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Psicogênese e formação docente: o lugar do construtivismo

2.3 O CONSTRUTIVISMO E A ALFABETIZAÇÃO ENTRE A TEORIA E A AÇÃO: DESAFIOS

2.3.3 Psicogênese e formação docente: o lugar do construtivismo

Pensamos que a análise apresentada acima apenas ilustra a dimensão dos conflitos que surgiram na escola com a introdução das teorias psicogenéticas, sem que houvesse o planejamento de uma formação continuada adequada ou organizada para os professores a partir de pressupostos contemporâneos sobre o modo de aprender do professor. Avaliamos que a escola, tentando assumir os estudos mais recentes da psicologia e da psicopedagogia (em especial os estudos de Emília Ferreiro), fez com que o ambiente escolar se tornasse nessa época um campo de batalha: professores, técnicos, gestores conviveram com a “febre” e ao mesmo tempo o “terror” do construtivismo, em vez de integrá-lo como mudança de paradigma.

O reflexo dessa teorização encontrou campo fértil para que se sucedessem análises sobre os processos de alfabetização e formação de professores. Em um encontro latino- americano realizado no México, em outubro de 1987, reuniram-se diversas pesquisadoras14

14 O Encontro Latino-Americano ocorreu no México, em outubro de 1987. A organização geral foi de

responsabilidade de Emília Ferreiro, as coordenadoras convidadas para acompanhar as discussões foram: Maria Bernadete Abaurre (Brasil), Myriam Nemirovsky (México), Clotilde Pontecorvo (Itália) e Ana Teberosky (Espanha). As participantes que apresentaram os projetos de alfabetização foram:

. Argentina: Maria Elena Cuter, Ana Maria Kaufman, Mirta Castedo, Mercedes Pons

. Brasil: Marília Gerais Duran, Maria Leila Alves, Madalena Freire, Esther Pilar Grossi, Eliana Matos de Figueiredo Lima, Lucia Browne Rego, Telma Weisz

. México: Margarita Gómez Palácio, Letícia Calzada, Laura Navarro

para refletir sobre o tema dos processos de alfabetização. O que elas tinham em comum era a certeza da defesa do direito à alfabetização de todas as crianças da América Latina. Na ocasião, colocou-se como um dos temas de discussão a formação dos professores e sua capacitação para trabalhar na prática partindo da compreensão da psicogênese da língua escrita.

Uma das participantes, Ana Maria Kaufman (FERREIRO, 1990, p.07) descreveu de forma muito clara como pode acontecer o processo de afastamento do professor quando lhe é impingido um modo de trabalhar sem que tenha vivido o processo de assimilação das teorias. Apresentamos um trecho do diálogo para expressar um ponto de vista que pode nos ajudar a compreender algumas resistências cognitivas dos docentes em relação ao construtivismo:

“Existem professores que passam 40 anos trabalhando de determinada maneira, que acham que é importante serem rígidos e inflexíveis, que é preciso corrigir sem parar para que a criança saiba o que está bem e o que está mal. É muito difícil que esses professores possam mudar rapidamente, adotando uma concepção de aprendizagem muito diferente da que encontramos difundida, não apenas entre os docentes, mas também na sociedade em geral. Meu medo é que, se forçarmos um professor que não está convencido da necessidade de mudar, e que tampouco tenha recebido capacitação suficiente, a mudar sua prática, ele obtenha resultados ruins, talvez até piores do que aqueles obtidos antes. Pode ser que conclua: ‘esse eu já experimentei e não serve’.”

As preocupações apontadas referentes à formação dos professores confirmam-se quando se analisam as práticas inseridas na escola fundamental, em especial nas séries iniciais relacionadas ao processo de alfabetização, e quando no cotidiano ouvimos de professores que “antigamente é que as crianças aprendiam a ler e escrever”. Mas a análise de estatísticas de reprovação da década de 70 e 80 confirma que essa visão idealizada acerca do sucesso escolar na alfabetização não era real, pois o número de alunos que aprendiam a ler e escrever era pequeno. Os motivos para tal ocorrência podem ser definidos primeiro porque o acesso à escola ainda era reduzido e segundo porque uma grande maioria de alunos era reprovada nas primeiras séries e progressivamente afastada da escolarização, gerando insucesso escolar e evasão. Encontramos referências a estes estudos em Ferreiro (2007, p.12):

“É bem verdade que, como assinala o documento da Cepal-Unesco15 [...], ‘a má qualidade da educação primária latino-americana e caribenha reflete-se em elevadas taxas de ingresso tardio na escola, repetência, deserção temporária e deserção definitiva prematura’ [p.44]. É bom recordar que a América Latina aceitou como ‘normal’ um fenômeno quase patológico: as taxas de repetência da América Latina são algumas das mais altas no mundo, e se concentram nas primeiras séries. ‘Com efeito, uma em cada duas crianças repete o primeiro ano e, a cada ano, repetem em média 30% de todos os alunos do ensino básico’ [...] ‘A repetência explica que o aluno médio do ensino primário permaneça 7 anos no sistema, mas só obtenha aprovação em 4 anos de escolarização’ [p.44-5].

As maiores taxas de repetência se situam nas três primeiras séries do 1º grau (ensino fundamental) ; o filtro mais severo está na passagem do primeiro para o segundo ano da escola primária, alcançando em alguns países da região cifras excessivas (no Brasil, por exemplo).”

Sabe-se de algumas iniciativas pelo Brasil e no mundo para tentar reverter essa situação tão preocupante de reprovação escolar e evasão. Temos, como exemplo, a experiência do ciclo básico, implementada em 1984 pela Coordenadoria de Normas Pedagógicas (CENP) da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Em Ferreiro (1990, p.91), vemos um registro acerca do que se fez a partir do conhecimento da teoria da psicogênese. Segundo Duran e Alves (1991, p.91-92):

“O acesso ao conhecimento sobre a psicogênese da língua escrita, a contribuição dos lingüistas brasileiros e de outros profissionais que se opunham à orientação associacionista que dominava a alfabetização no Brasil, conseguiram dar conteúdo e orientação à decisão política de reverter o processo de produção escolar do analfabetismo.

Organizaram-se cursos e reuniões a nível central, regional e sub-regional. Foi também amplamente utilizado o sistema de multimeios para que esse novo referencial teórico fosse discutido, desenvolvendo-se uma reflexão sobre os procedimentos de alfabetização, o período preparatório e o uso de materiais didáticos.”

Pode-se afirmar que algo faltou no planejamento curricular e de projeto pedagógico na década de 80 e início da de 90, talvez uma abordagem que abarcasse os múltiplos aspectos que envolviam mudanças tão importantes nas práticas pedagógicas. Pode-se levantar como hipótese que as mudanças nos sistemas de ensino não promoveram um diálogo efetivo entre as instâncias gestoras da educação e as instâncias de planejamento, ação e avaliação, como seria necessário numa situação de implementação de mudanças.

Isto nos faz pensar em como terá sido encaminhado o processo de formação dos docentes. Neste ponto de nosso estudo não faremos o recorte histórico desse aspecto, pois realizamos algumas considerações amplas no capítulo 2.2. Registraremos como pensamos que este processo deveria acontecer e alguns de seus pressupostos.

Freire (1991, p.24) disse:

“Se estamos reunidos aqui porque acreditamos que a criança constrói seu saber, temos que dar crédito também ao saber do professor dentro do seu processo de construção. O importante é que essa prática e essa teoria cheguem a caminhar juntas. Por isso acredito que o instrumento chave, a arma de luta desse professor é sua reflexão. Se aceitamos que o educando é um sujeito que se alfabetiza ao interagir com seu próprio processo de alfabetização, o professor deve ser aquele a quem devem ser oferecidos instrumentos que resgatem sua reflexão teórica sobre sua prática, para que ele possa construir sua trajetória juntamente com a de seus educandos.”

Considerando a questão relativa à formação docente e projeto pedagógico, destacamos também alguns pontos de vista de Weisz (2006), que nos ajudam a entender a importância da

formação do professor de séries iniciais, pensando-o no âmbito do construtivismo, como sujeito de sua aprendizagem.

Weisz (2006, p.117-118) reflete sobre a formação permanente do professor:

“[...] quando se trabalha com um modelo de aprendizagem construtivista e um modelo de ensino para resolução de problemas, as exigências são outras. [...] a atividade de ensino do professor vai ter de dialogar com a atividade de aprendizagem do aluno. [...] para dar conta dessa nova demanda é preciso condições de desenvolvimento profissional e de qualificação diferentes das que vêm sendo oferecidas, no geral, aos professores. [...] começamos a conceber a profissão de professor como uma profissão que pressupõe uma prática de reflexão e atualização constante. [...] A visão que se tem do professor hoje é a de alguém que desenvolve uma prática complexa para a qual contribuem muitos conhecimentos de diferentes naturezas. [...] Seu papel agora tende a ser mais exigente: precisa se tornar capaz de criar ou adaptar boas situações de aprendizagem, adequadas a seus alunos reais, cujos percursos de aprendizagem ele precisa saber reconhecer.”

No decorrer de sua reflexão, Weisz (2006, p.124) aborda a questão da análise da prática em sala de aula “como um objeto sobre o qual se pode pensar” e faz as seguintes proposições ao referir-se à possibilidade de tematizar a prática:

“[...] o que propomos é tornar o professor capaz de desentranhar a(s) teoria(s) que guia(m) a sua prática real. [...] toda a ação didática traz em si uma teoria sobre o conteúdo a ser ensinado, uma teoria sobre o processo através do qual ele é aprendido e uma teoria sobre a natureza dos procedimentos por meio dos quais ele deve ser ensinado. O desvelamento dessas teorias em inúmeras situações de observação e análise da prática de sala de aula é o mais sólido instrumento para formar o tipo de profissional de que precisamos e que tem sido chamado de prático-reflexivo”. Ao mesmo tempo em que se concebe a importância da reflexão, é necessário apontar sua dimensão no coletivo e também a importância de haver um registro sobre as práticas para que os educadores possam organizar os conhecimentos e articulá-los com o trabalho através de registros parciais e do registro do projeto político pedagógico. Diz Weisz (2006, p.130):

“No caso da formação continuada e, principalmente, da produção de um projeto educacional pela escola, creio que dois instrumentos são particularmente importantes. Um é a documentação da prática de sala de aula e a reflexão coletiva da equipe da escola em torno dela. O segundo é a exigência da comunicar o processo de elaboração desse projeto educacional coletivo por escrito [...]. Todas as escolas deveriam produzir coletivamente algum tipo de documento para difundir o seu projeto pedagógico e o processo de reconstruções progressivas que geraram avanços.”

Neste ponto de nossa exposição da teoria faz-se necessário estabelecer uma ligação entre o que a pesquisa sobre formação contínua tem apontado, conforme exposto em 2.2, e o que se estuda sobre os processos de ensino e aprendizagem, a partir de um referencial construtivista. Ou seja, é preciso dar relevância aos processos de construção dos saberes dos professores, suas crenças e suas dúvidas, considerando a reflexão sobre a prática de forma sistemática.

Segundo Colello e Luise (2005, p.14-23), é preciso repensar os processos de transposição pedagógica e formação:

“A complexidade da transposição pedagógica sugere a necessidade de iniciativas que, tanto no plano político quanto no plano pedagógico, possam estimular a continuidade de pesquisas básicas e aplicadas, ampliar o debate e a troca de experiências entre os educadores, aproximar a Universidade da Escola Básica, valorizar a educação, incidir sobre a formação inicial e continuada de professores, favorecer a desburocratização escolar, a autonomia das instituições de ensino e o aprimoramento das condições de trabalho”.

Considerando o exposto, reafirmamos a importância de compor as análises sobre as práticas educativas que considerem as condições de trabalho e contextos político-sociais que formam o cenário das ações e reflexões.

2.3.4 Um olhar em Vygotsky: o papel da mediação e a concepção de alfabetização