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As abordagens que se propuseram a investigar o empreendedorismo até então não chegaram a nenhum consenso a respeito do conceito de empreendedor e empreendedorismo. Não obstante, o avanço nas discussões, de um modo geral, enquanto os adeptos das perspectivas econômicas acreditam que os empreendedores são os agentes responsáveis pela inovação e os associam às forças direcionadoras de desenvolvimento, os comportamentalistas enfatizam aspectos atitudinais do sujeito e procuram identificar traços de personalidade no indivíduo empreendedor. Em outros termos, o entendimento de que o indivíduo empreendedor ou é aquele que possui determinados atributos comportamentais ou é aquele que promove o desenvolvimento econômico a partir de ideias e práticas inovadoras revela-se como exclusivista e restritivo, pois põe à margem todos os que não se enquadram nessas noções. Essas concepções, portanto, levam a crer que os empreendedores distinguem-se dos demais seres humanos, ou porque possuem determinados traços de personalidade, ou porque inovam e, por conseguinte, promovem o desenvolvimento econômico.

Tanto os economistas quanto os comportamentalistas colocam o sujeito da ação empreendedora como o centro do fenômeno do empreendedorismo (Figura 1). Essa ênfase no sujeito pode até degenerar numa visão classificatória e preconceituosa como se os empreendedores fossem diferentes das demais pessoas, ou ainda, como se possuíssem na sua “natureza” determinadas

habilidades, atitudes e comportamentos especiais. Ou seja, muitas vezes apóiam- se numa visão essencialista do empreendedor (Figura 1), como se certos atributos – como disponibilidade para correr riscos, capacidade para inovar, autoconfiança, perseverança, visão ampliada, talento, comprometimento, liderança, integridade, administração participativa, capacidade de adaptação etc. – simplesmente lhe fossem inatos.

Essa visão naturalizada do empreendedor toma, nos circuitos sociais, uma proporção tal que chega ao ponto de feminizar ou masculinizar determinadas profissões, como se homens fossem mais apropriados para desenvolver determinadas atividades e mulheres outras: de um modo geral, os homens são mais relacionados às profissões de caráter público, enquanto as mulheres às profissões extensivas aos labores domésticos, isto é, da esfera privada (Figura 1). Essa divisão do trabalho segundo o sexo revela-se, na realidade, como o resultado de um longo processo de construção social que, ao longo da história, diferenciou e caracterizou o que hodiernamente se denomina de relações de gêneros.

Quando se voltam os olhos para o empreendedorismo, percebe-se a profundidade da divisão do trabalho de acordo com o gênero. Academicamente (de um modo mais abrangente, dir-se-ia “culturalmente”) cunhou-se a expressão “empreendedorismo feminino” – a princípio, com a (boa) intenção de marcar a presença da mulher na esfera dos negócios. No entanto, as velhas marcas culturais e sociais que caracterizam as relações de gênero também ali se manifestaram. E, amiúde, as referências às mulheres empreendedoras se mostraram impregnadas de estereótipos denotadores da presença, nelas, de características “próprias” de sua biologia, como intuição, sensibilidade, habilidade para trabalhar em equipe, administração participativa etc. Uma oposição se estabeleceu: de um lado o empreendedorismo (forma não marcada,

pura, indicadora portanto de uma origem), do outro o empreendedorismo feminino (forma derivada da primeira, carente dos privilégios de originalidade).

Mas homens e mulheres são mais do que seres biológicos; são também (e principalmente) construções sociais. O que a literatura sobre o “empreendedorismo feminino” exibe como características intrínsecas da mulher são, de certo, qualidades que foram aprimoradas ao longo dos tempos, ou seja, foram construídas socialmente porque homens e mulheres vivem experiências e processos de socialização diferenciados, consequentemente são condicionados a agir de forma diferente. Um olhar mais arguto e inquiridor talvez perceba que a expressão “empreendedorismo feminino” (pelo menos da forma como tem sido discutida até então) se mostra claudicante porque desconsidera um dado: as diferenças entre homens e mulheres, ao invés de naturalmente determinadas, são, com efeito, socialmente construídas.

Anexar o adjetivo “feminino” ao termo “empreendedorismo” significa criar uma polaridade entre feminino e masculino como se a forma não marcada “naturalmente” se referisse apenas ao universo dos negócios conduzidos por homens. O rompimento dessa adjetivação abre espaço à desconstrução de um binarismo que se apóia em ou estabelece uma hierarquia rígida, dentro da qual o feminino é a parte subalterna, inferior.

Não há razão, portanto, para a manutenção da expressão “empreendedorismo feminino”. Ao se levar em conta que, num empreendimento, o que importa são as ações realizadas pelo agente, transfere-se a ênfase do sujeito para a ação, consequentemente, o gênero (ou a cor, a etnia...) de quem pratica a ação deixa de ser determinante e o que importa é a ação em si. Como proposto na Figura 1, deslocar o foco do sujeito para a ação parece, portanto, uma alternativa coerente, à medida que abre a possibilidade para se considerar que indivíduos comuns, sejam homens ou mulheres, podem, individualmente ou em grupo, praticar uma ação empreendedora. Assim, a

noção de ação empreendedora revela-se bastante pertinente porque sua ênfase não é no sujeito, mas no trabalho. Ademais, os indivíduos ora desempenham atividades empreendedoras ora gerenciais, ou melhor, desempenham conjuntamente tais atividades que são complementares, descontínuas e fundamentais não só para a sobrevivência de uma organização, mas, sobretudo, para seu crescimento e diferenciação no mercado.

Considerar, portanto, que a função empreendedora não está incorporada em uma pessoa física particular, dá um caráter mais inclusivo ao empreendedorismo, visto que: oferece maiores condições de se entender as relações de gênero que perpassam as práticas empreendedoras e gerenciais de empresárias; admite a inserção de atores sociais que se encontram à margem porque não se enquadram nas noções de empreendedor, segundo a corrente dos economistas e/ou dos comportamentalistas; permite criticar as ideias essencialistas que difundem que a mulher possui, naturalmente, determinados atributos; e também possibilita se fugir das generalizações e dos modelos universais quando busca entender a complexidade das relações sociais.

Em síntese, o presente trabalho sustenta-se, teórica e conceitualmente, como pode ser observado na Figura 1, na ideia de que as ações de mulheres empresárias são perpassadas por relações de gênero. Assim, pretende-se compreender essas ações empreendedoras e gerenciais de empresárias através do estudo de caso de segmentos empresariais que foram construídos socialmente como mais apropriados a homens (agronegócio) e a mulheres (educação infantil), analisando-se suas histórias de vida.