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4 “O TRABALHO NÃO É UMA MERCADORIA”: A EVOLUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO E A OIT

4.3 Produção de normas na OIT

Desde sua criação, a OIT é dotada de um sistema de produção de normas, aprovadas pela Conferência Internacional do Trabalho, podendo ser elas de dois tipos: Convenções e Recomendações. Como vimos, a OIT é herdeira da Associação Internacional para a Proteção Legal dos Trabalhadores, que tinha por objetivo precípuo a formulação de regras juslaborais aplicáveis a nível internacional, donde se origina a importância dada ao aspecto jurígeno na organização.

Assim, ainda que nos últimos anos a produção normativa da OIT tenha sido por demais reduzida, concentrando-se a Organização em dar efetividade ao arcabouço normativo já existente – e, para isso, enfocando em atividades de suporte técnico e fomento à empregabilidade –, o sistema de produção de normas da OIT continua a ser uma pedra angular em sua atuação. Por meio das normas internacionais do trabalho, a OIT exerce um destacado papel como fonte formal de direito internacional por formular e adotar tratados e atos normativos que têm força obrigatória entre os Estados-membros.

Essas normas têm forte influência no direito interno, ainda quando não há efetiva ratificação de determinada convenção, pois é possível que o conteúdo normativo seja adotado com força cogente pelo ordenamento jurídico interno sem que o país tenha aderido à convenção. Serve, assim, a convenção (ou recomendação) como modelo normativo. Gravel e

382

O Diretor Geral é escolhido a cada cinco anos (renováveis) pelo Conselho de Administração. O Diretor Geral da OIT em exercício, desde 2012, é o inglês Guy Ryder.

Delpech apontam para a influência do direito internacional do trabalho na progressiva

institucionalização do direito trabalhista nacional. Para os autores, “os sistemas nacionais e

internacionais de regulamentação do trabalho, longe de se oporem, são fortemente

imbricados”383

.

Nesse aspecto, é de se ressaltar que as normas produzidas na OIT imprimem um posicionamento de avant-garde em relação a inúmeras matérias do ramo juslaboral. Elas convivem com o objetivo de criar um ordenamento factivelmente aplicável, mas que assegure um mínimo de proteção aos trabalhadores. Ademais, por ser norma de âmbito internacional, têm caráter muito mais genérico do que leis internas.

Outro aspecto que se relaciona com esses fatores é o fato de que a OIT não é apenas um órgão jurígeno, tendo ainda importante função política no sentido de propor soluções inovadoras aos problemas trabalhistas no mundo. Nesse sentido, as normas aí produzidas também são desenvolvidas no intuito de desenvolver um sistema global relativo a políticas sociais e do trabalho384. Tanto as políticas sociais desenvolvidas por diversos programas da OIT contam com o suporte normativo para se fazerem efetivas, como se busca dar o resultado prático às normas elaboradas por meio de programas e políticas sociais385.

Diante do processo de flexibilização de direitos no contexto de intensa globalização, o papel jurígeno da OIT foi reafirmado pela Conferência Internacional do Trabalho em 2008 com a Declaração da OIT sobre Justiça Social para uma Globaliza ção Justa que, tendo reconhecido os problemas trazidos por esse processo de intensificação da vida social global, enfatiza como objetivo da Organização

promover a política normativa da OIT, enquanto pedra angular das atividades da Organização, realçando a sua pertinência para o mundo do trabalho, e garantir que as normas contribuam para a realização dos objetivos constitucionais da OIT.

Vemos que a OIT é responsável por desenvolver um regime jurídico internacional concernente à proteção do trabalho. Mas é interessante observar que, dado o fato de que a temática do trabalho se relaciona com tantos outros campos como a economia, o comércio, o

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GRAVEL, Eric; DELPECH, Quentin. Contrôle des normes internationales du travail et complémentarité des systèmes nationaux et internationaux: récentes évolutions. Revue Internationale du Travail, Genebra, OIT, vol. 147, n. 4, 2008, p. 440 (tradução livre).

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OIT. Les règles du jeu: une brève introduction aux normes internationales du travail. Genebra: OIT, 2009, p. 9.

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Süssekind classifica as convenções em algumas categorias a saber: auto-aplicáveis, quando suas disposições requerem regulamentação complementar para serem aplicadas a nível nacional; de princípios, que dependem de maior especificação através de outros atos normativos ou leis para sua efetiva aplicação; promocionais, que estabelecem programas e metas para realização de seus objetivos, sendo de aplicação de médio e longo prazo. SÜSSEKIND, op. cit., p. 190.

meio ambiente e os direitos humanos, esse papel normativo é ainda mais crucial. Ademais, a OIT é das poucas organizações internacionais dotada de um sistema de produção normativa não pontual ou esporádico. Assim, muitas das normas adotadas no âmbito da organização são mobilizadas por outros atores políticos e sociais, aplicando-se em diversos contextos, inclusive no âmbito do comércio.

São dois os tipos de normas principais produzidas na OIT: as convenções e as recomendações. Ambos os tipos são formulados como fruto de debates entre governantes, empregadores e trabalhadores, através do tripartismo da OIT. Tanto um quanto o outro tipo são adotados pela Conferência sob o requisito de terem sido aprovadas pela votação de 2/3 dos votos (art. 19, § 2º, da Constituição).

Apesar de ambas necessitarem passar pelo mesmo processo de votação na Conferência, somente as convenções são objetos de ratificação pelos Estados-membros, configurando-se como típicos tratados internacionais juridicamente cogentes. Assim, verifica- se nas convenções a natureza de fonte formal do direito.

Por sua vez, as recomendações são atos normativos que tem importante função como fonte material do direito do trabalho386, na medida em que servem de princípios diretores e modelos normativos. As recomendações também devem ser submetidas à autoridade nacional competente (art. 19, § 6º, da Constituição), sugerindo-lhe a criação de normas a nível nacional, mas não são objetos de ratificação. Portanto ao contrário das convenções, as recomendações não têm natureza jurídica de tratado internacional. Embora muitas recomendações sejam autônomas, muitas vezes elas são adotadas no sentido de completar uma convenção, propondo diretrizes mais precisas de como esta pode ser aplicada387.

Crivelli observa que pelo fato de não gerarem obrigações como ocorre com as convenções, as recomendações terminam por serem discutidas e elaboradas nas conferências com maior liberdade do que as convenções, dado o seu baixo custo político388. Nesse sentido, Süssekind ressalta o relevante papel das recomendações em enunciar regras ainda avançadas para que sejam adotadas universalmente pela Conferência como uma convenção, mas que haja interesse desse órgão em promover sua universalização389.

386

Também as convenções não ratificadas cumprem esse papel. 387

OIT, Les règles du jeu, op. cit., p. 16. 388

CRIVELLI, op. cit., p. 75. 389

Além das convenções e das recomendações, resoluções e protocolos são também fontes de direito produzidas no âmbito da OIT. As resoluções são adotadas por uma Comissão de Resoluções que é instalada eventualmente, para debater propostas que tenham sido submetidas à apreciação da Conferência, com o objetivo de preencher lacunas jurídicas de convenções e recomendações, servindo-lhes como importantes instrumentos interpretativos. Quanto aos protocolos, estes são instrumentos normativos para atualização de uma convenção, adaptando-as a novas realidades.

No que concerne à produção das normas na OIT, é interessante observar a efetiva participação dos três entes componentes do tripartismo – Estados, trabalhadores, empregadores – por meio de seus representantes, tendo por metodologia o diálogo social. O diálogo entre essas partes ocorre em todas as fases do longo processo, desde a iniciação do processo, com a identificação de um problema, até a votação do texto pela Conferência Internacional do Trabalho. Chama a atenção o fato de o processo envolver todos os três órgãos componentes da OIT, Conferência Internacional do Trabalho, Conselho de Administração e Escritório Internacional do Trabalho, respeitando sempre o tripartismo.

O processo de elaboração das convenções e recomendações inicia-se com a inscrição de questões por parte do Conselho de Administração, tendo por base propostas feitas pelos governos dos Estados-membros, pelos representantes de empregadores, pelos representantes de trabalhadores, ou por qualquer organização de direito internacional público (art. 14, § 1º, da Constituição). A Conferência, por si mesma, também pode inserir questões na ordem do dia da sessão seguinte quando a proposição for aprovada por pelo menos 2/3 dos presentes (art. 16, § 3º, da Constituição).

O prosseguimento – sucintamente descrito – se dá com a análise da proposta por parte do Escritório, por meio de um relatório dando conta da legislação e práticas existentes acerca do tema, acompanhado de um questionário sobre o conteúdo de um eventual instrumento normativo. Esse relatório é enviado aos representantes dos Estados-membros, trabalhadores e empregadores para comentários. Com base nos comentários, o Escritório fixa os principais pontos a serem considerados pela Conferência. Assim, a Conferência realiza uma primeira discussão sobre o relatório e, com base nos debates havidos, o Escritório prepara um novo relatório, desta vez com o projeto de instrumento normativo (convenção ou recomendação). O novo relatório é enviado aos representantes tripartites para comentários. Com base na nova manifestação das partes, o Escritório prepara então uma revisão do projeto

de norma a ser submetida à Conferência390. Por fim, em nova discussão pela Conferência, caso haja um mínimo de votação de 2/3 dos representantes, o instrumento é adotado.

Em caso de rejeição da proposta, tratando-se de convenção que não alcançou o mínimo de votos necessários para sua aprovação, mas que tenha alcançado maioria simples, pode a Conferência encaminhar o texto assim preterido, a pedido de qualquer delegado, para que se apresente sob a forma de recomendação, o que exigirá igualmente a aprovação de pelo menos 2/3 dos representantes.

Em se tratando de convenção, os Estados-membros devem envidar esforços no sentido de ratificá-las, encaminhando à OIT todas as informações sobre as decisões que as autoridades competentes nacionais houverem tomado, inclusive comunicando o Diretor-Geral acerca da ratificação da Convenção (art. 19 § 5º, letras b, c e d). Uma convenção adotada entra normalmente em vigor doze meses após ter sido ratificada por dois Estados-membros.391

O trâmite demonstra o rigor técnico e a efetiva participação da tríade Estados- trabalhadores-empregadores. Como as temáticas são universalmente debatidas, e como as realidades de cada país são múltiplas392, faz-se necessário uma ampla discussão tanto no sentido da inclusão de diversos atores e do corpo técnico da OIT (por meio dos respectivos departamentos do Escritório) como também de sua extensão no tempo, permitindo manifestação das partes envolvidas, análise das possíveis consequências positivas e negativas, e adoção de novos posicionamentos políticos acerca da matéria em debate. Esse preparo técnico e consulta aos membros que precedem a adoção de uma convenção ou recomendação é expressamente previsto na Constituição (art. 14 § 2º)393.

Devido à multiplicidade de circunstâncias em que podem ser aplicadas, as normas são editadas de forma flexível para poderem ser adotadas por cada um dos Estados-membros.

Em instrumentos mais específicos são inseridas “cláusulas de flexibilização” que permitem ao

390

Observa-se, portanto que a OIT adota um processo de dupla discussão. Mas há também questões que se submetem a discussão única. Nesse caso, as propostas já devem conter, quando do primeiro relatório, projetos de convenção ou de recomendação.

391

Para mais detalhes sobre o trâmite de produção de normas na OIT. Cf. OIT, op. cit., 2009, p. 18-21. 392

Por se tratar de normas de caráter universal, destinadas a terem vigência internacional, os instrumentos normativos produzidos pela OIT são bastante genéricos. Destarte, quando da aprovação de uma convenção ou recomendação de aplicação geral, a Conferência deve levar em conta as diferentes características de cada país no que tange à economia, à cultura, ao contexto político, ao ordenamento jurídico, ao estado de desenvolvimento industrial, às condições climáticas, etc. Assim, deverá sugerir as modificações que correspondem, a seu ver, às condições particulares desses países (art. 19, § 3º, da Constituição). Devido à multiplicidade de circunstâncias em que podem ser aplicadas, as normas são editadas de forma flexível para poderem ser adotadas por cada um dos Estados-membros.

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Recentemente, visando a conferir maior coerência, pertinência e impacto por parte das atividades normativas da OIT e a elaborar planos de ação que disponham de conjuntos de ferramentas complementares entre si, a OIT tem adotado “estudos de conjunto” acerca de problemas específicos previamente escolhidos. Cf. OIT, Les règles du jeu, op. cit., p. 18.

país fixar provisoriamente normas menos rígidas do que as previstas, de excluir algumas categorias de trabalhadores da aplicação de uma convenção ou de aplicar certas partes de uma norma internacional. Para tanto, é necessário que os Estados-membros que assim fizerem,

comuniquem o Diretor Geral e que o uso de “cláusulas de flexibilização” tenha sido acordado

após consulta de parceiros sociais (sindicatos, empregadores, administração pública, etc.). Apesar da possibilidade de se flexibilizarem disposições de normas internacionais, o sistema de normas da OIT não prevê, como é de praxe no direito internacional, o instituto da reserva legal, a não ser para adaptar dispositivos às realidades locais (art. 35 da Constituição).

As Convenções adotadas compõem o que a OIT reconhece como “Código Internacional do Trabalho”, embora a denominação “código” não seja tecnicamente

apropriada, no entender de Süssekind. Isso porque para o autor não se trata de código propriamente dito, pois as normas adotadas pelo procedimento acima exposto não integram necessariamente a legislação nacional de cada um dos Estados-membros da OIT394. É preciso que elas sejam devidamente ratificadas395.

Até o momento foram adotadas 189 convenções, 202 recomendações e 5 protocolos396. Em relação às convenções, a OIT acumula até o momento um total de 7.938 ratificações397. Nem todas as 189 convenções estão em vigor, tendo em vista a evolução dos contextos relativos às respectivas matérias, algumas foram deixadas de lado e outras foram retiradas.

Por outro lado, oito convenções são consideradas fundamentais por força da Declaração sobre os Princípios e Direitos F undamentais no Trabalho, de 1998. A Declaração, aprovada no contexto de reafirmação da OIT ante a criação da OMC destaca

394

SÜSSEKIND, op. cit., p. 181. 395

Cumpre ressaltar que a vigência no âmbito internacional assume características diversas, não se confundindo com a eficácia jurídica que resulta de sua ratificação pelos Estados. Internamente, uma convenção internacional do trabalho produzida no âmbito da OIT tem vigência quando é ratificada pela autoridade competente. No plano internacional, a vigência da convenção se dá 12 meses após a ratificação por parte de dois Estados-membros. Plá Rodriguez (apud Süssekind) compreende esta como sendo a vigência objetiva da convenção (vigência da convenção em si mesma), que difere da vigência subjetiva (obrigatoriedade da norma para com os Estados que a ratifiquem). Assim para haver vigência internamente (subjetiva), é necessário que a convenção já goze de vigência objetiva. Cf. SÜSSEKIND, op. cit., p. 193.

396

Todas as convenções e recomendações podem facilmente ser consultadas no site da OIT, por meio do banco de dados Normlex, disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:1:0>.

397

Os números foram coletados no banco de dados Normlex, da OIT, atualizados até 27 mar. 2014. Os dados estão disponíveis em: <http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:1:0>. Nas duas últimas décadas a OIT tem promovido campanha contínua de incentivo à ratificação de convenções pelos Estados-membros. O esforço tem sido alcançado, tendo havido 671 ratificações desde 2004.

quatro princípios fundamentais a serem garantidos pelos Estados-membros. Cada um desses quatro pilares, por assim dizer, é regido por duas convenções fundamentais398:

a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva (C. 87 e C. 98);

b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório (C. 29 e C. 105);

c) a abolição efetiva do trabalho infantil (C. 138 e C. 182);

d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação (C. 100 e C. 111).399

A Declaração de 1998 torna tácita a adoção das oito convenções respectivas a cada um dos quatro princípios fundamentais por parte dos países que participam da Organização. Assim dispõe o texto da declaração aprovado pela Conferência em 1998:

[…]

A Conferência Internacional do Trabalho, […]

Declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções. […].

Dentre as convenções fundamentais, o Brasil ainda não ratificou a de número 87 (Convenção sobre liberdade sindical e proteção do direito de sindicalização)400. Muito se discute acerca dos resultados efetivos da Declaração no sentido de tornar mais eficazes as normas contidas nessas convenções consideradas fundamentais. Apesar da importância em divulgar com mais ênfase temas que merecem adesão mais ampla da sociedade internacional

– como são os que foram frisados ao dar relevo a essas oito convenções – restam desafios para

transformá-los em mecanismos jurídicos cogentes, como veremos mais adiante.

Além das características singulares do sistema de produção de normas, que permitiu a produção de um vasto arcabouço normativo, a OIT dispõe ainda de um complexo

398

Além das oito convenções fundamentais, o Conselho de Administração classificou outras quatro Convenções como “prioritárias” para o funcionamento do sistema de normas internacionais do trabalho. As convenções prioritárias são a C. 81, sobre a inspeção do trabalho (de 1947); C. 129, sobre a inspeção do trabalho na agricultura (de 1969); C. 144, sobre as consultas tripartites relativas às normas internacionais do trabalho (de 1976); e C. 122, sobre a política de emprego (de 1964).

399

Inicialmente, a declaração de 1998 elencou sete convenções fundamentais. A Convenção 182 passou a compor o rol em 1999, quando de sua adoção pela Conferência Internacional do Trabalho.

400

Até o presente momento, o Brasil ratificou 96 convenções, dentre as quais 82 estão em vigor e 14 foram denunciadas. Dados coletados em < http://www.ilo.org/dyn/normlex/fr/f?p=1000:11200:0::NO:11200: P11200_COUNTRY_ID:102571> e atualizados até 27 mar. 2014.

sistema de controle para acompanhamento da adoção das normas internacionais do trabalho por ela emanadas.

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