• Nenhum resultado encontrado

3. O SISTEMA AMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E SEUS ÓRGÃOS

3.1 As Referências do Sistema Interamericano

Resgata a trajetória histórica de construção do processo de internacionalização dos direitos humanos e a contribuição de alguns tribunais no referido processo, o presente capítulo destaca a contribuição dos órgãos do chamado Sistema Interamericano neste processo.

3.1. As Referências do Sistema Interamericano

Como mencionado anteriormente, o instrumento de maior importância do sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos. No entanto, conforme Sidney Guerra (2011, p. 167), “abarca os procedimentos contemplados na Carta de Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana de Direitos Humanos”. Ainda nas palavras do mesmo autor (p. 167),

Por essa razão se costuma afirmar que no âmbito americano existe um sistema duplo de proteção aos direitos humanos: o sistema geral, que é baseado na Carta e na Declaração, e o sistema que abarca apenas os Estados que são signatários da Convenção.

Ramos (2012, p. 186), vai mais além, afirmando que “existem dois círculos concêntricos: um círculo amplo composto pelo sistema da Carta da OEA, com 35 Estados dessa Organização; um círculo menor, composto por 24 Estados que ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos”. Assim sendo, segundo o autor, os dois sistemas dividem a mesma essência, qual seja, a Organização dos Estados Americanos. A diferença entre os dois, segundo ele (2012, p. 186),

Está no compromisso mais denso firmado pelos integrantes do segundo sistema, que conta inclusive com um tribunal especializado em direitos humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (...). Porém, mesmo que um país pertença ao círculo mais estrito da Convenção pode ser avaliado perante o círculo mais amplo, o da Carta da OEA.

Neste trabalho, está presente o objetivo de debruçar-se mais especificamente sobre o sistema que abarca os Estados- partes da Convenção. Esta que foi adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre direitos humanos em San José, na Costa Rica, no dia 22 de novembro do ano de 1969, entrando em vigor, no entanto em 18 de julho 1978 (TRINDADE, 1991). Somente os estados membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) podem aderir à convenção (GUERRA,

2011). O Brasil ratificou a Convenção apenas em setembro de 1992 (PIOVESAN, 2000).

Quanto à ratificação brasileira, importante informação nos traz Comparato (2001, p. 364), ao mencionar que a aderência brasileira à Convenção, ocorreu em 25 de setembro de 1992. Segundo Ramos (2012, p. 203), “a mensagem presidencial solicitando a aprovação do Congresso Nacional (art. 49, I) foi encaminhada pelo Presidente José Sarney, em 1985”. No entanto, o Brasil aderiu, ressalvando a cláusula facultativa do art. 45, 1º, que trata da Competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para examinar denúncias apresentadas, bem como à jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, constante na cláusula facultativa do art. 62, 1º da Convenção.

Destaca André Carvalho Ramos (2012, p. 203):

No momento da celebração, o Brasil fez a seguinte declaração interpretativa: “O Governo do Brasil entende que os artigos 43 e 48 alínea d, não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão de anuência expressa do Estado”.

Essa atitude demonstra a preocupação brasileira com o monitoramento internacional em relação aos Direitos Humanos, a qual ainda impediu o reconhecimento da Jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que o Estado Brasileiro pode ratificar a Convenção, mas sem reconhecer a jurisdição da Corte. O reconhecimento da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu somente em dezembro de 1998, no segundo governo Fernando Henrique, mas somente para o julgamento de fatos ocorridos a partir de tal reconhecimento (RAMOS, 2012, p. 203).

Apesar da lentidão brasileira quanto à ratificação, que em parte é explicada pelo processo de transição política decorrente ainda do Golpe de Estado de 1964, o Brasil sentiu-se pressionado por diversos casos de graves violações aos direitos humanos, já na era da democracia. André de Carvalho Ramos (2012, p. 204) cita alguns casos. Entre eles, o caso Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996,quando dezenove pessoas foram mortas durante uma ação policial, do Estado do Pará naquele município, também o famoso “Massacre do Carandiru”, ocorrido em 1992, quando a Polícia Militar de São Paulo invadiu o Presídio do Carandiru durante uma rebelião e matou 111 presos. Outro episódio marcante foi o Massacre do Corumbiara, ocorrido em 1995 no município de mesmo nome, no estado de Rondônia, que resultou na morte de 12

pessoas, durante confronto entre policiais e trabalhadores sem terra. Após os tristes acontecimentos, como mencionado, o Brasil viu-se na obrigação legitimadora de dar respostas (RAMOS, 2012, p. 204).

Todos os Estados que aderiram à Convenção, reafirmaram o compromisso de “consolidar no continente americano um regime de liberdade pessoal e de justiça social fundado no respeito aos direitos humanos essenciais” (GUERRA, 2011, p. 181). A Convenção Americana de Direitos Humanos consagra e assegura uma enorme gama de direitos civis e políticos. Segundo Comparato (2001, p. 364), ela “reproduz a maior parte das declarações de direitos constantes do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966”.

De acordo com Gomes (2000, p 30), destacam-se:

O direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito de não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e de expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do governo, o direito á igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial.

Quanto aos direitos sociais, econômicos e culturais, a Convenção define que os Estados deverão promover medidas para a efetivação desses direitos no domínio interno (GUERRA, 2011, p. 182). Cabe ressaltar por oportuno que, após a Convenção, foi adotado um protocolo Adicional, relativo aos direitos sociais, econômicos e sociais. Tal adoção ocorreu precisamente no ano de 1988. O chamado “Protocolo de San Salvador”, adotou diversos direitos, entre eles: direito ao trabalho, direito à seguridade social, direito à condições equitativas de trabalho, direito à associação sindical, proteção à família, proteção à criança, proteção ao idoso, proteção à cultura, proteção ao meio ambiente equilibrado, além de outros (GUERRA, 2008, p. 115).

Pode-se dizer que os dois primeiros artigos constituem a base da convenção. O primeiro artigo institui a obrigação dos Estados-partes de respeitar os direitos e as liberdades garantidas reconhecidas pela convenção e assegurar o livre e pleno exercício destes direitos e liberdades sem qualquer discriminação de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

Já o segundo artigo afirma o comprometimento dos Estados- partes para que, na hipótese do exercício dos direitos referidos não estarem assegurados por previsões

legislativas de âmbito doméstico, a adotar tais medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para conferir efeitos a estes direitos (TRINDADE, 1991, p. 356). A autora Maria Beatriz Galli (2000, p. 58), vai mais além, afirmando que

Não basta a mera existência de um sistema legal formal para que esteja cumprida a obrigação internacional de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana. O Estado deve ter uma conduta de acordo na prática. Neste sentido, o estado deve organizar todo o aparato governamental, através das estruturas nas quais é exercido o poder público, para assegurar o livre e pleno exercício dos direitos humanos.

Além deste dado importante acerca do sistema interamericano, necessário também atentar que aplica-se nas disposições da Convenção, o princípio da prevalência dos direitos mais vantajosos para a pessoa humana; ou seja, quando houver simultaneidade entre mais de um sistema normativo, por exemplo, o nacional e o internacional, deverá prevalecer e ser aplicado aquele que melhor protege o ser humano (COMPARATO, 2001).

Ainda de acordo com o mesmo autor, a introdução do princípio supra mencionado, representou “efetivamente um avanço” em relação ao Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, e vai além, mencionando o caso prático da pena de morte. Sim, pois a Convenção não só proibiu o restabelecimento desta espécie de pena em países que já a tivessem abolido, mas também estendeu a proibição de aplicação de dita pena em crimes políticos, ou crimes comuns a ele conexos.

Na visão de Antônio Augusto Cançado Trindade (2000, p. 25):

O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas possibilidades de “conflitos” entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos em dimensão tanto vertical (tratados de instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou mais tratados). (...) Contribui, em terceiro lugar, para demonstrar que a tendência e o propósito de coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de ampliar e fortalecer o direito interno na proteção dos direitos humanos.

Com a adoção deste princípio – o da primazia da norma mais benéfica às pessoas protegidas - outros princípios consagrados no direito, deixam de surtir efeito. Por exemplo, o princípio da norma especial que revoga a geral, ou o princípio da norma posterior que revoga a anterior no que for incompatível. Nas palavras de Flávia Piovesan (2000, p. 26), “A interpretação a ser adotada no campo dos direitos humanos é a interpretação axiológica e teleológica, que conduza sempre à prevalência da norma

que melhor e mais eficazmente proteja a dignidade humana”.

De acordo com Flávia Piovesan (2004, p. 230), em face do catálogo de direitos contidos na Convenção Americana, cabe aos Estados - parte a obrigação de respeitar e garantir o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação. Cabe ainda ao Estado - parte adotar as medidas legislativas e de outra natureza que sejam necessários para conferir efetividade aos direitos e liberdades enunciados.

Como atenta Thomas Buergenthal (APUD Flávia Piovesan, 2004, p. 232): Os Estados- partes na Convenção Americana têm obrigação não apenas de "respeitar" esses direitos garantidos na Convenção, mas também de "assegurar" o seu livre e pleno exercício. Portanto, os Estados têm uma obrigação negativa, como o dever de não violar nenhum direito individual, e também obrigações positivas, no sentido de implantar medidas que se façam necessárias para a efetivação desses direitos garantidos pela Convenção.

Como forma de garantir a efetivação dos direitos elencados na Convenção Americana de Direitos Humanos, foram criados dois órgãos, sendo o primeiro de fiscalização e o segundo de julgamento. São dois órgãos internacionais de supervisão das obrigações internacionais dos Estados. Trata-se da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, encarregada de investigar os fatos de violação das normas da Convenção, e da Corte Interamericana de Proteção aos Direitos Humanos, encarregada de julgar os litígios daí decorrentes, respectivamente (COMPARATO, 2001), com a ressalva de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no entanto, só possui jurisdição obrigatória para os Estados - Partes que a aceitem, de acordo com o seu artigo 62, parágrafo primeiro da Convenção (TRINDADE, 1991, p. 377).

Esses dois órgãos, portanto, constituem o aparato que objetiva monitorar os Estados –Partes, no sentido de garantir a implementação dos Direitos que a Convenção Americana enuncia. Ambos trabalham individualmente, e de forma autônoma, sem ligação a qualquer governo específico. Na afirmação de Hector Gros Espiell (APUD PIOVESAN, 2000, p. 32), o capítulo VII da Convenção disciplina a Comissão Interamericana de Direitos humanos, o capítulo VIII regula a corte americana e o capítulo IX prevê dispositivos comuns aos dois órgãos. O mesmo autor também elenca os capítulos anteriores, afirmando que a Convenção Americana é o único documento que consagra tanto direitos civis e políticos quanto direitos econômicos e sociais.