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Os valores sociais podem definir-se como “sistemas de disposições e orientações interiorizados” (Almeida, s/d: 1), dotados de uma estrutura relativamente estável e duradoura, com influência ao nível das atitudes, posicionamentos e comportamentos individuais. Ora, importa perceber em que medida os valores relativos ao trabalho condicionam a posição, os comportamentos, as escolhas e as estratégias dos sujeitos nesta dimensão da vida social.

Integrando os sistemas de disposições individuais, os valores resultam de condições específicas que determinam, de forma activa as dinâmicas sociais, “nomeadamente através das modulações de estratégias e comportamentos dos actores” (Almeida, s/d: 1).

O trabalho, enquanto factor de estratificação e diferenciação social, nomeadamente pelas oportunidades que cria ou não no acesso a recursos e bens, bem como pelas suas dimensões social, simbólica e identitária, é objecto de diversas valorizações. “Os valores do trabalho (...) influenciam as atitudes face ao trabalho e o significado que os indivíduos lhe atribuem” (Caetano et al, 2003: 430), determinando igualmente as respostas individuais em contexto profissional/organizacional.

Enquanto fonte de rendimentos de indivíduos e famílias, a centralidade do trabalho determina não só a organização do quotidiano, mas também a construção de projectos de vida. “Mas a importância do trabalho vai muito para além do rendimento que proporciona. Ele é ainda, nas sociedades modernas, o principal referencial para a definição do estatuto social. Não ter uma relação normal com o trabalho representa assim, quase sempre, uma importante ausência de estima social e, muitas vezes, o desenvolvimento de uma identidade negativa” (Capucha, 2005: 179).

A teoria da mudança de valores, de Inglehart (1977), enquadra a mudança das prioridades valorativas num processo mais amplo, que respeita às mudanças estruturais das sociedades pós-modernas, decorrentes do processo de crescimento económico e desenvolvimento tecnológico, do aumento generalizado dos níveis de educação, do clima de paz e segurança e da expansão dos meios de comunicação social. Na sua abordagem, procede à descentralização dos sistemas de valores de natureza materialista, no sentido de uma maior saliência dos sistemas de valores pós- -materialistas, mais difundidos e melhor assimilados nas sociedades mais ricas e prósperas; tendo, dentro de cada estrutura social, maior saliência entre os estratos mais ricos e com maiores níveis de segurança.

O autor considera ainda que, não obstante a natureza organizada e duradoura das disposições valorativas, estas adequar-se-ão às flutuações conjunturais na medida em que, face a períodos conjunturais de crescimento e estabilidade serão mais valorizadas questões relativas à qualidade de vida, enquanto que em períodos recessivos, terão maior relevo questões de natureza materialista. A mudança de valores será mais extensa e profunda em sociedades que conheçam períodos de paz e prosperidade mais longos.

De acordo com a hipótese da socialização, avançada por Inglehart, é no decurso dos processos de socialização primária que o indivíduo forma e define as suas prioridades valorativas, que dificilmente se alterarão na vida adulta. Daí ser visível uma forte diferenciação, ao nível das prioridades valorativas, entre as gerações mais velhas e as gerações mais jovens. Estas, socializadas num ambiente de paz e maior prosperidade e estabilidade (ao longo dos 30 Gloriosos), valorizam mais as questões de natureza pós-materialista, enquanto que aquelas darão maior importância ao bem- estar e à segurança.

De diferentes condições de vida, de diferentes contextos e processos de socialização decorrem diferentes sistemas de valores. Na linha da teoria das necessidades humanas proposta por Maslow2, ambientes de insegurança e escassez

geram necessidades de regras rígidas, com tradução em sistemas de valores que, enfatizando a ordem e a segurança, fortaleçam sentimentos de segurança e estabilidade. Em contrapartida, em ambientes nos quais as questões de segurança são tomadas como adquiridas, a autoridade e a produtividade são subvalorizadas em detrimento da qualidade de vida e da auto-realização.

Assim, e do ponto de vista económico:

Condições de vida insegura... Condições de vida segura...

Econ

omia

- Prioridade do crescimento económico. As prioridades valorativas associadas ao trabalho relacionam-se com os valores extrínsecos do trabalho, independentes do tipo de trabalho que se realiza, mas relacionados com os resultados directos, como as oportunidades decorrentes do trabalho. Enquandram-se nesta categoria valores como: ser bem pago, estabilidade no trabalho e ambiente de trabalho.

- Prioridade de questões relativas à qualidade de vida, numa lógica de descentralização do crescimento económico.

Aqui são valorizadas questões relacionadas com a possibilidade de realização pessoal, de autonomia, de iniciativa e de participação nos processos. Inserem-se nesta categoria valores como: auto-realização, iniciativa, uso das capacidades individuais.

“Os resultados dos estudos já realizados apontam para uma orientação em termos de valores muito dependente de factores económicos. (...) uma posição económica mais privilegiada leva a uma orientação intrínseca mais marcada, enquanto os mais desfavorecidos tendem a enfatizar os valores extrínsecos de forma mais evidente. Enquanto não se vêem satisfeitas as necessidades «básicas» (extrínsecas), é a esse tipo de valores que se dá mais importância” (Caetano et al, 2003: 434).

A nível político, o papel e a intervenção do Estado também diferem:

2 De acordo com a proposta apresentada por Maslow, uma necessidade só se torna suficientemente motivadora e mobilizadora da acção, quando as necessidades anteriores se encontram satisfeitas. Nesta linha analítica, Maslow define a pirâmide das necessidades humanas, hierarquizando-a entre necessidades básicas (fisiológicas, e de segurança, na base) às necessidades de estima e de auto-realização (relacionamento, estima e realização pessoal) no topo da pirâmide.

Condições de vida insegura... Condições de vida segura...

Politica

Necessidade de líderes fortes, defesa do papel regulador do Estado, valorização da ordem política e social.

A forte desconfiança e criticismo face à autoridade política faz-se acompanhar pela crescente valorização de questões como: uma maior expressão e participação do indivíduo, e alteração dos modos de regulação social.

Tal como nas dimensões económica e política, é possível identificar, ao longo do processo de evolução das estruturas sociais, mutações ao nível da valorização do trabalho. Com a revolução industrial e a consolidação da condição salarial o trabalho, passa a ser valorizado enquanto actividade significante, e não mais enquanto necessidade. Contudo, o equilíbrio sob o qual se ergueu a sociedade salarial, evidencia a sua fragilidade perante a retracção do crescimento económico e o fim de um período marcado pelo quase pleno emprego, perante os quais o trabalho era mais que o trabalho e, o não-trabalho, mais que o desemprego (Castel, 2001).

A valorização das questões associadas à qualidade de vida, à participação e expressão do indivíduo surgem, não só associadas àquele período de prosperidade económica, como também, “à implementação do sistema de protecção social, que veio dar aos indivíduos um sentimento de segurança e de sobrevivência assegurada” (Caetano et al., 2003: 437).

Porém, a crescente individualização das relações sociais, verificadas ao longo dos processos de modernização das estruturas sociais, bem como as mutações verificadas no mercado de trabalho, comportam, relativamente à valorização do trabalho, a saliência de posicionamentos valorativos de natureza marcadamente materialista. Os dados do European Values Study permitem estabelecer uma análise comparativa entre as prioridades valorativas predominantes na União Europeia para o período 1990-1999. Relativamente ao trabalho3 verifica-se a predominância das

questões associadas à remuneração. Na realidade, é o salário que representa a garantia de satisfação das necessidades básicas individuais. Contudo, é interessante verificar que esta realidade não é uniforme no espaço comunitário, sendo particularmente visível (em 1999) em Portugal, Espanha, Irlanda, Grécia, Itália, França e Grã-Bretanha. Já nos países escandinavos este aspecto é preterido em favor de factores como o bom ambiente de trabalho e a possibilidade de ter um trabalho

3 Os indicadores utilizados no European Values Study, relativamente à questão do trabalho foram: remuneração (ser bem pago), ambiente humano agradável, não ser pressionado, segurança, oportunidade de promoção, ser respeitado, bom horário de trabalho, ter iniciativa, ser útil à sociedade, bons períodos de férias, contacto com pessoas, realização, trabalho com responsabilidade, trabalho interessante, fazer uso das capacidades.

interessante. Um outro aspecto que marca a diferença entre os países da UE, é a importância atribuída ao factor «iniciativa». A nível europeu este aspecto surge como o sétimo mais valorizado, enquanto que em Portugal aparece na 13ª posição, entre os 15 valores apresentados. Tal não será alheio à estrutura de qualificações do país e ao seu contraste com o resto dos países do espaço comunitário.

Quadro 8

Percentagem e ordem de saliência dos valores do trabalho, em Portugal e na EU (1999)

Portugal EU Valores do trabalho

% Ordenação relativa % Ordenação relativa

Ser bem pago 80.2 1 73.3 1

Ambiente humano agradável 66.7 2 73.2 2

Não ser pressionado 24.4 15 32 12

Segurança 64.4 3 61.3 4 Oportunidade de promoção 32 14 36 11 Respeitado 49.6 5 39.4 10 Bom horário 43.9 9 47.8 8 Ter iniciativa 35.4 13 48.8 7 Útil à sociedade 51.5 4 39.4 10

Bons períodos de férias 37.3 11 28.9 13

Contacto com pessoas 35.9 12 47.8 8

Realização 48.1 6 55.5 5

Trabalho com responsabilidade 42.3 10 47 9

Trabalho interessante 45 8 63.3 3

Uso de capacidades 46.5 7 55.2 6

Fonte: European Values Study in, VALA, Jorge, CABRAL, Manuel Villaverde e RAMOS, Alice (2003)

Se por condições de trabalho forem considerados aspectos relacionados com a remuneração, a segurança, o horário de trabalho e as férias, verifica-se que no seu conjunto estes são aspectos com uma forte saliência. É ainda de salientar que os aspectos relacionados com a utilidade social do trabalho, o desempenho de uma actividade respeitada e de responsabilidade (aspectos referidos por 51.5%, 49.6% e 42.3% dos inquiridos, respectivamente) tornam patente a importância do trabalho enquanto contexto de sociabilidade e factor estruturador da identidade, dado serem valores associados ao estatuto e reconhecimento social.

Quadro 9

Percentagem e ordem de saliência dos valores do trabalho, em Portugal 1990-1999 Portugal 1990 Portugal 1999 Valores do trabalho

% Ordenação relativa % Ordenação relativa

Ser bem pago 79.5 1 80.2 1

Ambiente humano agradável 77.1 2 66.7 2

Não ser pressionado 36.8 15 24.4 15

Segurança 70.3 3 64.4 3 Oportunidade de promoção 50.3 12 32 14 Respeitado 59.1 5 49.6 5 Bom horário 55.1 8 43.9 9 Ter iniciativa 52.4 11 35.4 13 Útil à sociedade 56 7 51.5 4

Bons períodos de férias 45.4 14 37.3 11

Contacto com pessoas 52.8 10 35.9 12

Realização 64.3 4 48.1 6

Trabalho com responsabilidade 53.2 9 42.3 10

Trabalho interessante 49.2 13 45 8

Uso de capacidades 56.6 6 46.5 7

Fonte: European Values Study in, VALA, Jorge, CABRAL, Manuel Villaverde e RAMOS, Alice (2003)

Se relativamente aos três valores mais salientes não se verificou qualquer alteração entre 1990 e 1999, houve algumas alterações na ordenação relativa das prioridades valorativas dos portugueses, nomeadamente no que respeita: à utilidade social do trabalho, aos períodos de férias, à realização através do trabalho e ao desempenho de uma actividade interessante.

A questão da valorização individual da iniciativa no trabalho merece particular atenção. Num contexto em que o mercado de trabalho impõe cada vez maiores exigências ao indivíduo em termos de proactividade, de autonomia, de criatividade e de capacidade de resolução de problemas; e que as novas modalidade de trabalho fazem emergir questões relacionadas com a flexibilidade numérica (marcando a distância relativamente a valores de estabilidade e segurança); é o valor «ter iniciativa» que apresenta a maior queda em termos de ordenação relativa dos valores associados ao trabalho. Não obstante a rápida modernização da sociedade portuguesa, estes valores espelham, relativamente ao trabalho, a ainda dominância de valores de índole materialista.

Um outro paradoxo na análise dos valores «uso de capacidades» e «realização». Associado à dimensão do desenvolvimento pessoal e profissional, não deixa de ser interessante verificar que, também aqui, os valores dos portugueses

tendem a afastar-se de uma das principais exigências do mercado de trabalho – a aprendizagem ao longo da vida.

É esta dinâmica tensional, entre valores individuais e evolução do mercado de trabalho, que se destaca na evolução verificada entre 1990-99, em Portugal.

Por outro lado, a saliência de valores marcadamente materialistas face ao trabalho (remuneração e segurança), não traduz necessariamente um recuo das prioridades valorativas de índole pós-materialistas, mas antes um reajuste valorativo que decorre de uma conjuntura económica permeada por tendências recessivas, das mutações e segmentações do mercado de trabalho e da crescente instabilidade ao nível das relações sociais. Castel (2003) fala-nos de uma nova questão social decorrente do paradoxo que resulta do facto de ser “exactamente no momento em que os atributos vinculados ao trabalho para caracterizar o status que situa e classifica um indivíduo na sociedade pareciam ter-se imposto definitivamente, (...) que essa centralidade do trabalho é brutalmente recolocada em questão” (Castel, 2001: 496), ganhando cada vez maior saliência as problemáticas associadas ao desemprego, à ausência de emprego, à precariedade, à vulnerabilidade e à perenidade e progressiva dissolução das relações sociais.

Remetendo estas questões para os resultados obtidos através dos questionários, verifica-se a validade da hipótese da socialização. Na realidade, os inquiridos tiveram um percurso marcado pela precariedade dos recursos disponíveis. A conjuntura socio-económica que marcou o processo de desenvolvimento dos inquiridos, conjugado com variáveis sócio-familiares determinaram a formação do seu habitus e condicionaram as suas práticas e as suas histórias de vida, conduzindo a um processo de consolidação de um quadro valorativo de natureza materialista.

Os baixos níveis de escolaridade dos pais e os sectores de actividade em que trabalhavam (prevalência do sector da construção para os pais e da indústria transformadora para as mães); o abandono escolar e a entrada precoce no mercado de trabalho, determinada em 39% dos inquiridos por dificuldades financeiras da família e em 29.6% pelo desejo de alcançar autonomia financeira, a par da instabilidade dos percursos profissionais (55.7% dos inquiridos já teve mais de quatro empregos), traduz-se numa forte valorização de valores associados à dimensão instrumental do trabalho como: ser bem pago e ter um emprego estável. A dimensão relacional, patente na valorização do bom ambiente de trabalho e do reconhecimento social que advém do exercício de uma actividade profissional, traduz o reconhecimento da importância do trabalho na definição do lugar social de cada um.

Quando questionados sobre os valores do trabalho que valorizam (tendo por referência os valores do European Values Study), torna-se saliente a não significância dos valores pós materialistas para os inquiridos. Isto verifica-se pela desvalorização de competências como a autonomia, a criatividade e a responsabilidade, e de necessidades como a realização pessoal e a possibilidade de progressão na carreira. Ora, mais uma vez se questiona a adequabilidade dos perfis de competências dos inquiridos, às actuais exigências do mercado de trabalho.

Gráfico 8 Os valores do trabalho (%) 83,3% 83,3% 38,9% 79,6% 24,1% 64,8% 61,1% 27,8% 48,1% 13,0% 44,4% 38,9% 34,5% 33,3% 44,4%

Ser bem pago Bom ambiente de trabalho Não ser pressionado Emprego estável Oportunidades de promoção Trabalho respeitado Um bom horário Ter iniciativa Trabalho útil Bons períodos de férias Contacto com pessoas Sentimento de realização Responsabilidade Trabalho interessante Usar as minhas capacidades

(N=54)

Fonte: Inquérito aos beneficiários de RSI, acompanhados na Loja de Emprego de Matosinhos