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4 O DISCURSO DA PUNIÇÃO ESTATAL NO CAMPO PENAL

5 OS DIREITOS HUMANOS E A MAIOR ADEQUAÇÃO DA PUNIÇÃO ESTATAL AO DIREITO

5.4 USO E ABUSO DA RETÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E DA SANÇÃO

5.4.2 Proporcionalidade, uma difícil tarefa indispensável

Vemos, em Sarlet, defesa da aplicação de proporcionalidade em matéria criminal, especialmente no que veda ação arbitrária do Estado e se manifesta como exigência de isonomia. Ele, como aqui proposto, vê necessário superar era dos extremos, e combater abolicionismo e tolerância zero469.

Assim, com a constitucionalização de todos os ramos do direito, leva-se a sério a função da Constituição como limite material do Direito Penal e marco delimitador da própria política criminal. O citado autor defende a filtragem constitucional do direito penal e processual penal, além de todos os institutos jurídico-penais, com coerente aplicação do princípio da proporcionalidade.

Também não se pode deixar de comentar a função de proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não só contra poder público mas também contra agressões de particulares ou até outros Estados, a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, que pode dar ensejo a proibições de excesso e de insuficiência, como visto.

Em vista disso, Sarlet crê que o Estado passa de principal detrator dos direitos fundamentais a amigo e guardião deles470. Este múnus desemboca na obrigação de o poder público adotar medidas positivas para proteger o exercício dos direitos fundamentais e bens e interesses que constituem o objeto de sua tutela.

Para ele, proporcionalidade e Estado Democrático de Direito são “grandezas indissociáveis, complementares e reciprocamente determinantes, mas não necessariamente imunes a tensões na sua convivência e, portanto, reclamam uma correta aplicação à luz das circunstâncias do caso concreto”471

, não se podendo afastá-los por conta da superação da estrita legalidade formal e compatibilização de bens e interesses. Contudo, não concorda que proporcionalidade deve ser utilizada como pauta decisória arbitrária e que justifique qualquer solução.

Então, deve-se buscar máxima efetividade e eficácia de direitos fundamentais, sempre presente a dupla face do princípio da proporcionalidade, “não havendo como endossar a mera

469

SARLET, Ingo W. Direitos fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. In: ROCHA, Maria E. G. T., PETERSEN, Maria C. F. Coletânea de estudos jurídicos. Brasília: Superior Tribunal Militar, 2008, p. 192.

470 Ibid., p. 195-196. 471 Ibid., p. 203.

funcionalização de direitos fundamentais individuais em favor de interesses coletivos”472 . Em matéria penal, defende-se necessidade de atuar nos limites do necessário à consecução dos seus fins, dentre os quais, com destaque, “a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana de todos os integrantes da comunidade”473

.

Disso resulta não se poder apoiar propostas extremadas de abolicionismo desenfreado ou intervenção penal máxima, pois ambos deixariam descobertos direitos fundamentais de um lado, agravando em demasia direitos fundamentais de outra parte.

Portanto, a Constituição, como limite material ao direito penal, atua de forma a exigir ofensividade da conduta sancionada, inclusive à luz da proporcionalidade, que exige conduta ofensiva a bem jurídico de terceiro, a ser a sanção penal o único meio capaz de responder a contento e ser a conduta incriminada realmente significante a atrair uma pena.

Com o fito de análise, a partir de raciocínio de Feldens, a venda de órgão (art. 15 da lei 9.434/97) não pode criminalizar o próprio “dono” do órgão, por não haver prejudicado outrem, e, por estar em tal situação de afronta a sua dignidade, a última coisa que necessita é atuação penal contra si, pois pior já realizou474.

O art. 70 da lei 4.117/62 (“instalação ou utilização de telecomunicações, sem a observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos”) também não pode impor sanção penal a quem não haja ao menos posto em perigo o bem jurídico tutelado.

O autor sustenta que igual raciocínio se aplica aos artigos 12 e 14 da lei 10.826/03, posse ou guarda de arma de fogo, munição ou acessório e porte desses objetos. O que cremos ser matéria bastante controvertida numa análise de ponderação de incolumidade pública e risco inerente à posse e porte de armas de fogo. Assim, problematizando exemplo do autor e discordando de sua análise da proporcionalidade, parece bastante desarrazoado que uma pessoa, por estar de posse ou portando um carregador de pistola vazio ou uma munição decorativa, por exemplo, seja incriminada pela norma.

Pois, se assim o fizesse, estaria criando pena para crime de risco bastante abstrato e presumido ou inexistente, no caso de posse ou porte dos acessórios de arma como carregadores, ou então realizando uma indevida lógica de aprisionamento de pessoas que se presumem ser perigosas por tais atos, o que seria rotulação acrítica de qualquer pessoa

472 SARLET, Ingo W. Direitos fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades da

aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. In: ROCHA, Maria E. G. T., PETERSEN, Maria C. F. Coletânea de estudos jurídicos. Brasília: Superior Tribunal Militar, 2008, p. 207.

473 Ibid., p. 207. 474

FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional penal, jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 37.

realizada pela lei penal. O que seria clara afronta à Constituição pela desproporção da reação penal, onerando em demasia direitos fundamentais do infrator face à periculosidade e danosidade de sua conduta.

No entanto, a posse ou porte da própria arma de fogo, especialmente quando não haja registro da mesma ou já seja produto de crime, ocasiona insegurança pública real, uma vez que a grande maioria de crimes graves cometidos através do uso de arma de fogo se dá pelo livre manuseio desse tipo de instrumento altamente letal e utilizado no Brasil, em especial quando é difícil ou impossível rastrear sua origem e seu detentor. Além do que é muito fácil separar munição de arma para fugir de uma eventual persecução criminal se existisse obrigatoriedade de arma municiada para configurar crime, o que manteria a sociedade incapaz de prevenir a livre circulação de armas de fogo e munições.

Prossegue Feldens, agora novamente com nosso apoio, criticando a omissão de socorro no trânsito quando a vítima já está morta, art. 304, parágrafo único da Lei 9.503/97, e também crimes que sociedade se divide na valoração da criminalização ou não da conduta, o que poderia impor restrição à liberdade de algumas pessoas em sua autodeterminação. Neste caso cita-se aborto, havendo decisões da Suprema Corte americana no sentido de declarar inconstitucional criminalização do aborto [Doe VS. Bolton (410 U.S. 179, 22/01/1973) e Roe VS. Wade (410 U.S. 113)], bem como caso de anencefalia ou casos que não haja viabilidade de vida do feto e suicídio assistido ou eutanásia “quando realizados em situações de extrema degradação pessoal, a partir de uma livre decisão do paciente e/ou de seus familiares, presente o diagnóstico médico sobre a irreversibilidade da situação”475

.

Destarte, visualiza-se que a proporcionalidade deve ser vista no caso concreto, respeitada a opção legislativa como via debatida de busca de melhores soluções pelos representantes da sociedade, e, ultrapassados limites da proporcionalidade sobre criminalização e penalização de conduta, o judiciário deve agir para coibi-los.

Em que pese o benefício da dúvida acudir à manutenção da legislação pela origem representativa do legislativo, nos casos transbordantes dos elementos em que se subdivide o princípio da proporcionalidade, a ver abaixo, cabe ao Estado, através também e principalmente do judiciário, recusar os excessos ou até insuficiências de legislações que interfiram nos direitos fundamentais dos indivíduos.

A proporcionalidade, assim como interpretação, aplicação e fundamentação do direito

475

FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional penal, jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 40.

não é algo pré-definido ou estanque, mas sim está sujeito aos mesmos fatores que estes elementos, a realidade posta, a particularidade do caso, a valoração no ordenamento jurídico e na sociedade. Longe de ser elemento para restringir possibilidade de atuação do jurista, mas ainda assim indispensável, abre leque para possibilidades de aplicação de interpretações principiológicas e constitucionais características do pós-positivismo.

Podemos ver aqui, com Canotilho, o desdobramento da proporcionalidade, como exame da proibição do excesso, em três elementos (subprincípios constitutivos): conformidade ou adequação na busca do fim almejado; necessidade ou exigibilidade, ou seja, exigência da opção por meio restritivo menos gravoso; e proporcionalidade em sentido estrito, como comparação, proporção entre meios utilizados e fins colimados476.

Analisa-se, aqui, a pena mais utilizada pelo sistema penal, a privativa de liberdade, como não enquadrada em nenhum dos aspectos da proporcionalidade nos casos de pequena e média gravidade de violações a direitos fundamentais.

Inicialmente, para a adequação, vê-se que prisão não cumpre fim almejado, nem de educação e correção como prevenção especial nem de prevenção geral quando focamos no aspecto das subculturas carcerárias ou desintegração do meio social, sem resolução de conflito subjacente e talvez até seu aumento, pela introdução de racionalidade legal impositiva e não dialogal e comunicativa, o que não favorece assunção de responsabilidades nem apaziguação social ou mesmo o impedimento de crescimento do conflito.

O que numa criminalidade grave ou gravíssima se poderia defender, haja vista a necessidade de prevenção geral negativa, por mais que não seja totalmente eficaz e adequada aos direitos fundamentais, é extremamente contraindicado nos casos de pequena e média criminalidade, onde cidadão ainda tem sentimento de coletividade e cidadania se não foi ainda encarcerado, tem sua dignidade ainda íntegra, não está rotulado e estigmatizado, com menos força de estereótipos, pode continuar integrado na sociedade sem romper vínculos com família, emprego e amigos.

Mesmo o fim de igualdade de todos frente à lei desmancha pela desigualdade material quando a criminologia expõe os altos níves de seletividade, por busca e seleção de pessoas dentro de grupos sociais específicos, de cifras negras, com altíssima mortalidade da apuração penal, além da arbitrária cominação de penas pelas não menos arbitrárias escolhas de tipos penais.

Quanto à necessidade ou exigibilidade, vê-se, a exemplo da Justiça Restaurativa e

outras formas consensuais e voluntárias ou mesmo impositivas, que existem meios menos gravosos e, por vezes, mais efetivos de resolução do conflito e alcance dos fins.

E quanto à proporcionalidade em sentido estrito, pode-se tratar da escolha em abstrato das sanções e seus tipos (e assim observar a disparidade entre algumas das condutas realizadas e os altos custos a direitos humanos no cárcere), além da comparação entre diferenças na quantidade de pena entre crimes, como nos casos citados de bigamia (pena muito alta: 2 a 6 anos), abandono de incapaz (muito baixa comparativamente: 6 meses a 3 anos) ou furto (pena máxima que impede transação penal, por exemplo), fazendo incidir meio prisional desumano e com todos os problemas aqui expostos para lidar com pequena ou média criminalidade como completa falta de equilíbrio e sopesamento.

Por outro lado, a Justiça Restaurativa, para casos em que seja possível e viável sua utilização, responde positivamente a todos esses requisitos da proporcionalidade, o que a leva a uma utilização tanto pelo entendimento e aplicação da proibição do excesso, quando a pena privativa de liberdade se mostra em muito excessiva, quanto pela proibição de insuficiência, uma vez que o controle social dessas condutas ainda é exigido por um mínimo da atuação do Estado na defesa de direitos fundamentais.

Vale observar que quanto à adequação ou conformidade, com estudos e observações empíricas sobre Justiça Restaurativa, pode-se notar que ela alcança o fim almejado pelo sistema criminal em maior medida que pena privativa de liberdade, ou mesmo outras medidas de diversificação, porquanto vai às raízes do conflito, buscando solucioná-lo.

Os resultados mostram-se não somente na prevenção geral e especial negativas, com atuação e posicionamento do Estado na ocorrência de infrações de sua responsabilidade, mostrando que não está ausente, como resultados positivos gerais e especiais, no caso da pacificação da comunidade em conflito e discussão, reflexão e responsabilização de cada qual por seus atos, quando se chega a bom termo.

No que respeita à necessidade ou exigibilidade, a Justiça Restaurativa é meio muito menos gravoso a direitos fundamentais, excepcionalmente relativizando alguns dos princípios penais clássicos e que, como visto, a pretexto de serem garantistas, apenas pioram defesa de direitos humanos e fundamentais, não existindo sequer afronta à dignidade da pessoa humana.

Na proporcionalidade em sentido estrito, vê-se que tal medida descriminalizadora não pode atuar em todos os casos de conflitos, especialmente quando dizem respeito a graves violações de direitos humanos e fundamentais, atingindo expectativa de sociedade de não sofrer graves violências e atentados. Em tais casos, a Justiça Restaurativa poderia agir minorando pena, se partes se dispusessem à restauração e não houve contraindicações.

Em grande parte dos casos penais, que se mostram de pequena e média ofensividade, esse último requisito mostra-se cumprido exemplarmente, tais quais os anteriores, posto que além de estimular e propiciar reparação ainda pode contar com outras medidas de apoio (substitutivos penais) a serem indicadas por vítima ou Ministério Público.

Para agravar ainda mais qualquer defesa do Estado punitivo e da prisão, tal solução de reparação é mais viável, porque menos custosa, o que impede sua rejeição pela via dos custos dos direitos e da reserva do possível. Tal análise ainda pesa contra o Estado, que poderia e deveria utilizar os recursos provenientes de tal economia para o controle e diminuição da criminalidade grave ou gravíssima, que se dá inclusive com aglutinação em quadrilhas ou facções criminosas ao modo de um terrorismo interno.

Ferrajoli traça falácias ideológicas no direito, imputando a essas a não distinção entre quaisquer dos níveis de justiça, validade, vigência e efetividade entre si. Tais distinções impõem adequação do direito não só ao nível da vigência ou efetividade, mas também da justiça e validade, onde se reporta a Constituição e princípios como da proporcionalidade. Desse modo, acredita que pela lógica do direito podem se resolver problemas como antinomias e lacunas, no caso de contradição ou omissão da lei frente à Constituição477.

Faz-se mister, então, que todo o conhecimento produzido, com esteio em disciplinas várias478, seja adequadamente considerado e ponderado em face das reais inadequações e limitações da realidade criminal. Tudo isto à luz dos direitos fundamentais, haja vista o caráter axiológico do Direito e sua referência a padrões valorativos que não se pode prescindir.

Tanto que ordens puramente lógico-formais ou sistêmicas existem por si e para si. Assim como a matemática que tem seus dogmas e padrões pré-definidos ou como as ciências biológicas e físicas que formam sistemas que se autoregulam e interferem sem aparente referência a valores, o que não é o caso do Direito479.

Para Perelman, essa distinção entre ciências empíricas e ciências sociais traz

477 FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2012, p. 48-49.

478 FALCÓN Y TELLA, Maria José, FALCÓN Y TELLA, Fernando. Fundamento e Finalidade da Sanção:

existe um direito de castigar? São Paulo: RT, 2008. p. 30: “A necessidade de um enfoque multidimensional do tema castigo deriva da sua profundidade e complexidade. A sanção deveria ser vista, no futuro, como uma matéria a ser contemplada não apenas do ponto de vista jurídico e criminológico, mas também como uma instituição social complexa em sua função e seu significado, que, estudada com o cuidado suficiente e a atenção adequada, reflete uma forma de vida que introduz clareza na análise do tipo de sociedade na qual o castigo se impõem e das pessoas que a compõem.”

479 SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofía de la interpretación del derecho. México: Porrúa, 1973, p. 172-173:

"Adviértase que el derecho positivo no es un conjunto de palabras, ni es un sistema de conceptos que puedan derivarse por las vías del razonamiento deductivo. Por el contrario, el derecho positivo es la justa interpretación de las normas vigentes".

importantes consequências para a validação do conhecimento480. Assim, não há no Direito apenas meios formais de se comprovar uma asserção por um raciocínio puramente dedutivo e formal, sem que se considerem quaisquer outros elementos.

Assim o fosse, regressaríamos a um discurso em que o juiz é a boca da lei, engessando qualquer capacidade interpretativa e abdicando de soluções a todos os casos, haja vista as leis serem finitas e as situações da vida em disputa serem infinitas. Por óbvio, o exegetismo sucumbiu como ideal de aplicação do Direito perfeito e acabado que não precisaria senão de máquinas para julgar os casos.

Não se pode, destarte, limitar o discurso apenas com instrumentos legais, até porque na nossa construção constitucionalista a lei está à disposição dos representantes do povo na medida de sua criação consentânea material e processualmente com normas maiores estabelecidas na Carta Maior.

De modo que se faz necessária construção teórica e legislativa visando melhoria prática da aplicação do Direito Penal, com medidas como a Justiça Restaurativa, onde se busque minorar lesões a garantias individuais constitucionais do autor e da vítima, ao tempo em que se amplia garantia coletiva de segurança social através do uso do sistema penal para casos mais graves e condutas mais danosas, em clara aplicação da proporcionalidade.

5.5 FORMAS DE ADEQUAÇÃO DA PUNIÇÃO AO ESTADO CONSTITUCIONAL