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Quando se pretende estudar qualidade de vida em pequenas cidades, é necessário inicialmente entender o que é cidade dentro de um campo teórico-metodológico bastante amplo. Não se pode esquecer que este assunto também é objeto de interesse dos economistas, sociólogos, demógrafos, urbanistas etc., e não só dos geógrafos. Dentro deste contexto, o que é uma cidade e, ainda, quais são os critérios utilizados para a sua classificação? Considerando-se que, na atualidade, a maior parcela da população mundial vive nas cidades, busca-se compreender o que elas são, como nelas deve ser caracterizada a qualidade de vida e

quais as variáveis que podem ser utilizadas para a sua mensuração. Também é preciso considerar suas especificidades quando se avaliam estas referências para pequenas cidades.

Diante da diversidade dos textos que fazem alusão às cidades, a questão conceitual adquire relevância. Alguns estão centrados em idéias como aglomerações humanas, concentrações demográficas, concentração de atividades, etc., enquanto outros dão um sentido diferente às cidades, como lugar de trocas, de contradições, de disseminação de informações, de conflitos, dentre outros. Por conseguinte, ao se analisar o conceito de cidade, constata-se que existem diferentes concepções sobre o tema. Estas diferenciações derivam da época em que o conceito foi formulado, da formação do pesquisador, das transformações que vêm ocorrendo no âmbito das cidades, do significado das cidades para a sociedade e da própria evolução da organização do espaço.

Os textos reunidos e analisados serão apresentados conforme duas abordagens. Uma, dentro de uma perspectiva mais tradicional, é uma visão material da cidade do ponto de vista de seus níveis de concentração, adensamento, aglomeração, aspectos que constituem a preocupação principal desse tipo de abordagem. A outra, independentemente do perfil anterior, com idéias mais recentes, considera a cidade do ponto de vista de suas funções, sua dinâmica e suas contradições, levando em conta dados relativos ao comércio, à disseminação de informações e ao seu papel na qualidade de vida dos moradores. Assim, enquanto uns percebem a cidade como forma, outros a percebem de acordo com as suas funções, entre as quais permitir uma melhor qualidade vida humana se destaca como função principal. No entanto, a cidade deve ser vista e analisada não só como forma e estrutura, mas também como função e processo. Neste sentido, Santos (1985) destaca que nenhum destes componentes deve ser negligenciado, uma vez que eles atuam de forma integrada na criação e moldagem dos espaços urbanos. Desta forma a cidade é vista como um organismo dinâmico e em contínuo processo de funcionamento e transformação.

Conforme Azevedo (1970, p. 254), por força de lei, “a sede do Município tem a categoria de cidade e lhe dá o nome”. Por conseguinte, no Brasil, é o critério político- administrativo que caracteriza a cidade e isto explica a existência de aglomerados com população bastante reduzida incluídos nesta categoria. Este fato pode ser comprovado no estado do Rio Grande do Sul, onde se tem um número bastante expressivo de cidades com população inferior a 10 mil habitantes.

Desta forma, na definição de população urbana, é encontrada uma ampla série de tamanhos populacionais, o que se expressa em todo o território nacional, embora, para cada estado ou região, cidades e municípios de mesmo porte apresentem diferenciações sociais,

econômicas, espaciais, etc. de grande significância. No estado do Rio Grande do Sul, objeto deste estudo, estes tamanhos variam muito, pois compreendem aglomerações com desde 21 habitantes (sede do município de Santa Margarida do Sul) até 333.391 habitantes (sede municipal de Caxias do Sul), excluindo-se a capital Porto Alegre, que tem população superior a um milhão de habitantes.

Singer (1973, p. 137) destaca que, por mais variadas que sejam as definições de cidade, existe entre elas um ponto em comum: “trata-se de uma aglomeração humana, de um conjunto de pessoas vivendo próximas umas das outras. As discussões giram em torno do tamanho mínimo desta aglomeração: alguns pretendem que seja de 2.000, outros propõem 5.000 e assim por diante”. Porém, hoje existem cidades com população inferior a estes números, o que demonstra a inconsistência deste fator na identificação da cidade. Assim, uma característica marcante da cidade é o fato de a população viver concentrada num pequeno território.

Centrada nos papéis das cidades, Beaujeu-Garnier (1980, p. 16-19) destaca que “o quadro que se reúne sob a designação de “cidade” é multiforme pela sua situação, tamanho, arquitetura, organização interna, papel na vida regional ou nacional” e se constitui no elemento fundamental da organização do espaço. Salienta ainda que a cidade, “concentração de homens, de necessidades, de possibilidades de toda a espécie, com uma capacidade de organização e transmissão, é ao mesmo tempo sujeito (papel de intervenção) e objeto (existe materialmente)”. Para a autora, a cidade se torna um centro receptor de pessoas, fornecendo seus serviços com a finalidade de suprir suas necessidades, procurando também, com seu poder, manter ligações com o exterior a fim de tornar mais dinâmica sua economia.

Para Andrade (1981, p. 277), a cidade “é um centro de relações de pessoas de outras áreas – do campo e de outras cidades – e que vêm a ela a fim de adquirir bens expostos à comercialização e usar serviços que nela são fornecidos”. Assim, a cidade, pela natureza e diversidade dos serviços prestados, passa a tornar-se um centro de relações. Estas relações se manifestam através do fluxo de veículos e de pessoas associado aos diferentes deslocamentos de mercadorias e de indivíduos, com finalidades diversas. A intensidade destas relações será tanto maior quanto maior for a diversificação e qualificação dos serviços prestados. Isto explica porque muitas cidades se tornam pólos de atração populacional.

George (1983, p. 137) considera que “a cidade constitui uma unidade demográfica e, como tal, deve ser definida e analisada”. O autor destaca, também, que o estudo demográfico das cidades permite revelar dados interessantes que possibilitam analisar a força de trabalho, o mercado de consumo, as necessidades de infra-estrutura e de serviços. Na concepção deste

autor, a população assume fundamental importância quando se estuda a cidade, devido ao fato de estar, cada vez mais, residindo nestas áreas e ao fato de toda a economia se desenvolver e se transformar em função disso. A população se constitui num importante elemento do espaço urbano, tanto na condição de produtores (fornecedores de força de trabalho), quanto na de consumidores. Isto porque todas as pessoas, independentemente da idade, consomem algum tipo de serviço e produto fornecido por aqueles indivíduos que estão inseridos no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal. É através do conhecimento dos dados demográficos que se tem condições de avaliar estas questões.

Ao fazer alusão à questão dos espaços urbanos, Clark (1985, p. 37) destaca que, “para o geógrafo, a cidade é uma unidade de análise consistindo em um conjunto de edifícios, atividades e população conjuntamente reunidos no espaço”. Na sua concepção, o que distingue a cidade de outras formas de assentamento é a densidade de concentração de seus atributos. Assim, a cidade expressa uma forma de utilização do solo que se solidifica através da ação da sociedade, que organiza e reorganiza o espaço, ao longo do tempo, em função de suas necessidades.

Prosseguindo nesta mesma linha de argumentação, Dollfus (1982, p. 80), ao fazer a distinção entre assentamento rural e assentamento urbano, destaca que este último “caracteriza-se pela concentração do habitat numa área limitada e com freqüente acúmulo em imóveis de diversos andares”. Neste espaço há também uma grande concentração de atividades altamente produtivas. Desse modo, a cidade, pelo papel que desempenha, necessita estar adequadamente equipada para atender às necessidades crescentes das populações que nela se concentram.

Segundo Carlos (1994), a cidade é um aglomerado de pessoas e de objetos (prédios, casas, ruas). Deve-se destacar, no entanto, que a cidade não pode ser pensada somente por esse ângulo, pois ela encerra dentro de si um conteúdo social que vai muito além disto. A cidade, em seu conjunto, envolve várias dimensões, como a econômica, a social, a política, a cultural e a ambiental, que devem estar ligadas entre si.

Abandonando a visão mais tradicional sobre a cidade e ordenando um ponto de vista mais moderno, alguns autores se destacam, entre eles Oliven (1987, p. 13), para quem “as cidades se constituem nos centros mais dinâmicos de sociedades complexas e, portanto, representam também espaços nos quais as contradições deste tipo de sociedade se tornam mais evidentes”. Estas contradições se manifestam no espaço urbano através das desigualdades sociais, como: riqueza e pobreza, fartura e escassez, bairro residencial nobre e favela, dentre outras.

Uma característica visível e que expressa bem estas contradições é a questão da segregação residencial que se observa no interior de muitas cidades. Castells (1983) enfatiza que ela é um produto da existência de classes sociais que se espacializam em áreas urbanas. Na concepção de Corrêa (1989, p. 64), esta segregação é provocada em parte pela classe dominante, e sua atuação se faz através da “auto-segregação”, tendo em vista que ela pode escolher para si as melhores áreas, pois é detentora do capital. Assim, aos mais pobres restam poucas opções para morar. A isto o autor denomina “segregação imposta”, que decorre da falta de oportunidades condicionada pela carência de capital das classes sociais menos favorecidas. Partindo destas considerações, podem-se caracterizar as cidades como espaços de contradições.

Outro enfoque que confere à cidade a conotação de espaço dinâmico e diferenciado é aquele proposto por Silva (2004, p. 56), para quem esta dinamicidade “resulta da atuação constante dos agentes produtores do espaço urbano, sendo o local que possibilita a maximização da reprodução capitalista”. A diferenciação se dá através do poder aquisitivo das pessoas que, por sua vez, determinam a existência de espaços bastante heterogêneos.

De acordo com São Martino (1995, p. 99), “a cidade pode ser definida como sendo a forma, a materialidade, ou seja, os prédios e construções, as ruas, os postes, etc... Já o urbano como sendo o conteúdo, as relações que se passam em tal materialidade”. Através da população, de forma indireta, podem-se medir estas relações, as quais diferem de uma cidade para outra, em função não só da população, mas também do nível de desenvolvimento econômico.

Scarlato (1995, p. 400) assinala que “a cidade é um lugar de trocas”, não apenas as ligadas aos bens materiais, mas também as “trocas de espírito”: é na cidade que se estabelece o poder administrativo, que representa o sistema econômico, social e político. Além disto, é “o espaço privilegiado da função educadora e de um grande número de lazeres”. Desta forma, observa-se que a cidade concentra determinadas atividades que são mais específicas a ela e não ao campo. Isto justifica, em parte, a fuga da população do campo em direção à cidade.

Ao fazer referência à urbanização de hoje, Sposito (1997, p. 64) destaca que:

a cidade é o lugar onde se concentra a força de trabalho e os meios necessários à produção em larga escala – a industrial –, e, portanto, é o lugar da gestão, das decisões que orientam o desenvolvimento do próprio modo de produção, comandando a divisão territorial do trabalho e articulando a ligação entre as cidades da rede urbana e entre as cidades e o campo.

Este enfoque encontra-se bastante voltado para a dimensão econômica da cidade e suas relações com outras cidades ou com o próprio campo.

Uma abordagem que vem recebendo destaque na definição de cidade é a de sua relação com a qualidade de vida da população. Neste sentido destacam-se os trabalhos de Lopes (1998) e Cavalcanti (1999). Lopes (1998, p. 45), ao abordar a questão da gestão das cidades, salienta que “poderia ser argumentado que as cidades são a forma mais eficiente de prover a sociedade de uma qualidade de vida melhor, exatamente pela gama de serviços públicos oferecidos, sem falar na riqueza e variedade de sua oferta cultural”. Constata-se, porém, que, em um número bastante significativo de cidades, isto não ocorre, principalmente, quando a questão recai na oferta de infra-estrutura de serviços públicos, que se tornam mais onerosos e, por isto, mais escassos.

Já Cavalcanti (1999) considera que a cidade é uma forma de organização da sociedade. Nesta forma de organização, a sociedade procura sempre buscar o atendimento de suas necessidades fundamentais e secundárias e, com isto, melhorar a sua qualidade de vida. É no interior desta sociedade que se processam as ações sociais, políticas e econômicas que a norteiam.

Numa perspectiva diferenciada, Castells (1999, p. 423) enfatiza que “a era da informação está introduzindo uma nova forma urbana, a cidade informacional”. Esta resulta do fato de a nova sociedade estar baseada em conhecimento, organizada em torno de redes e parcialmente formada de fluxos. Observa-se que, na atualidade, as cidades são também espaços de fluxos de informações e de relações econômicas. Isto contribui para a condução da dinâmica da vida urbana.

Esta multiplicidade conceitual revela a complexidade existente nos estudos do mundo urbano. Cada cidade apresenta não apenas uma dimensão isolada, mas uma superposição de várias delas, que intervêm de forma positiva ou negativa, gerando uma diversidade de aspectos materiais e imateriais. Estas diferenças decorrem da inserção de cada uma dessas dimensões, de suas relações e da sua intensidade.

As cidades tendem também a formar identidades diferentes. Com base nisso, Cidade e Morais (2004, p. 22) destacam que: “algumas se caracterizam por seu papel na produção de bens e serviços, outras por seus atributos naturais e culturais, outras ainda por seu papel político”.

De uma maneira geral, dentre as características que permitem melhor caracterizar a cidade, destacam-se: a presença de atividades terciárias públicas ou privadas, a continuidade

dos espaços edificados (imóveis comerciais e residenciais, praças, ruas, etc.), a concentração do habitat numa área limitada, a população aglomerada, etc.

Assim, uma característica bastante visível nas cidades é a forma como ela se apresenta em termos de organização espacial e seu tamanho demográfico. Daí resulta a divisão das cidades em diferentes categorias ou estruturas urbanas, e dentre elas estão as pequenas cidades. Contudo, é importante destacar também o lado menos visível das cidades, ou seja, o das suas funções, da necessidade de coesão econômica e social, da capacidade de resolver os problemas sociais e ambientais, da qualidade que elas oferecem à vida de seus moradores.

Neste sentido, as pequenas cidades, tanto quanto as de maior dimensão, também possuem forma e função, que devem ser igualmente analisadas. Elas não se diferenciam apenas em decorrência do seu tamanho demográfico, mas também do ponto de vista funcional, que varia quanti e qualitativamente. Por menor que seja uma cidade, ela também desempenha uma função, embora muitas vezes voltada exclusivamente para a sua população. Cabe ressaltar, no entanto, que os enfoques sobre as pequenas cidades variam de um país para outro, mas variam principalmente conforme as concepções do autor. É isto que se procurará mostrar a seguir.