucária.

Já na região dos campos, a criação da pecuária de corte continuou sendo a principal atividade até por volta das décadas de 1960 e 1970. É importante destacar que a região dos Campos de Cima da Serra durante muito tempo contou com a produção de queijo pelos pecuaristas, que mesmo não possuindo raças propícias para a produção leiteira, até porque a estratégia principal consistia na criação de gado de corte.

74 Ordenhava-se as vacas que produziam um volume pequeno de leite e o transformavam em queijo17. Este queijo era uma fonte de renda complementar para os peões das fazendas e também para alguns pecuaristas familiares de dispunham de pouca área de terra e necessitavam de outras rendas para além da venda do gado.

Entretanto, após a década de 1970, ocorre um processo de modernização da agricultura nos Campos de Cima da Serra, passando a haver uma maior intensificação do uso das terras, utilização de insumos agroquímicos e mecanização das atividades agrícolas.

A criação de gado vai perdendo aos poucos o seu espaço e começa a surgir de forma gradativa o cultivo de grãos, como trigo, milho e também a implantação de pomares de maçã, que posteriormente vai ser uma das principais atividades econômicas desta região. A cultura da soja que predomina na região dos campos na atualidade, surge mais recentemente e assume uma maior expressividade na década de 1990 em diante.