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2.1 Estruturas multiplicativas e raciocínio proporcional

2.1.4 Raciocínio proporcional

Segundo Lesh, Post e Behr (1988) e Cramer e Post (1993) o raciocínio proporcional é uma forma de raciocínio matemático que permite resolver vários problemas, quer do mundo real, quer da própria Matemática. Os fatores envolvidos na definição de raciocínio proporcional são complexos e, como tal, na opinião de Cramer e Post (1993), raciocinar proporcionalmente envolve: (1) ter conhecimento das características matemáticas de si- tuações de proporcionalidade; (2) ser capaz de diferenciar as características matemáticas do raciocínio proporcional em contextos não proporcionais; (3) compreender exemplos de situações proporcionais quer na vida real, quer na Matemática; (4) perceber que podem ser utilizados vários métodos na resolução de tarefas de proporcionalidade e que estes se relacionam entre si; (5) ter conhecimento de como resolver tarefas quantitativas e quali- tativas de proporcionalidade; e (6) não ser influenciado pelo contexto dos números na tarefa.

Os autores consideram o primeiro dos pontos anteriores como o mais importante e real- çam quatro características matemáticas a ter em atenção em qualquer situação de propor- cionalidade. A primeira característica é a existência de uma relação multiplicativa entre as quantidades envolvidas. Raciocinar de forma proporcional é compreender a relação multiplicativa entre a razão base e a situação proporcional à qual é aplicada. O que signi- fica, de algum modo, estar apto a efetuar comparações, em termos multiplicativos, entre entidades (grandezas, quantidades) e também a usar a linguagem multiplicativa. Estas relações multiplicativas podem ser exploradas através de tabelas, expressões algébricas e representações gráficas. A segunda característica a realçar em todas as situações de pro- porcionalidade é que as relações numéricas entre as quantidades envolvidas, x e y, podem ser representadas através de uma equação do tipo y = mx, onde m é o fator constante que as relaciona, m ≠ 0. A terceira característica é a representação gráfica da situação: uma

reta que passa na origem. Assim, todos os pares ordenados considerados numa situação de proporcionalidade representam pontos que se situam numa linha reta que passa na origem. Se as situações de proporcionalidade forem baseadas em situações da vida real estas retas têm sempre declive positivo. A quarta característica surge quando se conside- ram razões que relacionam duas quantidades e se constata que todas representam um mesmo número, m, que é o fator constante identificado na relação y = mx e que corres- ponde também ao declive da reta. Estas razões podem assim ser consideradas frações equivalentes uma vez que todas representam o mesmo número. É esta característica es- pecial da relação de equivalência de frações, traduzida pela igualdade de razões, que pos- sibilita a utilização do algoritmo do produto cruzado para a resolução de problemas de proporcionalidade, mais especificamente de problemas de proporções.

Lamon (1993a, 1993b) tem por objetivo identificar os mecanismos que permitem eviden- ciar um progressivo desenvolvimento do raciocínio na resolução de tarefas de proporcio- nalidade, principalmente através de duas componentes matemáticas: pensamento relativo e unitizing (capacidade de construir uma unidade de referência ou uma unidade inteira e depois reinterpretar a situação em termos dessa unidade). Considera quatro tipos diferen- tes de problemas que variam consoante a sua semântica e que normalmente podem ser organizados através de uma proporção.

Problemas tipo 1 (Medidas bem conhecidas (well-chunked measures, no original)) englo- bam a comparação de duas medidas extensivas, resultando numa terceira medida inten- siva. Expressam relações que são entidades bem conhecidas ou razões, tais como: a velo- cidade (razão entre o número de quilómetros e o número de horas); o preço unitário (razão entre o número de itens e a quantidade de euros). Por exemplo: O José percorreu 156 km

no seu carro e gastou 6 l de gasolina. Com este consumo é possível ele percorrer 561 km quando tem o depósito do seu carro cheio com 21 l de gasolina?

Problemas tipo 2 (Parte-parte-todo), neste contexto, a medida extensiva (cardinal) de um subconjunto do todo é indicada em termos dos cardinais de dois ou mais subconjuntos que compõem esse todo. Por exemplo: Numa turma a professora coloca os seus alunos

em grupos de 5. Cada grupo tem 3 raparigas. Se a professora tem 25 alunos, quantas raparigas e quantos rapazes tem na turma?

caixas; …), mas que o são no contexto do problema. Por exemplo: A Helena, o João e o

Henrique compraram 3 balões e pagaram 2€. Decidiram voltar à loja e comprar balões suficientes para cada um dos colegas da turma. Quanto pagaram por 24 balões?

Problemas tipo 4 (Ampliação e redução) surgem quando, num contexto contínuo, é pre- servada uma relação um a um, mapping, entre duas quantidades que representam uma característica específica de um elemento, tais como a altura, o comprimento ou a largura, ou entre duas quantidades representando duas características de um elemento (compri- mento e largura) e a situação envolve aumentar a escala (ampliação) ou reduzir a escala (redução). Por exemplo: Uma fotografia de 6 cm por 8 cm foi ampliada de tal forma que

a largura se alterou de 8 cm para 12 cm. Qual é o comprimento da nova fotografia?

Em cada um destes tipos de problemas promove-se uma estratégia de resolução diferente, dependendo do nível de compreensão do raciocínio proporcional de quem os resolve. Lamon (1993b) analisa e codifica as estratégias de resolução dos alunos, que até esse momento não tinham tido qualquer contacto formal com os conceitos de razão e propor- ção, em termos de componentes matemáticas: relação em termos absolutos ou relativos, tipo de representação (verbal, pictórica e em tabela), estrutura quantitativa (unidade sim- ples e composição de unidades) e sofisticação da estratégia (estratégia incorreta, raciocí- nio pré-proporcional, raciocínio proporcional qualitativo e raciocínio proporcional quan- titativo). Para ela, o raciocínio pré-proporcional inclui métodos informais que resultam em respostas corretas, mas sem compreensão das relações escalar e funcional. O raciocí- nio proporcional qualitativo é o primeiro nível em que a razão é usada como uma unidade, a relação é pensada em termos relativos e são compreendidas algumas relações numéri- cas. No raciocínio proporcional quantitativo é utilizada a simbologia algébrica para re- presentar as proporções com uma compreensão total das relações escalar e funcional. Ge- nericamente, o raciocínio proporcional ocorre quando o aluno demonstra compreensão pela equivalência de razões escalares apropriadas e pela invariância da razão funcional entre dois espaços de medida, sendo ou não capaz de as traduzir simbolicamente.

Lamon (1993b) conclui que a capacidade de pensar em termos relativos e a capacidade de conceber uma razão como uma nova entidade à parte das duas quantidades que a com- põem são duas dimensões muito próximas no desenvolvimento do raciocínio proporcio- nal. Os alunos que demonstraram um raciocínio mais sofisticado na resolução dos pro- blemas de um qualquer dos tipos mencionados foram aqueles que também demonstraram

um melhor desempenho em ambos os processos. A emergência da capacidade de racio- cinar em termos relativos parece ser um sinal de que os alunos começam a fazer a ponte entre as estruturas aditivas e multiplicativas. Os alunos não podem verdadeiramente com- preender as relações escalar e funcional inerentes à razão e à proporção, até que não per- cebam a natureza multiplicativa das situações que as envolvem. É por isso que lhes devem ser propostas tarefas que evidenciem a necessidade de uma comparação relativa, que pos- sam ser tidas não só como uma referência na resolução de novas situações como também lhes despertem o sentido crítico perante o ser, ou não, apropriado pensar daquela forma. Os resultados desta investigação sugerem também que é proveitoso os alunos considera- rem uma razão como uma unidade, como resultado de múltiplas composições de unidades compostas. Isto permite considerar a razão como um prosseguimento natural do processo de composição de unidades extensivas, permitindo uma outra ligação entre estruturas e processos matemáticos já conhecidos e o campo multiplicativo mais complexo.

Lamon (1993b) e Langrall e Swafford (2000) defendem que o ensino da proporcionali- dade deve começar pela resolução e exploração de situações informais que vão progre- dindo em complexidade, até à resolução formal, a determinação numérica de um dos ter- mos da proporção. Em concreto, devem explorar-se primeiramente situações não numéricas em contextos diversificados, onde se solicita ao aluno que expresse a sua in- terpretação do que lhe é proposto e das relações entre as várias variáveis envolvidas. Deve ser permitida a utilização de materiais manipuláveis assim como incentivada a exploração e interpretação de esquemas antes de se abordarem outras questões mais difíceis de mo- delar. Este tipo de abordagem ajuda o aluno a construir, através do seu raciocínio infor- mal, uma melhor compreensão de como é que as duas quantidades em cada uma das ra- zões da proporção variam juntas, isto é, covariam. As situações numéricas devem surgir num momento posterior, mas ainda em situações similares às anteriores. O aluno deve ser incentivado a usar o seu sentido proporcional, entendido como “a capacidade de racioci- nar acerca de quantidades e das várias relações que estas quantidades partilham numa situação de proporcionalidade” (Billings, 2001, p. 11), em resposta a questões apropria- das. Só depois de refletir sobre as várias relações é que deve ser encaminhado para pensar sobre uma estratégia apropriada para resolver a questão e que permita determinar exata- mente o valor da incógnita em falta. É um processo que se vai tornando habitual e que leva os próprios alunos a formular questões sobre as relações de proporcionalidade e a

Na investigação que efetuaram e na literatura revista, Langrall e Swafford (2000) identi- ficam, na linha do que Lamon (1993a, 1993b) discute, quatro níveis diferentes de estra- tégias de raciocínio proporcional utilizado pelos alunos. No nível 0 – não existe raciocínio proporcional – os alunos utilizam estratégias caracterizadas por comparações aditivas em vez de multiplicativas ou pelo uso aleatório de números e operações. Este tipo de estraté- gia não leva à solução correta nem ao desenvolvimento de um raciocínio proporcional. No nível 1 – raciocínio informal sobre as situações de proporcionalidade – os alunos pen- sam sobre os problemas de uma maneira produtiva, usando materiais, desenhos ou outros modelos para que a situação lhes faça sentido. No nível 2 – raciocínio quantitativo – os alunos utilizam um raciocínio quantitativo, mas sem o apoio de qualquer tipo de material ou então ligam os seus modelos com os cálculos que efetuam. Finalmente, no nível 3 – raciocínio proporcional formal – os alunos podem definir uma proporção usando uma variável e determinar o seu valor através do produto cruzado ou da equivalência de fra- ções, com total compreensão da estrutura relacional que existe. Os alunos devem com- preender que a relação entre as duas quantidades continua a mesma, isto é, é invariante, enquanto as duas quantidades de cada razão variam juntas, ou seja, covariam.

Da conclusão desta investigação ressalta, mais uma vez, a ideia que existem quatro pré- requisitos para o raciocínio proporcional formal, o que pode ajudar a explicar algumas das dificuldades sentidas pelos alunos. Em primeiro lugar, os alunos devem reconhecer a diferença entre uma modificação absoluta ou aditiva (altera o valor inicial através de um valor absoluto ou fixo) e uma modificação relativa ou multiplicativa (altera o valor inicial por uma quantidade relativa que lhe está relacionada). A modificação relativa é multipli- cativa uma vez que o valor da alteração determina-se multiplicando a quantidade original pela razão. Os alunos tendem naturalmente a considerar situações de mudança em termos aditivos, mas quando questionados por meio de perguntas específicas, podem vir a discu- tir essas situações, tanto em termos aditivos como multiplicativos. Em segundo lugar, é necessário que os alunos reconheçam situações onde uma comparação e a utilização de uma razão é razoável ou apropriada. Estas situações, tal como já foi referido, devem surgir antes de ser solicitada a resolução de problemas em que implicitamente se tem que deter- minar um termo desconhecido numa proporção. Em terceiro lugar, é essencial que os alunos compreendam que as quantidades que originam uma razão covariam no sentido de que a relação entre elas permanece invariável. Os alunos têm tendência a encarar os pro- blemas partindo do princípio que as quantidades ou são as mesmas ou são diferentes. No

entanto, muitas razões com valores diferentes podem ser proporcionais, uma vez que a relação multiplicativa entre os números implicados é a mesma. Por último, é essencial que os alunos sejam capazes de construir estruturas unitárias cada vez mais complexas – processo de unitizing. De facto, o raciocínio proporcional quantitativo surge quando se escolhe uma razão como unidade (uma unidade composta, Lamon, 1993b; Lobato et al., 2010) e se usa essa unidade para construir ou medir outra. Assim, os alunos devem ser confrontados com situações que estimulem o processo de unitizing e ser encaminhados para que redefinam o todo no maior número possível de unidades diferentes.

Também com preocupações orientadas para o processo de ensino e aprendizagem dos alunos, Silvestre e Ponte (2012) propõem realçar três aspetos importantes na capacidade de raciocínio proporcional: o primeiro refere-se à distinção que é necessário dominar en- tre situações de proporcionalidade e situações de não proporcionalidade; o segundo diz respeito à compreensão da natureza multiplicativa inerente às relações de proporcionali- dade; e o terceiro relaciona-se com a capacidade de resolução de diferentes tipos de pro- blemas onde é revelada flexibilidade no uso de diversas abordagens, que não devem ser influenciadas pelos contextos, pelos dados e pelas representações. Silvestre (2012) ana- lisa o modo como os alunos abordam tarefas incluídas numa unidade de ensino explora- tória e conclui que o desenvolvimento do raciocínio proporcional dos alunos parece estar relacionado com o trabalho realizado em torno da exploração de tarefas. Estas tarefas evidenciam a natureza multiplicativa da proporcionalidade e incentivam o uso de múlti- plas representações.

A complexidade do raciocínio proporcional revela-se quer em termos dos conceitos ma- temáticos subjacentes, quer em termos das experiências de aprendizagem necessárias à sua compreensão. Vários autores defendem, por isso, que deve ser desenvolvido durante um longo período de tempo e não num único ponto ou capítulo do programa (NRC, 2001). As suas conexões com a Geometria, os números racionais, incluindo frações, decimais, percentagens, escalas, razões e proporções e com muitos outros tópicos matemáticos, e também porque parece ser fundamental para o desenvolvimento do raciocínio algébrico, mostram que deve ser um tema unificador no decorrer dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. Abrantes, Serrazina e Oliveira (1999) especificam aspetos a ter em atenção, a nível do 2.º ciclo do ensino básico, “o reconhecimento de situações de proporcionalidade directa e a aptidão para usar o raciocínio proporcional em problemas diversos” (p. 65). Miller e Fey

longe e referem a importância do contexto nos problemas de proporcionalidade, onde as conexões com situações conhecidas do dia a dia dos alunos os tornam mais acessíveis. Embora os investigadores em educação tenham consciência que o raciocínio proporcional é complexo, Lamon (2007) refere que nos livros de texto, nos processos de avaliação em larga escala e na investigação, o domínio da razão e da proporção tem sido definido tra- dicionalmente em termos de dois problemas tipo: (a) problemas de comparação em que são indicados quatro valores e o objetivo é comparar as razões consideradas. Por exemplo:

O João faz concentrado de limonada misturando 3 colheres de açúcar com 12 colheres de sumo de limão. A Maria, por sua vez, faz concentrado de limonada juntando 5 colheres de açúcar e 20 de sumo de limão. Qual dos dois concentrados é mais doce? Ou têm ambos o mesmo sabor?; (b) problemas de valor omisso em que são indicados três dos quatro

valores numa proporção e o objetivo é determinar o valor em falta. Um exemplo: A fór-

mula para a obtenção de um certo tom de tinta azul resulta de misturar 2 partes de tinta azul e 3 de tinta branca. Com esta razão, que quantidade de tinta branca é necessária se foram utilizadas 9 partes de tinta azul?. Vários processos de resolução podem ser admi-

tidos quer num problema quer no outro. No entanto, no primeiro a ênfase centra-se muitas vezes em encontrar o valor de cada uma das razões e perceber que, neste caso, represen- tam o mesmo número racional e, como tal, os concentrados têm o mesmo sabor. No se- gundo problema, o enfoque é geralmente a tradução algébrica da situação e a sua resolu- ção algorítmica.

Globalmente, para definir raciocínio proporcional, os autores analisados baseiam-se quer nas características matemáticas do conceito de proporcionalidade, quer nos diferentes ti- pos de problemas e distintos processos de resolução. Defendem que o raciocínio propor- cional é essencial para a resolução de muitas situações tanto do dia a dia como da própria Matemática, serve de base a raciocínios mais elaborados e desenvolve-se através da re- solução de tarefas apropriadas, ao longo de vários anos de escolaridade. Também, como foi referido anteriormente, o desenvolvimento do raciocínio proporcional depende da compreensão profunda de tópicos anteriormente trabalhados, como seja o caso das ope- rações multiplicação e divisão, é uma consequência da compreensão da natureza dos nú- meros racionais e é promovido através de uma compreensão conceptual de razão e de proporção. Estes conceitos são complexos e difíceis e representam um desafio quer a nível do ensino quer da aprendizagem.