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I.4. Teoria da proposição de Mill

I.4.4. Proposições meramente verbais

Talvez a principal tese que o System of logic busca estabelecer é aquela que afirma que nenhum conhecimento real é a priori; portanto, as chamadas ciências dedutivas, como a lógica e a matemática, uma vez que, de acordo com Mill, produzem conhecimentos reais, têm origem empírica. Esta tese é uma conseqüência quase que natural da distinção por ele realizada entre proposições reais e proposições meramente verbais. As primeiras falam sobre o mundo, as segundas sobre o

significado dos nomes; ou seja, operam exclusivamente no âmbito da linguagem; nas primeiras, conhecimentos novos acerca do mundo são fornecidos, nas segundas nada de além do que o conteúdo semântico dos nomes (i. e. as propriedades conotadas pelo nome) é explicitado.

O ponto de partida da argumentação milliana é a consideração das chamadas proposições essenciais, presentes há séculos no vocabulário filosófico desde, pelo menos, Aristóteles. Tais proposições têm sua fundamentação a partir da célebre e histórica distinção entre predicados acidentais e predicados essenciais. Os primeiros são aqueles predicados que não estabelecem a natureza essencial de um determinado gênero; por isso mesmo, um elemento qualquer de um determinado gênero pode possuir ou não possuir um desses predicados sem prejuízo de sua essencialidade, sem deixar de pertencer ao seu gênero. Os segundos são aqueles que fazem parte dessa natureza íntima; portanto, não se poderia conceber um indivíduo desse gênero sem algum dos predicados essenciais; os predicados essenciais estariam intimamente ligados à constituição ontológica mais íntima de cada indivíduo pertencente às

classes impostas por tais predicados. Por exemplo: a proposição “o homem é brasileiro” afirma uma propriedade acidental do sujeito “homem”, pois é uma mera contingência o fato de o homem em questão ter nascido no Brasil; seria perfeitamente possível concebe-lo como tendo outra nacionalidade sem que seja inviabilizada sua humanidade essencial. Por outro lado, a proposição “o homem é racional” afirma uma propriedade que possui uma característica bastante diferente do anterior. Pelo seguinte motivo: podemos conceber um homem sem a nacionalidade brasileira, mas o podemos, assim acreditavam, sem a racionalidade. Portanto, a racionalidade seria um predicado dito essencial, na medida em que faz parte da essência humana.

Seguindo o caminho de Locke58, e na esteira da tradição nominalista, Mill

nega a existência de ‘essências de classes’, de essências gerais. E, tal como Locke, considera essas supostas essências gerais como simplesmente nominais, existindo somente no nível da linguagem. No entanto, Locke tinha à sua disposição uma teoria da linguagem fundamentada na psicologia. Portanto, aquilo que ele denomina

essência nominal nada mais são do que entidades psicológicas, frutos do processo subjetivo da abstração. Portanto, a expressão “essência nominal”, em Locke, somente se justifica porque lá os nomes gerais são estabelecidos por meio de processos psicológicos, uma vez que são nomes de idéias gerais. Mas, acredito, não fosse por esse peculiar papel da linguagem no sistema lockeano, o mais apropriado seria chamarmos as essências nominais de Locke de essências psicológicas, ou essências mentais. Mill, diante do problema das essências e dos predicados essenciais, coloca as coisas em outros termos; substitui efetivamente boa parte dos elementos psicológicos envolvidos no sistema lockeano por elementos semânticos, a partir de sua teoria da conotação. Por isso, em Mill, a distinção entre real e nominal (ou verbal) é muito

mais profícua e controvertida do que em Locke. Em Locke, uma proposição frívola nada mais exporá do que os resultados dos processos subjetivos de abstração, ou seja, as idéias menos gerais que estão contidas nas idéias mais gerais. Assim, por exemplo, a proposição “Todo homem é mortal” afirmaria simplesmente que a idéia geral representada pela expressão “homem” é subsumida pela idéia mais geral expressa pela expressão “mortal”. E, por isso mesmo, a idéia geral expressa por “mortal” faz parte da definição nominal da idéia geral expressa por “homem” . Em Mill, dada sua semântica não psicológica, o esquema permanece o mesmo, mas as conseqüências serão bem diferentes.

Em sua exposição, Mill aponta a seguinte constatação: seguindo o exemplo oferecido mais acima, podemos conceber um ser humano que não seja brasileiro, mas não podemos concebe-lo sem ser racional. Coloca-se, então, a pergunta: será que realmente não podemos conceber um ser que possua todas as chamadas qualidades essenciais que constituem a humanidade, menos uma: a racionalidade? A resposta milliana é: sim, podemos. Entretanto, se acaso vier a existir esse ser que facilmente podemos conceber, a única coisa que não estaríamos autorizados a fazer é chamá-lo de “homem”59. Ou, utilizando outra expressão, não poderíamos classifica-lo entre os

homens. Ora, mas a classe, como já fora insistentemente apontado, dentro do universo nominalista no qual estamos transitando, nada mais é do que o conjunto de indivíduos nomeados por um mesmo nome geral. E, de acordo com Mill, o que determina a significação dos nomes gerais, e, portanto, o que fundamenta uma suposta classe, é a conotação dos nomes. Logo, quando se afirma “o homem é mortal”

59 “They are said, truly, that man cannot be conceived without rationality. But though man cannot, a

being may be conceived exactly like a man in all points except that one quality, and those others which are the conditions that man cannot be conceives without rationality, is only, that if he had not rationality, he would not be reputed a man. There is no impossibility in conceiving the thing, nor, for aught we know, in its existing; the impossibility is in the conventions of language, which will not allow the thing, even if it exist, to be called by name which is reserved for rational beings” (idem: I, vi, 2)

não se está afirmando nada com relação à essência geral da humanidade, pois ela é negada, nem da relação entre idéias mais e menos gerais, como em Locke, mas tão somente da conotação dos nomes. E como o significado dos nomes resume-se, segundo Mill, àquilo que eles conotam, as supostas proposições essenciais nada mais são do que proposições meramente verbais, que só nos informam acerca do significado das palavras, dos atributos conotados pelo nome. Nesse sentido, afirmar “o homem é mortal” significa simplesmente afirmar que o atributo mortal é conotado pelo nome homem. Estaríamos, neste caso, transitando no universo da linguagem e da semântica. Essas proposições não nos falam nada acerca de essências reais; portanto, não pertencem à ontologia. Também não falam nada acerca de idéias gerais abrangidas umas por outras; portanto, não pertencem à psicologia. Falam, pois, da carga semântica dos nomes, das propriedades objetivas conotadas pelos nomes conotativos. É a linguagem falando dela mesma.

De acordo com Mill, as únicas proposições verdadeiramente a priori são as meramente verbais. E essas, dada sua natureza, não são instrutivas, não aumentam nosso conhecimento acerca do mundo60 e, portanto, são somente indiretamente úteis

à ciência. Kneale & Kneale, com relação à essa posição milliana, têm uma opinião bastante interessante: se as proposições meramente verbais nos informam acerca do significado dos nomes, se versam sobre a carga significativa dos termos da linguagem, então não é certo toma-las por inócuas ou frívolas. Ao contrário, elas são instrutivas e aumentam nosso conhecimento61. Certamente, tal conclusão não é

60 A proposition of this sort [merely verbal], however, conveys no informations to any one who previouly

understood the whole meaning of the terms. The propositions, Every man is a corporal being, Every man is a living creature, Every man is rational, convey no knowledge to any one who was already aware of the entire meaning of the word man, for the meaning of the word includes all this: and that every man has the attributes connoted by all these predictes, is already asserted when he is called a man. Now, of this nature are all the propositions which have been called essential. They are, in fact, identical propositions” (idem)

61 “É óbvio que as proposições verbais são aquelas que Locke chamou de frívolas e Kant analíticas, mas a

incorreta. De fato, aprendemos algo, aumentamos nosso conhecimento quando nos esclarecemos com respeito ao significado dos termos da linguagem. Mas é, contudo, bastante compreensível a postura de Mill em favor da frivolidade das proposições verbais. E isso tem a ver com o empirismo radical e preconceituoso de nosso autor. A militância empirista de Mill não o permitiu perceber o quão profícua para a filosofia foi a introdução de um universo conceitual alternativo à velha dicotomia sujeito/objeto. Como bem notou Frege62, o radical empirismo de Stuart Mill o levou

a pender toda sua filosofia para o lado do mundo exterior. Mill acertou ao desvalorizar o universo psicológico na fundamentação do conhecimento e da objetividade do discurso, mas pecou, na mesma medida, por supervalorizar o mundo exterior acessível pela observação empírica. Faltou a ele ter enxergado uma terceira via. Ou melhor: não faltou, pois esta terceira via está presente em seu pensamento; é o reino da linguagem e da semântica. Nosso autor, porém, graças ao seu empirismo tão radical quanto inconseqüente, não teve olhos para explorar todas as possibilidades de sua teoria. Voltaremos a esse assunto nos dois capítulos seguintes.