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2 O TRABALHO NO MUNDO E O MUNDO DO TRABALHO

2.4 O trabalho como mercadoria: conflito de racionalidades?

2.4.2 Trabalho mercantilizado, dignidade precificada

Dignidade é, para Kant, um valor íntimo que se atribui pela incidência de uma condição que faz com que algo possa ser um fim em si mesmo. Nesse sentido, a moralidade, e a própria humanidade, sendo fins em si mesmo, são dotados desse valor absoluto. O raciocínio humanista de Kant leva a concluir o que a filosofia moral e o direito modernos têm considerado: que nenhum homem não pode ser utilizado como meio, ou seja, não pode ser instrumentalizado.

Kant inscreve essa conclusão no que denominou de princípio de humanidade, o qual foi traduzido pelo filósofo na seguinte sentença: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e

simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” 137

136

HEPPLE, Bob. Labour laws and global trade. Oxford: Hart Publishing, 2005, p. 9, tradução livre. 137

Como observa Pelè, o conceito moderno de dignidade aproxima a todos, uma vez que se fundamenta no elemento humano, característico em todos os membros da espécie humana138. O autor sublinha que o conceito, embora amplo, ganhou corpo no século XX, notadamente após a segunda guerra mundial139. A vulnerabilidade do ser humano ante a própria humanidade – e do que ela se mostrou capaz – suscitou a densificação desse conceito já bastante aludido à época da Revolução Francesa, graças às luzes humanistas que a inspiraram. Daí a relevância do direito internacional na construção do que se tem como arcabouço de direitos humanos internalizados pelos ordenamentos jurídicos140.

A dignidade funda assim os direitos humanos, mas padece de uma definição que proporcione maior efetividade das normas que lhe são concernentes. Benchick ressalta que a vagueza conceitual leva a uma perda de eficácia de normas destinadas à proteção dessa tal dignidade:

[…] a ausência de definição da noção em convenções internacionais toma parte nessa inconsistência jurídica, por assim dizer, que estabelece obstáculos à sua eficácia no momento em que, para além do discurso, torna-se conveniente sancionar as expectativas a respeito da dignidade da pessoa.141

Fato é que a dignidade foi positivada por diversos instrumentos jurídicos, sobretudo por tratados de direitos humanos. Assim, Pavia nota que da noção de dignidade, vários direitos ligados ao respeito da pessoa humana tanto individual como socialmente considerada são dele derivados, tais como direito à habitação, direito a um ganho salarial mínimo, direito à saúde, além dos direitos de liberdade142.

Por outro lado, Edelman observa que dignidade e direitos humanos não devem ser superpostos como tendo o mesmo significado, pois outros elementos, além da dignidade, compõem os direitos humanos, como a liberdade. No contexto de formação dos direitos humanos, a liberdade é sua essência, surgindo como conceito fundador, sendo a igualdade uma determinação da liberdade, na medida em que todos são igualmente livres.

138

PELÈ, Antonio. Una aproximación al concepto de dignidad humana. Universitas Revista de filosofía, derecho y política, Universidad Carlos III: Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, n. 1, 2004- 2005, Opinión, p. 11.

139

Pavia chama a atenção para o fato de que compreender os eventos que levaram à Segunda Guerra e o desenrolar do conflito é essencial para entender o conceito de dignidade tal como o conhecemos hoje. Para a autora, “foi no contexto da Segunda Guerra mundial que se fez uma terrível descoberta: um regime inumano tentava destruir aquilo que há de humano no homem. Diante desta barbárie ilegal, o direito se viu impotente. Era necessário elaborar uma nova categoria jurídica para apreender e tentar que ela [a barbárie] não mais se reproduzisse.” PAVIA, Marie-Lucie. La découverte de la dignité de la personne humaine. In: PAVIA, Marie- Luce; REVET, Thierry (orgs.). La dignité de la personne humaine. Collection Études Juridiques. Paris: Economica, 1999, p. 6, tradução livre.

140

E, nesse contexto, denominados direitos fundamentais. 141

BENCHICK, op.cit., p 46, tradução livre. 142

Destarte, o autor assevera que a dignidade e a qualidade do pertencimento ao

gênero humano e arremata esclarecendo que “se a liberdade é a essência dos direitos humanos, a dignidade é a essência da humanidade.”143

Sendo assim, Edelman – citando um caso célebre da Cour de Cassation francesa144 – considera que a dignidade escapa inclusive à esfera dos direitos humanos.

No que nos interessa, a relação entre dignidade e trabalho humano é, como bem observa Revet, por demais ambivalente. Sendo o trabalho forma de construção do próprio indivíduo enquanto homem, e sendo a dignidade essência da humanidade (construída por meio do trabalho), a dignidade seria também revelada através do trabalho. Por outro lado, o trabalho pode também ser fonte de indignidade se não for capaz de contribuir na construção do homem (e, portanto, de sua dignidade). Para Revet,

[a] ligação, dessa forma, é tão forte entre trabalho e dignidade da pessoa (acesso do homem à plena humanidade) que entre trabalho e indignidade da pessoa (a queda, passada e futura); em função da dignidade da pessoa humana, o trabalho é, desde então, totalmente ambivalente: ele participa da dignidade da pessoa e ameaça essa dignidade.145

Daí que as condições de trabalho são essenciais para determinar se ele será capaz de irradiar dignidade ou indignidade. Por isso é que, sendo o trabalho, como vimos, um elemento central da sociabilidade humana, os beneficiários das normas protetivas do trabalho não são apenas os trabalhadores, diretamente implicados.

No contexto de reestruturação produtiva, não são poucas as ameaças das condições trabalhistas consideradas mínimas para garantir esse acesso à dignidade por meio do trabalho. É nesse contexto em que desenvolvimento de relações de comércio e a proteção de direitos do trabalho friccionam, parecendo apontar ora para caminhos opostos, ora para soluções conjuntas.

Essas considerações são importantes para pensarmos o trabalho no contexto da sociedade e da produção globalizadas, sem perder de vista a importância que o trabalho assume como atividade humana e, acima de tudo, humanizadora. Ter em vista a relação que o trabalho é, além de fator de produção, fator de sociabilidade nos convida a refletir como o direito do comércio e o direito do trabalho devem interagir no âmbito internacional, ainda que tenham racionalidades ou pertençam a campos distintos.

143

EDELMAN, Bernard. La dignité de la personne humaine, un concept nouveau. In: PAVIA, Marie-Luce; REVET, Thierry (orgs.). La dignité de la personne humaine. Collection Études Juridiques. Paris: Economica, 1999, p. 29 (tradução livre).

144

Órgão máximo da jurisdição daquele país. 145

Nesse sentido, debruçar-se sobre o atual cenário do direito internacional, marcado pelo pluralismo jurígeno e jurisdicional (e quiçá, por fragmentações) é essencial para entender eventuais choques das racionalidades que acabamos de apontar.

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