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RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES PRODUTIVAS

2 A BUSCA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA

T EORIA S UBSTANTIVA (G UERREIRO R AMOS ) A ÇÃO C OMUNICATIVA (H ABERMAS )

2.5 RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES PRODUTIVAS

Só o constante recurso a uma ética universal pode produzir uma nova perspectiva de solidariedade e de obrigações comunitárias para um ambiente de trabalho mais justo. Paulo Roberto Motta (1999b: 19)

Anteriormente à apresentação do tema propriamente dito, convém esclarecer o entendimento de Serva sobre organizações produtivas. Para o autor, o que caracteriza uma organização como produtiva é o atendimento a cada um dos seguintes critérios:

a) transacional: característica inerente a um sistema social aberto que estabelece um fluxo de trocas com o ambiente. A organização produz bens e/ou serviços que são disponibilizados à comunidade que, em contrapartida a recompensa. Serva, alerta que a contrapartida não se dá necessariamente em termos financeiros: “a transferência/prestação pode ser compensada pelo pagamento em dinheiro, em serviços, em comportamentos esperados, ou até não haver absolutamente nenhuma

espécie de compensação denotando, assim, a gratuidade da transação” (1996:278);

b) profissional: “pelo menos algumas das principais atividades-fim da organização, diretamente relacionadas às transações definidas acima, devem ser objeto do trabalho de profissionais” (Serva, 1996:278). Por profissional, entende-se aquele que se ocupa de atividade especializada; c) total visibilidade da ação social: “a organização produtiva permite a

visibilidade das suas ações face ao meio ambiente social. Não se trata de organizações secretas” (Serva, 1996:279);

d) cadastramento oficial: “possuem registros em instituições oficiais, determinando a sua personalidade jurídica e a sua razão social” (Serva, 1996:279), que reflitam com exatidão o que realmente realizam;

e) legalidade das operações: “as organizações produtivas não são entidades que desenvolvam atividades estabelecidas em lei como crime ou contravenção penal” (Serva, 1996:279);

f) atividade-fim não-parlamentar e não-religiosa: “as organizações produtivas não têm como atividade-fim a ação política definida no quadro de um parlamento, seja de nível municipal, estadual ou federal, [...] também não são organizações que desenvolvam prioritariamente atividades religiosas” (Serva, 1996:279).

A importância da análise crítica sobre a práxis de uma organização da espécie reside na parcela de responsabilidade que elas têm no aprofundamento da crise, mencionada na introdução deste capítulo.

Esta afirmação é defendida por Serva (1997a:108-110), que apresenta com duas principais evidências:

- o fato de que se vive atualmente em uma “sociedade de organizações, onde a sobrevivência dessas organizações é prioritária em relação à própria sobrevivência dos indivíduos”;

- e a crise no âmbito do trabalho, cujos reflexos negativos sobre o indivíduo se potencializam pelo fato de a sociedade industrial ter superestimado o valor social do trabalho (que por sua vez é baseado no modelo fabril). Neste modelo burocratizante, o valor do indivíduo para a sociedade decorre da detenção de um emprego, do seu status e de sua performance, sendo a busca da autorealização colocada em segundo plano. Surgem outros adjetivos para a sociedade em que se vive: “sociedade do trabalho” e “sociedade do produtivismo”.

Com relação à esta última constatação, cabe reproduzir o comentário de Guerreiro Ramos (1998:99): “se uma pessoa permite que a organização se torne a referência primordial de sua existência, perde o contato com sua verdadeira individualidade e, em vez disso, adapta-se a uma realidade fabricada.”

Se dentro da organização o indivíduo é reificado, fora torna-se sem valor para a sociedade. De forma ainda mais condenável, essa racionalidade de fundamentação econômica, acaba, como decorrência natural de sua utilização, suprimindo esses mesmos empregos como resposta aos imperativos da competitividade empresarial e da busca da eficiência e eficácia, desprovida de julgamentos éticos.

O resultado é desastroso, a mesma lógica que confere “identidade” ao sujeito ao dotá-lo de um emprego, mesmo que dentro de uma concepção inadequada, acaba por negar esta identidade ao retirá-lo, desvalorizando-o perante a sociedade.

Para Guerreiro Ramos (1989), as ciências sociais em geral e a teoria administrativa em particular vêm contribuindo para legitimar o atual estado de descaso com o potencial humano, na medida em que se baseiam na concepção moderna de razão, voltada exclusivamente para o cálculo da eficiência e eficácia na busca incondicional de elevados níveis de produtividade:

“A teoria da organização, tal como tem prevalecido, é ingênua. Assume este caráter porque se baseia na racionalidade instrumental inerente à ciência social dominante no Ocidente” (Guerreiro Ramos, 1989:1).

“A ciência é parte das forças de produção, o que torna possível a constante atualização ou modernização dos sistemas produtivos. Daí por que boa parte da atual pesquisa social empírica, principalmente no campo da administração e da engenharia de produção, está intimamente ligada ao pragmatismo de mercado, sendo os seus métodos e técnicas moldados de acordo com o determinismo de mercado”(Tenório, 2000a:38).

Como conseqüência, a teoria organizacional corrente teria uma série de pontos cegos, na medida em que (Guerreiro Ramos, 1989:121):

- “consideram o comportamento econômico como constituinte da totalidade da natureza humana e as organizações econômicas formais como o referencial a partir do qual devam ser estudadas todas as demais formas de organização”;

- “não tem clara compreensão do papel da interação simbólica32, no

conjunto dos relacionamentos interpessoais”;

- “apóia-se numa visão mecanomórfica33 da atividade produtiva do

homem”.

Serva (1996), enfatiza a necessidade de que as teorias organizacionais sejam reformuladas a partir de novas práticas sociais que considerem as dimensões da presente

32 “Uma sociedade é formada quando representa para seus membros uma expressão da ordem do

universo. Toda sociedade parece natural a seus membros na medida em que, pela adesão a seus símbolos e pela confiança em seus padrões, sintam eles a própria existência como alguma coisa que se harmoniza com aquela ordem” (Guerreiro Ramos, 1989:126)

33 Aqui Guerreiro Ramos faz a distinção entre trabalho e ocupação. “Trabalho é a prática de um esforço

subordinada às necessidades objetivas inerentes ao processo de produção em si. A ocupação é a prática de esforços livremente produzidos pelo indivíduo em busca de sua atualização pessoal” (Guerreiro Ramos, 1989:130)

crise e aponta o debate sobre a racionalidade vigente nas organizações como um dos caminhos:

“Voltamos a lembrar que uma das instâncias últimas de argumentação das práticas socialmente cegas da dita gestão moderna é a busca da racionalidade; é ela que fundamenta as receitas difundidas para o alcance da eficiência e da eficácia administrativas. Aprofundar o debate sobre a racionalidade no seio das organizações produtivas é ir no âmago de questões de grande envergadura na atualidade” (Serva,1997a:110).

Carbone (1991), inspirado pela teoria de Guerreiro Ramos, aponta algumas das conseqüências oriundas de uma racionalidade administrativa que se fixe apenas em um referencial econômico, que considere o elemento humano apenas como mera engrenagem do processo organizacional34:

“[...] atitudes que desconsideram o ser humano como parte ativa e integrante de um processo organizacional – como por exemplo a própria prática do autoritarismo – não se sustentam ao longo do tempo, produzindo inevitavelmente, dentro das organizações, o descontentamento, a insatisfação generalizada e, consequentemente, a ineficiência e a ineficácia (Carbone, 1991:91).

É o que pensa Serva (1997b:19). Para o autor, o ambiente organizacional “tornou-se propício aos abusos do poder, à dominação, ao mascaramento de intenções pela substituição da verdadeira comunicação humana por padrões informativos”.

A pergunta que fica é se é possível uma mudança neste estado de coisas. Guerreiro Ramos entendia que sim. Como anteriormente mencionado, uma abordagem substantiva da teoria organizacional estaria interessada em buscar, mesmo onde a racionalidade substantiva não seja predominante, “meios viáveis de redução, e mesmo

34 Interessante fazer um paralelo com a noção de ação instrumental de Habermas. Para este autor, a ação

instrumental é uma ação não social, voltada à interação com coisas ou objetos. Esse é o princípio do uso preferencial da racionalidade instrumental nas práticas administrativas de uma organização, pois os trabalhadores passam a ser considerados como recursos a serem disponibilizados da melhor maneira possível de forma a se obter um nível ótimo de produtividade.

de eliminação, de descontentamentos e com o aumento da satisfação pessoal” (Guerreiro Ramos, 1989:135) dos seus membros.

Serva verificou que existem organizações que mesmo submetidas a um mercado competitivo atuam de modo substantivo, permitindo aos seus membros “estabelecerem relações gratificantes entre si, alcançar níveis consideráveis de autorealização e embasar-se numa lógica não utilitária” (Serva, 1996:587).

Tenório possui uma abordagem semelhante ao estudar a flexibilização organizacional nas organizações produtivas:

“Verificamos que a saída poderá ser feita através da compreensão intersubjetiva do pós-fordismo, no qual o interesse social direcione o interesse técnico, a consciência crítica ‘elimine’ a falsa consciência. E essa situação somente será viável se e somente se a gestão da produção, tal como se tem apresentado, afastar-se da perspectiva gerencial monológica em direção à dialógica, processo no qual a razão instrumental, consequentemente o mundo do trabalho, ‘seja sacrificada’ em prol da razão comunicativa, do mundo da vida” (2000a:337).

Face ao exposto, verifica-se que não se trata de absurdo o fato de poder se conceber organizações que mesmo estando inseridas em mercado competitivo tem suas práticas administrativas pautadas pela racionalidade substantiva/comunicativa, permitindo que seus membros alcancem níveis consideráveis de autorealização, como verificado pelos autores anteriormente citados.

Se existe esta possibilidade dentro de um ambiente competitivo, não deveria ser estranho poder afirmar que os valores emancipatórios deveriam ser os referenciais maiores para o estabelecimento da lógica de funcionamento interno das organizações do terceiro setor, já que se inserem em um meio onde se busca o atingimento de objetivos voltados para o bem comum, mediante a emancipação do homem, seja das necessidades físicas, seja das opressões sociais. Estas organizações, por coerência, deveriam estar atentas para que esse ideal de emancipação prevalecesse inclusive em seu interior. Este é o assunto que se pretende desenvolver no próximo capítulo.