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Em suma, o recorrente espera que seja reformado o acórdão recorrido, para reimplantar o julgamento proferido

em sede de recurso de apelação, objetivando a desconstituição

da paternidade, e em consequencia disso, o cancelamento do

registro do menor.

A nobre ministra do STJ, Nancy Andrighi, no julgamento

do REsp 450566/RS, recurso especial, n. 2002/0092020-3, decidiu

que:

“I. Da delimitação da lide e de seus contornos fáticos

Cinge-se a lide a analisar se a ausência do vínculo bio-lógico – e a ciência dessa ausência – em reconhecimento voluntário de filho é elemento capaz de revogar a livre manifestação da vontade, com a peculiaridade de já ter ocorrido o óbito daquele que reconheceu a paternidade da criança, com a qual estabeleceu relação socioafetiva, conforme descrito no acórdão recorrido, sob base fática infensa a reexame desta Corte.

A criança, contudo, com 11 (onze) anos de idade veio a falecer de maneira trágica no curso do processo, o qual foi suspenso, retornando conclusos os autos após a regular substituição processual no polo passivo, pela mãe do menor e ex-companheira do pai.

Sustentam os recorrentes, filhos do primeiro casamento de O. A. B., que este manteve relacionamento com a mãe de F. F. B., em cuja constância reconheceu o menor como filho, mesmo ciente da ausência do vínculo biológico. Pugnam pela anulação da escritura pública em que se la-vrou o reconhecimento da paternidade, por não condizer com a verdade genética, bem como a retificação doassento de nascimento do menor, para dele extirpar o nome paterno. Em suas razões recursais, alegam: (i) que o voto vencido em apelação não tratou da paternidade socioafetiva, o que importa em violação ao art. 530 do CPC; (ii) que o

reconhecimento da socioafetividade viola as formas pre-vistas de família substituta, em ofensa aos arts. 25 e 26, do ECA, os quais tratam da família natural; (iii) que apenas o filho biológico pode ser assim reconhecido, de modo que houve afronta ao art. 355 do CC/16 (correspondência: art. 1.607 do CC/02); (iv) que o reconhecimento da pater-nidade, na forma em que ocorreu, constitui crime contra o estado de filiação e de falsidade ideológica, violando, respectivamente, os arts. 242 e 299 do CP.

A fim de delimitar a lide, pinço do acórdão recorrido, as se-guintes considerações dos votos proferidos pelos Desembar-gadores que compuseram o entendimento majoritário: O DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (RELATOR): Nestas condições, não vislumbro dúvida razoável de que o falecido O. nutria sentimento paternal pelo menino F., e que este desfrutava por inteiro da posse do estado de filho, o que é confirmado até mesmo pelas testemunhas trazidas aos autos pelos requerentes.

Como se constata na prova testemunhal antes colacionada (1) O. tratava F. como filho (‘tractatus ‘), (2) essa condição era conhecida por terceiros (‘fama ou reputatio‘) e, ademais, (3) F. usava o apelido do genitor (‘nomen’). Portanto, com repetida vênia da douta maioria do v. acórdão embargado, tenho como inequívoca a caracterização da POSSE DO ESTADO DE FILHO, que legitima, no caso, o reconheci-mento da paternidade socioafetiva (fls. 319/320 – com adaptações).

O DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES:

(...) adiro integralmente à teoria da paternidade socio-afetiva (fl. 321).

A Desª MARIA BERENICE DIAS:

A filiação está reconhecida, – reconhecida como sócio--afetivamente – e, como tal, não pode ser desconstituída pelos outros.

Bem distinguiu o Relator a inadequação da terminologia usada pelos autores na demanda para a finalidade bus-cada. E, aqui, louvo o Relator, que, na apreciação deste processo, se socorreu da moderna doutrina que insere no Direito de Família, os vínculos afetivos como suficientes para gerarem sequelas de ordem jurídica (fl. 322). O DES. RUI PORTANOVA – Estou acolhendo os em-bargos e considero interessante a questão.

Preciso revelar esse meu convencimento porque, na medida em que o pai negava – foi o que trouxe o notório advogado, ao trazer uma apreciação completa do depoimento – a paternidade biológica do filho, em mim, pode ser uma deficiência, reforçava a ideia de que realmente ele fez um reconhecimento por causa de uma filiação socioafetiva. Então, se ele negava, como negava mesmo, a mim mais convence, porque, vejam, aqui o conhecimento funciona numa lógica um tanto inversa.

Não estamos falando de uma forma positivista, legalista e mecanicista de ver o registro; estamos tentando trazer uma questão que não está no plano da razão e da mate-mática, que está no plano da afeição.

E, se eu digo que esse menino não é o meu filho e, mesmo assim, vou lá e digo que é meu filho para fins registrais, então, estou dizendo que ele, apesar de não ser biologica-mente meu filho, ele é meu filho de criação. Ele tem a posse de estado de filho, e por isso o estou reconhecendo. Vejam como a mim toca diferente – certamente tenho uma deficiência por causa dessa situação – mas, em mim, a tentativa de trazer uma prova contra a minha convicção me faz exatamente o contrário, reforça a ideia de que estamos diante de uma paternidade socioafetiva, a des-peito do tempo, aqui não se conta tempo, conta-se afeto, e afeto é uma questão de intensidade e não uma questão temporal (fls. 331/332).

II. Do prequestionamento e do dissídio jurispru-dencial

As matérias jurídicas versadas nos arts. 530 do CPC, 242 e 299 do CP, não foram apreciadas pelo TJ/RS no acórdão recorrido, o que impede a análise da temática inserta nos referidos dispositivos legais.

No tocante ao dissídio jurisprudencial, que se procurou demonstrar apenas acerca da alegada violação ao art. 530 do CPC, não foi comprovado nos moldes legais, o que obsta a análise do recurso especial pela alínea “c”.

Contudo, o prequestionamento dos arts. 355 do CC/16 (correspondência: art. 1.607 do CC/02), 25 e 26, do ECA, abre a via do debate nesta seara especial, do que passo, portanto, à análise do mérito recursal.

III. Do reconhecimento da paternidade socioafetiva e do fato superveniente (arts. 355 do CC/16, 25 e 26, do ECA)

Sob a ótica indeclinável de proteção à criança, do cenário fático descrito no acórdão impugnado subjaz a ausência de vício de consentimento na livre vontade manifestada pelo pai que, mesmo ciente de que o menor não era a ele ligado por vínculo de sangue, reconheceu-o como filho, em decorrência dos laços de afeto que os uniram.

Tudo isso, para fins de salvaguardar o regular desen-volvimento de uma criança, que foi inserida num con-texto construído com base no cuidado e na afetividade, demonstrando-se, assim, inequivocamente, a existência de vínculo familiar.

Nessa ordem de ideias, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser amplamente reconhecida e amparada no âmbito jurídico.

Como fundamento maior a consolidar a acolhida da fi-liação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que

salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e na definição da personalidade da criança.

E a identidade dessa criança, resgatada pelo afeto, não poderia ficar à deriva em face das incertezas, instabilidades ou até mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos familiares.

Ressalta-se, com base em diversos julgados desta Corte, que a garantia de busca da verdade biológica deve ser in-terpretada de forma a evitar que seja subvertida a ordem e a segurança que se quis conferir àquele que investiga sua identidade biológica, nos termos do art. 27 do ECA. O viés da norma deve ser atentamente observado pelo in-térprete, notadamente porque o bem da vida que subjaz tutelado deve ser o mesmo que o legislador concebeu ao redigir o texto legal.

Sob essa perspectiva já foi estabelecido por este Órgão Colegiado, que nas questões em que presente a dissociação entre vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões (REsp 833.712/RS, de minha relatoria, DJ 4.6.2007).

Destacam-se, ainda, dois julgados de minha lavra, nos quais a paternidade socioafetiva foi mantida, ante a ausência de vício de consentimento na manifestação da vontade de reconhecer a filiação, com as seguintes peculiaridades: a) REsp 932.692/DF (DJe 12.2.2009): mesmo diante da inequívoca ciência acerca da ausência de vínculo bioló-gico, o pai reconheceu voluntariamente a paternidade, ato que posteriormente pretendeu anular, mediante a rea-lização, naquele processo, de dois exames de DNA que excluíam a paternidade biológica.

b) REsp 1.067.438/RS (DJe 20.5.2009): mera dúvida do pai “registral” motivou o ajuizamento da negatória de paternidade. Não houve exame de DNA.

Por fim, trago à colação o REsp 1.000.356/SP (DJe 7.6.2010), no qual foi reconhecida a maternidade so-cioafetiva, com base na irrevogabilidade de seu reconhe-cimento voluntário, por força da ausência de vício na manifestação da vontade, ainda que procedida em cons-ciente descompasso com a verdade biológica. Prevaleceu, naquela hipótese, a ligação socioafetiva construída e con-solidada entre mãe e filha, que tem proteção indelével conferida à personalidade humana, por meio da cláusula geral que a tutela e encontra respaldo na preservação da estabilidade familiar.

Todavia, na hipótese específica dos autos, a superveniên-cia do fato jurídico representado pela morte da criança, ocorrido após a interposição do recurso especial, impõe o emprego da norma contida no art. 462 do CPC, porque faz fenecer o direito, que tão somente à criança pertencia, de ser abrigada pela filiação socioafetiva.”

Vale lembrar que o Superior Tribunal de Justiça tem