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2 O LUGAR SOCIAL DE PRODUÇÃO DA RBH

2.4 A PUBLICAÇÃO NA RBH E O CRIVO DOS PARES

Nesta subseção procuro cartografar como a comunidade de historiadores profissionais, acadêmicos que se formava no Brasil a partir da década de 1980 estabeleceu algumas regras tácitas de enunciação do saber histórico que terminaram por ressoar nas páginas da RBH, ao mesmo tempo constrangendo e possibilitando as narrativas historiográficas ai publicadas e circuladas. Estas regras e protocolos começas a ficar mais evidentes, sobretudo, a partir da segunda metade da década de 1980, como demostro a seguir.

No biênio 1987-1989 a ANPUH passa a ser presidida, mais uma vez, por um historiador ligado ao PPGH da USP, a professora Raquel Glezer, depois dela ter sido, por três vezes seguidas, a Secretária Geral da Associação. Sob sua presidência há alterações significativas no Conselho Editorial da RBH. Saem os historiadores José Jobson Arruda da USP, Déa Ribeiro Fenelón, que havia se transferido neste período da UNICAMP para a PUC-SP, e Michael Hall da UNICAMP, permanecem os historiadores Marcos A. Silva da USP e Anna Maria Martinez Corrêa, professora da UNESP – Assis. Além destes, serão incorporados ao Conselho os historiadores Carlos

Roberto Antunes, professor da UFPR (Antunes vai ser o primeiro historiador que além de não ser professor de nenhuma instituição paulista, que também não teve sua formação marcada ou ligada a nenhuma delas a fazer parte do Conselho Editorial da Revista), Eni de Mesquita Samara, professora da USP; Maria Stella Martins Bresciani, professora da UNICAMP e Rosa Maria Godoy Silveira, professora da UFPB (embora Silveira fosse professora de uma instituição situada fora de São Paulo, o que a torna a primeira historiadora de uma instituição fora do centro-sul a participar da editoria da RBH, sua formação havia sido feita na USP). Estas alterações no conselho editorial da revista provocam também algumas mudanças nos autores publicados e nos temas que irão ser abordados nos quatro números da RBH editados neste biênio. Não ao ponto de alterar a hegemonia dos autores ligados a USP e a UNICAMP, pois as estratégias e procedimentos usados pelos editores são praticamente os mesmos dos biênios anteriores. Uma vez que, nestes quatro números, são publicados 56 textos (entre artigos temáticos, artigos livres, resenhas, apresentação de documentos e outros), a grande maioria de pesquisas individuais, mas também alguns textos coletivos. O que faz com que em 56 textos, estejam presentes 66 autores. Destes, 18 tem ligação direta com a USP, sendo ou professores ou historiadores formados no seu PPGH, 17 tem ligação com a UNICAMP, sendo também ou professores ou historiadores formados no seu PPGH.

Temos, neste período, um aumento significativo de publicações ligadas aos PPGHS da UFF e PUC –SP, comparecendo com seis textos cada, o que se explica, no caso da UFF, em partes pela migração, neste período, que alguns dos historiadores que haviam feito o mestrado no seu PPGH para fazerem o doutorado na UNICAMP, em especial os orientandos de Robert Slenes, a exemplo de Sidney Chalhoub, Gladys Sabina Ribeiro e Marta Campos Abreu. Já no caso da PUC-SP, este aumento significativo se explica pela presença de Déa Fenelón no seu quadro docente e que mesmo distante da editoria da RBH parecia continuar exercendo ainda uma grande influência sobre ele, em especial porque parte destes trabalhos da PUC-SP aí publicados ou vão ser de seus orientandos, como Olga Brites, ou de seus colegas de departamento, a exemplo de Maria Antonieta Antonacci. Temos quatro textos de autores da UFBA, o que se explica pela comemoração da efeméride de 100 anos de abolição da escravidão, quando no número dedicado a este tema temos três textos, sendo dois do historiador João José Reis e um da historiadora Katia Mattoso, expoentes da nova historiografia social da escravidão no Brasil. A UNESP-Assis

comparece com mais quatro autores, dedicados a área de ensino de História. E UNESP-Franca, UFRJ, e UFRGS com um, cada.

No entanto, neste biênio, a partir da observação dos autores que aí publicaram e de seus orientandos, salta aos olhos a ascendência de Eni de Mesquita Samara como uma das figuras centrais do Conselho Editorial. Esta vai publicar vários de seus orientandos, assim como seus colegas de departamento e os orientandos da sua orientadora, Maria Thereza Schorer Petrone. Ao lado de Marcos A. Silva e de Maria Stella Martins Bresciani, vão ser responsáveis por dar visibilidade a novas áreas de produção do saber histórico no país, a exemplo da História das Mulheres, pensada ainda neste momento no recorte de uma história dos excluídos, a partir da perspectiva de Michele Perrot, e dos estudos sobre Família. Neste sentido, a RBH parece cumprir, mais uma vez seu papel estratégico, uma vez que nos quatro números publicados ao longo destes dois anos há uma clara definição dos lugares institucionais que orientam a publicação, assim como das perspectivas teóricas e metodológicas que a informam. Neste período há uma sensível modificação editorial da Revista, que parece contribuir decisivamente para esta maior definição, qual seja: cada número publicado ficou a cargo de um organizador.

O primeiro número publicado sob esta nova configuração institucional da RBH, o número 15 de setembro de 1987/fevereiro de 1988, com o tema Sociedade e Cultura, foi organizado por Maria Stella Martins Bresciani. Ao organizar este número, Bresciani parecia expressar sua ascendência não só intelectual sobre a RBH, que já era marcante desde a presidência de Déa Ribeiro Fenelón, sua colega de UNICAMP (biênio 1983/1985), mas, sobretudo, institucional. Ela vai imprimir sua marca intelectual neste número da revista ao articular a publicação quase que exclusiva de historiadores ligados a USP e que trabalhavam com a temática “Cultura e Sociedade” a partir de uma perspectiva bem próxima a sua. Indicia também esta influência de Bresciani sobre esta produção às referências feitas ao seu trabalho nos artigos publicados neste número. Este é um número marcado também pela forte presença de autores ligados ao programa de pós-graduação de história da USP e em menor grau o da UNICAMP na produção circulada naquele número. Além disto, a grande maioria dos artigos tem como base teórico-metodológica a História Social inglesa, aparecendo também alguns textos daquilo que estava começando a ser nomeado a época de “Nova História Cultural. Já o número 16 e os artigos nele publicados, organizado por Silvia Hunold Lara, professora da UNICAMP, e que tem como tema a “Escravidão”,

em comemoração aos 100 anos da Abolição, são claramente inspirados e matizados pela História Social da Escravidão, na perspectiva dos “de baixo”, a partir das leituras e pensamento de E. P. Thompson, Eugene Genovese e do conceito de resistência sub-reptícia do historiador chileno e professor da UNICAMP, radicado no Brasil, Hector Bruit, além das referências e citações a Hobsbawn e Christopher Hill. Neste número o lugar institucional que está na base das pesquisas e produções publicadas na RBH é, na maior parte dos textos, o PPGH da UNICAMP e em menor volume o da USP e de algumas outras instituições do país, além de textos de autores internacionais, como por exemplo, o historiador americano Eric Foner, que contribui com a publicação do artigo “O significado da liberdade”. Assim, com este número, a RBH cumpre o seu papel no sentido de legitimar a nova historiografia social da escravidão. Além de não reverberar as discussões, que neste período já se faziam acaloradas, em torno dessa área – uma vez que Gorender já havia publicado o seu livro A Escravidão Reabilitada –, a RBH vai publicar os principais historiadores a quem Gorender critica em seu livro: Silvia Lara, Sidney Chalhoub e Robert Slenes da UNICAMP, Kátia Mattoso e João José Reis da UFBA, Luis Carlos Soares da UFF e Maria Helena P. T. Machado da USP. Não há, portanto, espaço para uma leitura divergente da historiografia da escravidão nas páginas da RBH. Praticamente todos os textos publicados corroboram com uma mesma visão e abordagem do tema, partindo da perspectiva “dos de baixo”. O número 17, de setembro de 1988/fevereiro de 1989, organizado por Eni de Mesquita Samara a partir do tema “Família e Grupos de Convívio”, tem como lugar institucional predominante da produção aí publicada e circulada, o PPGH da USP. Neste número, a RBH e seu Conselho Editorial vão mesclar textos produzidos tanto a partir da perspectiva da História Social inglesa, quanto produzidos e inspirados a partir da “Nova História Cultural”, muito embora estes recortes e diferenças ainda não estejam bem estabelecidos, havendo hibridismos destas correntes e dos autores que lhes são caros dentro dos próprios textos e abordagens historiográficas dos autores que aí publicaram. Já o Nº 18, de agosto de 1989/setembro de 1989, que tem como tema “A mulher e o espaço Público”, é novamente organizado por Stella Bresciani. Diferentemente do Nº 15, que ela também havia organizado, neste número o lugar institucional predominante entre as pesquisas e produções publicadas é o PPGH da UNICAMP e em menor volume o da USP. A maioria dos artigos é fruto de pesquisas em nível de mestrado ou doutorado desenvolvidas naqueles programas. Neste número da RBH quase todos os artigos dialogam com uma História das Mulheres na

perspectiva de uma história dos excluídos. Não à toa o texto de abertura da revista, “Práticas da memória feminina”, é de autoria de Michele Perrot, historiadora francesa expoente desta perspectiva. Há textos também já apontando para um recorte de gênero, com inspiração no pensamento e obra de Michel Foucault e em alguns de seus comentadores brasileiros como Jurandir Freire Costa e Roberto Machado, como, por exemplo, os trabalhos de Margareth Rago, Maria Clementina Pereira da Cunha e Magali G. Engel, todas ligadas ao programa da UNICAMP, e o de Raquel Soihet, professora da UFF. Já o Nº 19, organizado por Marcos A. Silva, com o tema “História em Quadro Negro: Escola, Ensino e Aprendizagem”, retoma a discussão de um tema que se tornou bastante caro a revista, em especial desde a presidência de Déa Fenelón, e que ela ajuda a delinear e a definir como área de estudo historiográfico no país, a de Ensino de História41.

Este número finaliza o percurso da RBH ao longo da década de 1980, apontando, dentre outras coisas para a construção de uma dada renovação que a produção historiográfica nacional vinha sendo submetida ao longo da década. Uma renovação de ordem temática, da constituição dos objetos, de cotejamento de novas abordagens e perspectivas teóricas, de ampliação das fontes e redefinição metodológica. Muito embora sem despertar nos historiadores brasileiros a época, ao menos nas páginas da RBH, uma problematização teórica e historiográfica do seu fazer, das regras e procedimentos que presidiam a sua operação ou até mesmo de pensar o lugar ou os lugares a partir de onde ela estava sendo produzida. Na verdade, se tratava mais da produção e definição destes lugares do que de qualquer outra coisa. Estes movimentos se constituíam num processo de redefinição de toda uma geografia disciplinar e sua cartografia correlata: a da historiografia acadêmica, profissional, no Brasil. E dos lugares, das áreas e subáreas que a comporiam a partir de então. Assim como de qual tipo de sujeito historiador seria requerido por este espaço em “renovação”. Foucault, Thompson e Benjamin parecem ser os autores mais usados e apropriados pelos historiadores brasileiros a “conduzir” esta mudança. E esta tendência se expressa praticamente ao longo de todo o período. Desta maneira, a RBH buscava expressar não só esta renovação pela qual a historiografia

41 Para uma discussão mais aprofundada sobre a constituição desta área de estudo conferir a tese de

Margarida Maria Dias de Oliveira, na qual a autora discute a constituição desta área para o pensamento historiográfico brasileiro, apontando, dentre outras coisas, o papel da RBH neste processo. Cf. OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O Direito ao Passado. Tese de Doutorado. Recife: UFPE, 2003.

produzida no país passava naquele período, mas, sobretudo, apontar para os lugares institucionais que despontavam para ou possibilitavam estas mudanças, senão que a construíam.

Contudo, a meu ver, a dimensão que vai dar um caráter institucional estratégico para a RBH é o papel que alguns de seus editores, junto com os presidentes da ANPUH, vão assumir junto a revista, notadamente a partir de 1983, na tentativa de organizar a produção historiográfica nacional em meio a ascendente profusão de novas histórias e historiadores que surgiam a partir dos principais programas de pós-graduação em História à época, em especial os da USP e UNICAMP. Nomes como Déa Fenelon, Edgar Salvadori de Decca, José Jobson Arruda, Marcos Silva, Raquel Glazer, Eni de Mesquita Samara, Maria Stela Bresciani, parecem tomar a frente do processo de produção e editoração da Revista com o claro objetivo de organizar a transição de sua geração de historiadores para uma outra que estava despontando sob a influência dos ventos historiográficos ingleses, franceses e, em menor intensidade, americanos. A geração acima foi acomodando, absorvendo, formando e orientando nomes da nova geração de historiadores como Margareth Rago, Sidney Chalhoub, Gladys Sabina Ribeiro, Nicolau Sevcenko, Marta Campos Abreu, Olga Brites, Silvia Lara, Laura de Mello e Souza e inúmeros outros de modo a preservar e ampliar o lugar institucional, de poder e saber, representados pelos programas de pós-graduação em História da USP e da UNICAMP e, em menor grau, da PUC-SP, da UNESP – Assis e Franca, sobre a produção do saber histórico no país. Levar isto a efeito, justamente no momento em que a produção do conhecimento histórico brasileiro começava a sofrer sensíveis transformações em todos os seus níveis, significava, antes de tudo, transformar aqueles espaços institucionais não só em lugares de produção, mas, sobretudo, de definição das regras do fazer histórico. E foi a este propósito que serviu, não só a ANPUH, mas, sobretudo, a RBH ao longo dos anos 1980. Isto era favorecido por regras de editoração e publicação pouco rigorosas ou não claramente definidas, em especial por que a Revista em nenhum momento ao longo dos anos 1980 adotou o parecer às cegas como critério de avaliação e publicação, o que restringiria dadas práticas. O crivo direto dos pares, e as redes intelectuais a que pertenciam, sobretudo dos editores a frente da Revista pareceu ser o principal critério de publicação na RBH neste período.

A RBH termina os anos 1980, portanto, afirmando os PPGHs da USP e da UNICAMP como os principais lugares de definição da “historiografia brasileira” e,

sobretudo, de sua renovação. Espelhando, com isso, as discussões e debates que o constituíam, como sugere Igor Guedes Ramos ao se referir ao programa da UNICAMP:

Desde sua fundação em 1976 até 1990 o programa sofreu diversas mudanças em suas linhas de pesquisa e áreas de concentração, contudo, a temática principal foi constante: “História Social do Trabalho” focada na “recuperação da memória política das classes trabalhadoras, com estudos sobre a vida cotidiana, a vida fora das fábricas e a cultura popular”. No final dos anos 80, emerge o interesse dos membros do programa (docentes e discentes) pela “História Cultural”; ou, melhor dizendo, o que começou com um interesse no interior da “História Social” pela “cultura dos trabalhadores e dos marginalizados”, foi se consolidando na década de 1990 em uma área de concentração separada: com outros objetos, temáticas e referências teórico-metodológicas. (RAMOS, 2015, p. 2016)

Estas mudanças no interior do programa se fizeram presentes também nas páginas da RBH, como visto acima, de forma quase que simultânea às transformações operadas naqueles espaços acadêmicos. Muito embora ainda reproduzindo uma estrutura e um debate ainda hierarquizado, proveniente, sobretudo, do departamento de história da USP, que ao longo dos anos 1970 e 1980 procurou senão monopolizar este debate, mas, ao menos direcioná-lo ou orientá-lo institucionalmente, o que se expressa, sobretudo, pela presença de professores de seu departamento ou oriundos dele em espaços institucionais chave da ANPUH e da RBH, como a presidência daquela e na editoria desta. Sobre esta postura, a historiadora Maria Odila Leite Dias afirma o seguinte, em entrevista de 1999:

Na USP são como feudos, são grupos que se constituem, sobretudo como política corporativa, controle das editoras, acesso aos jornais, e esses grupos são muito paroquiais. É raro as pessoas entabularem uma discussão intelectual. Eu tenho a impressão de que é um ambiente viciado, no qual o debate propriamente intelectual não conta muito. Nós não temos uma tradição plural. Ao contrário, temos uma tradição muito fechada e autoritária e sentimos isso dentro das universidades. (MORAES e REGO, 2002, p. 209)

Este paroquialismo e política coorporativa da USP buscou se estender tanto a ANPUH quanto a RBH, muito embora, como vimos, tenha tido de fazer determinadas concessões aos professores e ao PPGH da UNICAMP, com quem rivalizavam e, sobretudo, dividiram os espaços institucionais e de publicação da

ANPUH ao longo da década de 1980. Neste sentido, por mais que a RBH tenha expressado algumas das transformações pelas quais a historiografia produzida no período, ou parte dela, passou, ela não expressa sua pluralidade e diversidade, uma vez que deixa de fora e interdita vários debates presentes e constitutivos daquele momento, como por exemplo, o que se dá em torno da historiografia da escravidão silenciando e marginalizando determinadas perspectivas e abordagens ainda bastante significativas à época, em especial as abordagens marxistas mais tradicionais representadas por Gorender. Nos anos 1980, portanto, apesar de apontar para uma abertura e renovação de tendências a RBH se constituiu muito mais como um espaço de legitimação de determinadas estruturas e hierarquias institucionais, a exemplo dos PPGHs da USP e da UNICAMP, e da consolidação de determinadas tradições historiográficas, de uma determinada tradição francesa – ligada aos Annales, como requer certa memória – no primeiro programa e uma tradição anglo- saxônica, de matriz inglesa, no segundo. Parafraseando Dias, a RBH ao longo da década de 1980 se tornou um feudo, onde os grupos de historiadores que se constituíram naqueles departamentos controlaram, a partir de uma estratégia política corporativa, sua editoria e definiram os temas, objetos, abordagens, perspectivas e os nomes que comporiam ou seriam colocados como renovadores do que diziam ser a própria historiografia brasileira. Como constatou Michel de Certeau, em obra já clássica, o que permite ou possibilita o discurso historiográfico é o seu lugar social de produção (CERTEAU, 1982.). E a escrita da história circulada na RBH é um exemplo disto.

3 A RBH E A CONFIGURAÇÃO DO CAMPO HISTORIOGRÁFICO