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A SOCIEDADE ABERTA, CONSENSO E SENSO COMUM COMO FORMAS DE RACIONALIDADE, CONTROLE E CRÍTICA DO DIREITO

3 DISCURSO JURÍDICO E PÓS-POSITIVISMO

3.3 A SOCIEDADE ABERTA, CONSENSO E SENSO COMUM COMO FORMAS DE RACIONALIDADE, CONTROLE E CRÍTICA DO DIREITO

A transposição do conhecimento ou produção científica para o senso comum é racional e oxigena as tradições sociais e seus mitos. O diálogo entre instituições, a exemplo dos tribunais, e sociedade possibilita o intercâmbio dessas racionalidades e, apesar de abrir margem a críticas desmesuradas, justamente por isso é importante.

O que enaltece a filosofia, para Popper, é examinar essas crenças não criticadas, partir de pontos dúbios e (ou) perniciosos do senso comum não-crítico, com objetivo de “alcançar senso comum crítico e esclarecido: alcançar um ponto mais perto da verdade e com uma influência menos perniciosa na vida humana”149.

Ele acredita numa razão crítica que substitui a violência quando se trata de defesa de hipóteses, com linguagem clara e simples. Franquea-se o acesso ao conhecimento e sua crítica, já que a objetividade está baseada no caráter público e competitivo do empreendimento científico e não nas ciências ou na imparcialidade da mente dos cientistas150. Critica-se a ciência que utiliza de linguagem de difícil compreensão e termos técnicos e jargões. Para favorecer a busca pela verdade, ou solução mais adequada, a clareza é fundamental. Linguagem técnica e inacessível limita acesso da sociedade e senso comum aos aportes científicos e seu desenvolvimento racional, o que, especialmente nas ciências sociais, irá mistificar o conhecimento e excluí-lo de uma sociedade aberta, com base democrática e plural.

Daí Popper crer num processo de instrução e seleção das teses e pensamentos, que devem ser abertos à sociedade, com sua formação histórica, para a consequente eliminação de seus erros ou inadequações. Para ele, as teorias são selecionadas nas ciências como na biologia as espécies também são.

Destarte, para haver a influência das instituições no subjetivismo de cada um e a

149 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 93. 150 Ibid., p. 40.

recíproca influência nas instituições, no método de Sartre, deve haver comunicação entre eles. Pois se a forma de comunicação for apenas imposição será descontinuada a legitimidade e a influência recíproca provavelmente será de distanciamento, alheiamento, revolta e formas não racionais de interação.

Com isto, propõe-se que o senso comum, em que pese ser forma que tende a ser legitimadora da tradição, é ponto fundamental de apoio para se discutir problemas à luz de intercâmbio do conhecimento científico e, mas ainda, deve ser trazido para dentro dos debates das ciências, em especial as sociais e do Direito, como manifestação e expressão direta da sociedade. Neste sentido, Santos prevê e apoia a interrelação entre senso comum e conhecimento científico151.

De forma a dar o devido peso a essa nova racionalidade de um senso comum afinado pela racionalidade científica, cabe apresentar crítica contestadora da retórica no aparato estatal institucionalizado e burocrático, onde é demonstrada fragilidade de opinião comum e poder de meios de comunicação de massa.

Assim, Santos infere que há desigualdade no interior do círculo argumentativo decorrente de desigualdades sociais dos participantes. Além do que, a opinião comum é manipulada por forte atuação dos meios de comunicação.

As relações jurídicas em jogo transcendem as partes, representando seu papel na sociedade e “a questão das desigualdades no interior do círculo argumentativo transcende em muito o domínio da retórica jurídica, sobretudo numa época em que os meios da comunicação social monopolizam os recursos de maior potencial persuasivo”152.

Este problema de desigualdade argumentativa das partes deve ser superado, sob pena de não se obter o necessário equilíbrio para sopesar os argumentos e aplicar o Direito de forma mais adequada. Nisto, muito ajuda o próprio senso comum, o conhecimento jurídico- científico e a abertura e intercomunicação entre eles como um papel de prevenção contra manipulações e amenizador das desigualdades racionais na sociedade.

Outrossim, uma elaboração de regras do discurso jurídico podem amenizar tal disparidade, bem como as considerações filosóficas e científicas aqui traçadas, diminuindo pretensa exclusividade do paradigma dominante, aceitando a diferença, considerando o

151 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1995, p. 90:

“À luz do que ficou dito atrás sobre o paradigma emergente, estas características do senso comum têm uma virtude antecipatória. Deixado a si mesmo, o senso comum é conservador e pode legitimar prepotências, mas interpenetrado do conhecimento científico pode estar na origem de uma nova racionalidade,..., na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum.”

152 SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto

caráter público e democrático do conhecimento e da busca da solução mais adequada.

Häberle, acertadamente, sustenta transformação da interpretação constitucional para uma sociedade aberta, sem estabelecimento de elenco cerrado de intérpretes, e "tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade"153. Acredita o autor que quem vive a norma deve interpretá-la, devendo ocorrer "democratização da interpretação constitucional"154.

Para ele, em tema de direitos fundamentais já se processa esse tipo de interpretação. Dessa maneira, posiciona-se trazendo conceito de processo aberto para a interpretação, no que se contraria ideologia apenas subsuntiva e exclusivista da aplicação do Direito.

Ademais, se "se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, há que se indagar sobre os participantes no seu desenvolvimento funcional, sobre as forças ativas da law in public action"155.

Prossegue o autor na ideia de que tanto a vinculação do juiz à lei e sua independência funcional não podem esconder o fato de que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na realidade. Na perspectiva democrática, ainda para Häberle, a legitimação ocorre mediante controvérsia sobre alternativas e o povo “é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, …"156

.

Ao tratar de acrescentar e refinar a teoria da soberania de Rousseau, ele sustenta que a democracia do cidadão é mais efetiva do que democracia popular, adicionando ainda que parte significativa da democracia dos cidadãos é alcançada por desenvolvimento interpretativo das normas constitucionais.

Na visão de Perelman, o convencimento do seu teorizado auditório universal composto de todas as pessoas, e o consequente acordo entre elas, é o critério da certeza, afirmação necessária e universal157. Convencer, para ele, é obter adesão de todo ser racional. Destarte, busca-se, na visão dele, uma argumentação que se imporia a todos os auditórios, compostos de homens inteligentes e racionais158.

Vale comentar que para argumentar é preciso o apreço pelo interlocutor, já que não é pouco ter a atenção de alguém. Por isso é fundamental, para que se considere alguém digno de apreço, que se abra canal de comunicação e sejam tomadas em consideração aspectos

153 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da constituição:

contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Fabris, 1997, p. 13

154 Ibid., p. 13-14. 155 Ibid., p. 30-31. 156

Ibid., p. 37.

157 PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação (A nova retórica). São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 35. 158 Ibid., p. 29.

relativos ao outro e seu ponto de vista159. Com isto, podemos inferir que a opinião e racionalidade do todo é fundamental para um resultado satisfatório no Direito, aumentando sua legitimidade e integrando a pessoa no ordenamento.

Uma inferência bem menos pretensiosa do que a que Perelman chega, que o acordo entre todos os homens sobre certa questão é o alcance da Justiça, mas útil e consistente para o nosso propósito de sutentar a validade e necessidade da discussão e crítica pelo meio social das normas, da interpretação e da aplicação do Direito, ou seja, a problematização do discurso jurídico.

Observamos em Perelman a separação do senso comum, que seria as crenças admitidas numa sociedade, presumidamente partilhadas por outros seres racionais, do conhecimento científico. Em seu entender, um não obriga o outro, mas servem à análise e adesão dos ouvintes160. Entendemos que o Direito está posto para ser cumprido, mas mesmo sem cumprimento total e por todos de suas disposições, o que é esperado, ele se mantém contrafaticamente. Como vimos, ele deveria ser posto com legitimação por discurso e certa aquiescência social, o que por igual não é absoluto.

No entanto, a busca é a integração do indivíduo nos valores e normas do ordenamento jurídico, sua representação nele e seu assentimento, por fim, a persuasão e o convencimento do senso comum, por via racional, no sentido de ser o Direito o caminho a ser seguido, ou da necessidade de modificá-lo para efetivamente representar a sociedade em questão.

Sabe-se que a realização completa disso, assim como o fiel e permanente cumprimento da ordem jurídica é impossível, até porque valores e interesses na sociedade são contraditórios. Neste diapasão, vê-se com Deleuze161, que uma característica dos fenômenos e dos objetos é a mudança, a transformação das coisas. Percebe-se então que apenas o direito positivado não pode acompanhar tal dinâmica, necessitando, mais uma vez, da indispensável complementação da argumentação.

Não obstante o devir contínuo do mundo, há ainda sim que se perseguir a integração ao Direito, mesmo apresentando tempo instantâneo que deve ser plasmado, e ainda que o discurso jurídico se modifique, por vezes até sem a modificação do texto legal, a exemplo ordinário da mutação constitucional.

A título exemplificativo, percebe-se esta busca de integração também na sanção penal,

159 PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação (A nova retórica). São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 18-

19.

160

Ibid., p. 118.

161 DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974, p.

que é das formas mais incisivas da atuação coercitiva e do uso do poder e da força pelo Estado. Dessa forma, pensamos que a justificação da pena deve coincidir com a própria justificação da existência do Direito, já que seu instrumento último junto com a força em si.

De sorte que o Direito não pode alhear-se a consequências, fugir do contato e da interação do povo com as instituições democráticas e das críticas sociais, até porque na nossa tradição de legitimação democrática, todo poder emana do povo, e isto é decisão valorativa da sociedade, além de formulação constitucional.

Isto posto, com base no senso comum, na sociedade aberta dos intérpretes e busca de acordo, será imperiosa a argumentação no Direito, a abertura à discussão, crítica e valoração social. A legitimação do Direito dá-se também por via argumentativa, a ser considerada as escolhas e opiniões sociais, e o discurso jurídico com sua característica interpretativa e integrativa é forma de destaque na realização mais acertada da ciência do Direito.

A racionalidade resultante do senso comum crítico e informado por conhecimento científico é avanço sobre o consenso intersubjetivo proposto por Kaufmann e acordo ou consenso entre seres racionais proposto por Perelman, uma vez que prevenidos contra manipulações ideológicas.

A legitimidade da forma democrática de se chegar a acordo sobre uma solução justa, sobre valores e formas locais de existência, legislação aplicável e escolhas de políticas públicas e suas prioridades é acrescida de mais correspondência aos verdadeiros valores sociais e interesses populares quando o senso comum é informado e crítico, por ser mais questionador e reflexivo, mais ativo e consciente dos fenômenos à sua volta.

É papel das instituições democráticas do Estado procurar interagir e conhecer o meio social e senso comum, considerá-lo como forma de expressão válida, e dar informação,

feedback, de suas ações e opiniões, como forma de expor seus atos a controle quer por

censura social ou repreensões mais organizadas e representativas da sociedade.

3.4 A BUSCA DA INTEGRAÇÃO DA PESSOA AO ORDENAMENTO JURÍDICO, A