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1. Introdução

1.1 A Reforma Psiquiátrica

A Reforma Psiquiátrica é um movimento que foi constituído por distintas experiências e produções teóricas no mundo, que teve uma grande expansão ao longo da segunda metade do século XX, principalmente na Europa, que na época estava sendo assolada por empecilhos socioeconômicos do momento pós Segunda Guerra Mundial, além dos debates acerca dos Direitos Humanos (ROSA, 2016).

Sobre os Direitos Humanos a autora acrescenta:

A questão dos Direitos Humanos pautada a partir das barbáries assistidas ao longo da Segunda Guerra ganha importância no debate internacional e culmina com a proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Nesse cenário, além da importante questão relativa à recuperação de mão de obra essencial para a reconstrução das nações devastadas pela Guerra, é comum a comparação da situação dos hospitais psiquiátricos com os campos de concentração, assim como uma contundente crítica às práticas dessas instituições, com ênfase em aspectos como a privação de liberdade e a violação de direitos humanos. (ROSA, 2016, p. 14)

Para além disso, durante o pós guerra a crise da psiquiatria, que já se delimitava desde o começo século XX com a crise da Psiquiatria Fenomenológica na Europa e o surgimento da Psiquiatria Behaviorista americana (BIRMAN e COSTA, 1994), se acentuou com a distinção de dois aspectos:

[...] por um lado, a preocupação dos próprios psiquiatras com relação à sua impotência terapêutica; por outro, as preocupações governamentais geradas pelos altos índices de cronicidade das doenças mentais, com sua consequente incapacidade social. Dessa forma, a psiquiatria social aparece, transferindo o campo da atuação da psiquiatria da doença mental para a saúde mental. Várias experiências de transformação do hospital psiquiátrico passaram a ser desenvolvidas, sobretudo, a partir da década de 1940. (Birman e Costa, 1994, apud HEIDRICH, 2007, p. 36)

Com esse processo de reformulação e transformação dos hospitais psiquiátricos, são delineados dois principais períodos que redimensionaram o campo teórico e assistencial da psiquiatria. Primeiramente, a crítica à estrutura asilar, pois tal estrutura é posta como uma das causas do alto número de doentes crônicos, e a questão central desse momento envolve a “crença de que o manicômio é uma

'instituição de cura' e que se torna urgente resgatar este caráter positivo da instituição através de uma reforma interna da organização psiquiátrica”

(AMARANTE, 1995). Posteriormente, a Psiquiatria Social torna-se Psiquiatria Comunitária ou Preventiva nos Estados Unidos, na década de 1960, e de Setor na França, que teve seu surgimento por volta do ano 1945, num movimento que colocava a comunidade como ponto crucial no tratamento e promoção de saúde mental (BIRMAN e COSTA, 1994).

Assim, Amarante (1995) enfatiza um novo paradigma, que é anteriormente traçado por Birman e Costa, com o intuito da propagação da saúde mental coletivamente:

A hipótese dos autores é a de que, tanto em um período quanto em outro, assim como tanto numa estrutura quanto nas demais, a importância dada pela psiquiatria tradicional à terapêutica das enfermidades dá lugar a um projeto muito mais amplo e ambicioso, que é o de promover a saúde mental, não apenas em um outro indivíduo, mas na comunidade em geral. Visto de outra forma, a terapêutica deixa de ser individual para ser coletiva, deixa de ser assistencial para ser preventiva. De uma forma ou de outra, o certo é que a psiquiatria passa a construir um novo projeto, um projeto eminentemente social, que tem consequências políticas e ideológicas muito importantes. (AMARANTE, 1995, p. 22).

Para além dos movimentos que ocorreram na França e nos Estados Unidos, na Inglaterra, em 1950, surge a Antipsiquiatria a partir das produções de David Cooper, e a Itália também foi palco de uma importante reforma psiquiátrica com a experiência gerida por Franco Basaglia no Hospital Provincial de Gorizia em 1961, até a célebre experiência de Trieste na década de 1970 (ROSA, 2016). Entretanto, essas experiências se distinguiram das anteriores, pois, no processo francês e norte americano, apesar do reconhecimento da importância de outros locais de tratamento para além do hospital, a doença mental, propriamente dita, pouco foi problematizada, já as reformas inglesas e italianas:

[...] colocam em questão a própria concepção de doença mental, a partir da crítica ao processo e ao projeto histórico que permitiram sua fundação, abandonando a categoria médica e o conceito de doença mental, recusando assim, a tomada da loucura como algo a ser curado (ROSA, 2016 p. 18)

É importante ressaltar, em especial, a importância da reforma italiana na transformação da psiquiatria e dos saberes sociais (AMARANTE, 1994), e essa reforma também é apontada como inspiração para o processo brasileiro (HEIDRICH, 2007). Rosa esclarece em sua tese, retomando a visão defendida por Basaglia, que o Brasil necessitaria da sua própria técnica para promover a destruição dos manicômios, mas acrescenta que:

[...] na medida em que a nossa Reforma Psiquiátrica se projetou também como uma intervenção radical, comprometida com a revisão de nossas estruturas sociais, da trajetória italiana retiramos referências que podem servir como pontos de diálogo e categorias de análise do patamar a que chegamos. (ROSA, 2016, p. 60)

A reforma italiana é centrada em um novo dispositivo chamado dispositivo da desinstitucionalização, que pretende ir além de uma simples desospitalização, indo de encontro ao rompimento dos saberes fundantes da psiquiatria clássica (AMARANTE, 1994).

É uma negação radical que inclui a instituição, a doença como rotulagem, a psiquiatria, a hierarquia, os papéis, sociedade, a partir da análise do que produz poder como forma de regressão, doença, exclusão e institucionalização em todos os níveis (BASAGLIA, 1968,1 nota introdutória, tradução livre)

O caminho traçado por Basaglia vinha de uma indignação e uma compreensão do atraso da psiquiatria italiana frente aos outros países da Europa.

Ao longo da sua carreira acadêmica se aproximou de visões e pensadores existencialistas, e assim foi fundamentando sua crítica, que muitas vezes não era bem aceita pela comunidade médica da época. Em 1961, como diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia, institui a proibição do uso de eletrochoques, a erradicação da camisa de força e a remoção do uso de jaleco, o qual reforçava as relações hierárquicas dentro do hospital (SERAPIONI, 2019).

Essas medidas iniciais vão ao encontro das premissas de ações práticas que delinearam a trajetória de Basaglia no campo da saúde mental. Sendo essas ações, (a) a luta contra a institucionalização, promovendo desmantelamento do aparato

1tratta di una negazione radicale che comprende l'istituzione, la malattia come etichettamento, la psichiatria, la gerarchia, i ruoli, la società, partendo dall'analisi di ciò che produce il potere «come fonie di regressione, malattia, esclusione e istituzionalizzazione a tutti i livelli».

manicomial e substituição por práticas multidisciplinares e multiinstitucionais exercidas em diferentes esferas sociais; (b) a luta contra a tecnificação, que se refere a não substituição de outros saberes sobre a doença; (c) a invenção e constituição de uma relação de contrato social, substituindo a relação de tutela por uma relação de contrato; (d) a consciência das transformações, que vem da prática efetiva de luta no âmbito político e social (AMARANTE, 2007). Rosa acrescenta:

O mais contundente da crítica de Basaglia está em nos alertar para a necessidade de superação da estrutura psicopatológica como condição para a superação da objetalização à qual se relega o sujeito. E, nesse sentido, as referências questionadas não são apenas as da psiquiatria. O autor denuncia o modo como outros saberes científicos, ao adentrarem nas organizações hospitalares, foram incapazes de se transformar abrangendo os atos da vida institucional, mantendo-se intocada a estrutura autoritária, coercitiva e hierárquica dessas instituições. Se não superamos o caráter objetal a que reduzimos o doente, seremos incapazes de reverter a tutela que a ciência o imputou ao considerá-lo resultado de uma alteração biológica diante da qual resta aceitar sua diferença em relação à norma, limitando-se a definir, catalogar e gerir a doença mental.

(ROSA, 2016, p. 57)

Nesse aspecto, a autora delimita quatro pontos de partida que merecem ser destacados na produção da reforma italiana que terão reflexos na discussão fomentada no Brasil (ROSA, 2016, p. 60.). O primeiro está na redefinição do objeto, que não deve mais ser a doença, mas aquilo que se fez dela, tendo em vista que a sociedade operou mecanismos de exclusão dos doentes, impossibilitando a eles uma vivência como cidadãos, assujeitando-os da sua própria história. O segundo ponto diz respeito à “[...] desconstrução dessa operação de dominação do sujeito para reconquista da cidadania” (ROSA, 2016, p. 61), colocando em foco como dispositivos terapêuticos aqueles que possibilitam novas formas de sociabilidade e de novas trajetórias de vida. O terceiro aspecto seria o enfrentamento direto ao dispositivo mais representativo do discurso psiquiátrico patologizante: o hospital psiquiátrico, e isso implica questionamentos radicais “[...] das práticas e relações estabelecidas nessa instituição, sendo a tomada de consciência condição para os sujeitos fazerem como tal o caminho da porta para fora” (ROSA, 2016, p. 62). Com a destruição do hospital psiquiátrico e das lógicas imbricadas nele, é possível implantar dispositivos no território e na comunidade sob novas diretrizes, que

tenham como foco uma terapêutica que promova a liberdade. E finalmente, é imprescindível o protagonismo e a tomada de consciência do próprio sujeito no processo de suplantação dos mecanismos a que esteve subjugado (ROSA, 2016, p.

62).

Frente a esse breve panorama histórico e a contextualização das influências da reforma italiana no processo brasileiro, é preciso que se entenda mais a fundo como a reforma psiquiátrica se desencadeou em território nacional.

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