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Reflexões sobre a expressão “empreendedorismo feminino”

3.1 Empreendedorismo e seu campo conceitual

3.1.3 Empreendedorismo: limitações e reflexões

3.1.3.1 Reflexões sobre a expressão “empreendedorismo feminino”

Desde o final da década de 1970, o “empreendedorismo feminino” é foco de investigação da academia. As primeiras publicações buscavam, principalmente, traçar o “perfil” de mulheres empreendedoras (DECARLO; LYONS, 1979; SCHWARTZ, 1976). Persistem e prevalecem, contudo, até hoje,

estudos que analisam aspectos inerentes à empreendedora como, por exemplo, aspectos pessoais e psicológicos, características demográficas, idade, nível educacional, experiência profissional, ocupação anterior, motivações, histórico familiar, fatores cognitivos, percepções e atitudes. De um modo geral, não obstante a identificação de dificuldades para tornar seus empreendimentos bem sucedidos, as pesquisas não notaram muitas diferenças nas motivações e características empreendedoras de homens e mulheres (FAGENSON, 1993; SCHWARTZ, 1976; SEXTON; BOWMAN-UPON, 1990; SEXTON; KENT, 1981). Todavia, tanto as primeiras produções científicas a respeito do tema (HISRICH; BRUSH, 1984; SCHWARTZ, 1976; SEXTON; KENT, 1981) quanto as mais atuais (BOOHENE; SHERIDAN; KOTEY, 2008; CANTZLER; LEIJON, 2007; COOK; BELLIVEAU; LENTZ, 2007; RENTSCHLER, 2007; STILL; WALKER, 2006; WALKER; WEBSTER, 2006) geralmente centram-se no sujeito que empreende, ou melhor, na mulher empreendedora. Esse foco no sujeito empreendedor, ao invés de na ação empreendedora, cria um terreno propício para a difusão de um pensamento essencialista, ou seja, para a veiculação da ideia de que a mulher possui na sua essência determinados atributos. Em outras palavras, essa ênfase no sujeito abre espaço para um processo artificial de naturalização que leva a crer que o empreendedor ou a empreendedora são pessoas dotadas de características “naturalmente” determinadas.

Na visão de Alvesson e Billing (1992), no entanto, as categorias feminino e masculino são definidas no contexto de uma cultura e não devido à fatores biológicos. Além disso, são criadas a partir de uma complexa combinação de forças sociais, cognitivas e emocionais. O que, então, a literatura sobre o “empreendedorismo feminino” apresenta como características intrínsecas, ou seja, parte da “essência” da mulher é, na verdade, características aperfeiçoadas ao longo de séculos ou milênios, na forma de um adestramento

social que determinou ao gênero feminino o papel subalterno de cuidar dos filhos do homem e, até mesmo, do próprio homem.

Percebe-se, portanto, uma concepção essencialista na literatura que trata do “empreendedorismo feminino” que nem sempre corresponde à prática adotada por mulheres empresárias. Nesse sentido, pode-se inferir que tal literatura tende a repetir uma concepção essencialista de gênero, como se as mulheres possuíssem, na sua “essência”, comportamentos diferenciados. Trata- se, por assim dizer, do uso de um atalho de julgamento utilizado nos processos de percepção em que se avalia o indivíduo pertencente a outro grupo através da lente do grupo social que faz o julgamento. Assim se constroem os estereótipos: modelos rígidos a partir dos quais se interpreta o comportamento de um ator social, sem se considerar a sua intencionalidade, a sua subjetividade e o seu contexto.33 De acordo com Oliveira (2002), o estereótipo representa uma imagem mental simplificadora de determinadas categorias sociais; serve como um padrão de significados usado por um grupo na qualificação do outro e constitui imagens que desempenham a função de criar ou acentuar a diversidade. De acordo com Lima (1997), a noção de estereótipo pode ser abordada por duas perspectivas: a cognitiva, que enfatiza o processo de construção dos estereótipos, e a social, que considera o estereótipo como um produto da interação sociocultural. A primeira perspectiva, baseada, portanto na psicologia social, sugere que os estereótipos são instrumentos necessários para a apreensão cognitiva e contribuem para a estruturação e interpretação de “experiências, eventos e objetos diversificados e complexos” (FREIRE FILHO, 2005, p. 22).

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A etimologia ensina que a palavra estereótipo deriva do grego stereós (sólido) + týpos (molde, marca, sinal). Inicialmente, estava ligada às artes gráficas, referindo-se à chapa ou clichê usado em estereotipia. Mais tarde, num processo metonímico, sob a rubrica da sociologia, passou também a indicar ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações (CUNHA, 1986; FERREIRA, 1999; HOUAISS, 2001).

Como servem à “economia de pensamento”, correm o risco de generalizar características situadas na história, em uma cultura e em sociedades específicas. A segunda perspectiva, com base política, entende o estereótipo como uma construção simbólica. Este produto simbólico é construído através de uma ideologia e reduz características e valores socioculturais em alguns poucos elementos representados de forma exagerada e que procuram estruturar a visão de mundo de uma sociedade (FREIRE FILHO, 2005; LIMA, 1997).

É importante destacar a inflexibilidade dos estereótipos (stereós: sólido) e sua repulsão às transformações sociais e à recepção racionalizada de seu conteúdo. Eles, segundo Freire Filho (2005, p. 23) possuem “papel central na organização do discurso do senso-comum” e legitimam um ponto de vista sobre a condição de algo ou alguém dentro da sociedade, podendo incluir ou excluir, ou seja, modelam (týpos: molde) a percepção de um objeto de acordo com os interesses econômicos e ideológicos de uma classe dominante e naturalizam a sua existência. Isso quer dizer que a consolidação de uma imagem estereotipada depende basicamente de um consenso de opinião dos sujeitos que fazem parte de um grupo.

A propriedade de rigidez característica do estereótipo não implica que ele comporte necessariamente uma percepção falsa da realidade. Seja como for, quer se trate de categorizações apenas exageradas e simplificadoras da realidade, quer sejam errôneas e absolutamente falsas, os estereótipos obtêm um alto nível de estabilidade no tempo e um elevado grau de convencionalidade social que os tornam dificilmente mutáveis, mesmo quando os atores sociais que os veiculam dispõem de informações posteriores que possam anular o seu conteúdo. Desse modo, a irracionalidade do estereótipo não resulta do seu conteúdo (que pode até não se referir a informações falsas, mas simplesmente processadas de maneira

deficiente), mas do seu caráter rígido e inflexível, mesmo diante de evidências racionais que se apresentam de forma contrária (SHIN; KLEINER, 2001).34

Em síntese, o estereótipo é oriundo de um discurso naturalizante que reduz a variedade de características de um povo, de uma raça, de uma classe social, de um gênero a alguns poucos atributos, supostamente fixados pela natureza. Essa estratégia ideológica de construção simbólica, argumenta Freire Filho (2005), objetiva naturalizar, universalizar e legitimar normas e convenções de conduta, identidade e valor que emanam das estruturas de dominação social vigentes.

Quin (1996), ao pesquisar a representação e criação de estereótipos, indica que eles são produzidos como resposta a uma ameaça percebida pelos grupos sociais dominantes, ou seja, o estereótipo visa a favorecer a dominação de um grupo em relação a outro(s). Assim, ao converter algo complexo em simples, o estereótipo categoriza o mundo real atribuindo-lhe significados específicos. Dessa forma, o desconhecido torna-se conhecido, ou melhor, o conhecido torna-se óbvio, convertendo-se artificiosamente em um dado natural, como se fizesse parte ou fosse algo inerente à realidade. Nesse sentido, os estereótipos servem para construir e reforçar um sistema de convenções sociais; são descrições da realidade baseada em aspectos objetivos e subjetivos feita por um grupo específico. Trata-se de uma noção preconcebida, é um (pré-)conceito, e, como tal, serve para proteger os interesses de alguns grupos, para racionalizar a conduta de outro grupo, e invoca um consenso em relação a um grupo social. Referindo-se a essa questão, Bourdieu (2007, p. 16-17) vê os estereótipos como

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Dados empíricos que comprovam a capacidade de os estereótipos manterem-se inalteráveis durante décadas (não obstante as inúmeras campanhas de sensibilização e informação e de evidentes mudanças sociais) podem ser encontrados na literatura que trata de estereotipia sexual (KING JUNIOR; MILES; KNISKA, 1991; PARK, 1997; SCHEIN; MUELLER; JACOBSON, 1989).

esquemas de pensamento, de aplicação universal, [que] registram [...] diferenças [...] que eles [próprios] contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que elas [as diferenças] engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmicos. Assim, não vemos como poderia emergir na consciência a relação social de dominação que está em sua base e que, por uma inversão completa de causas e efeitos, surge como uma aplicação entre outras, de um sistema de relações de sentido totalmente independente das relações de força.

De fato, como bem argumenta Bourdieu (2007), os estereótipos precisam se valer de um discurso bem estruturado, a fim de que sejam disseminados como características “comprovadas”. A estruturação extremamente persuasiva desse discurso consegue impregnar-se com tanta profundidade nas sociedades, que não surpreende o fato de a literatura que trata do “empreendedorismo feminino” não ter ficado ilesa a ele. Diante disso, fica a proposição de que não se pode falar na existência de um “empreendedorismo feminino”, pelo menos não da forma como tem sido formulado, uma vez que as tentativas de estabelecimento desse conceito parecem basear-se antes nos estudos sobre as diferenças de ordem biológica entre os sexos, do que nas relações social e culturalmente construídas que envolvem homens e mulheres.

A adjetivação de feminino ao empreendedorismo apresenta outro problema: ao se adotar a expressão “empreendedorismo feminino”, inevitavelmente se poderá falar em “empreendedorismo masculino”. Ora, o gênero, a raça, a etnia ou qualquer outra forma de adjetivação ao empreendedorismo pode, por exemplo, (re)criar um pretenso binarismo entre grupos de indivíduos com base no sexo e, consequentemente, acabar reforçando as diferenças e os preconceitos. Uma pesquisa realizada por Ahl (2006) confirma esta percepção. Ao analisar o discurso de 81 artigos sobre “empreendedorismo

feminino” publicado no período de 1982 a 2000 nos quatro principais periódicos internacionais que tratam de empreendedorismo, a estudiosa constatou que a pesquisa acadêmica sobre o tema possui práticas discursivas que reforçam a ideia de que os empreendimentos que têm mulheres à frente desempenham uma função de menor importância e pouca relevância se comparados com aqueles dirigidos por homens, apesar de as intenções dos artigos não serem estas. Logo, para não fortalecer ainda mais este pensamento, propõe-se abandonar a expressão “empreendedorismo feminino” porque tanto homens quanto mulheres inserem-se no mundo do trabalho desempenhando atividades empresariais. No desenvolvimento dessas atividades, ora desempenham ações empreendedoras, ora desempenham ações gerenciais. O foco do empreendedorismo deixa de ser, então, o sujeito da ação e passa a ser a ação em si. Não importa, por conseguinte, o sexo de quem pratica a ação, pois sejam as ações empreendedoras praticadas por homens ou mulheres, estarão permeadas pelas relações de gênero vivenciadas pelos sujeitos. Relações de gênero que por sua vez são construídas socialmente.