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DEBATES SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA NA GRADUAÇÃO: uma pesquisa comparativa entre a Psicologia e Medicina da PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

VICTORIA SANZER KALIL

DEBATES SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA NA GRADUAÇÃO:

uma pesquisa comparativa entre a Psicologia e Medicina da PUC-SP

SÃO PAULO 2021

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VICTORIA SANZER KALIL

DEBATES SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA NA GRADUAÇÃO:

uma pesquisa comparativa entre a Psicologia e Medicina da PUC-SP

Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Orientadora: Profa. Dra. Cris Andrada

SÃO PAULO 2021

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Rosana, que me mostra todos os dias como levar a vida de forma delicada e leve, porém sem perder a força, a ela que das mais bonitas tarefas, me ensinou a ser mulher.

Ao meu pai, Elias, que sempre acreditou em mim e nas minhas potências, me oferecendo confiança e cuidado, ele que me inspira e me dá exemplo para correr atrás do que eu luto.

À Camila, minha irmã, pelo companheirismo, pelos seus ensinamentos e por me mostrar que mesmo nas diferenças, a gente se encontra e se compõe juntas, na nossa diversidade.

À minha avó, Najla, uma das pessoas mais fortes que já pisou nesse mundo, e com essa mesma força tocava o coração de todos que cruzavam seu caminho.

Sua lembrança me dá forças, vó.

Ao meu avô Elias, que me cativa com sua sabedoria e com sua capacidade de ter o abraço mais quentinho do mundo (esperando ansiosa pela imunização para poder sentir esse abraço de novo). E à minha avó Cida, uma mulher simplesmente radiante, que encanta pelos seus cuidados… e pela sua comida.

Agradeço também a todos e todas da família Kalil e Sanzer, que me ensinaram sobre união, afeto e sobre uma boa folia.

Agradeço à minha orientadora Cris Andrada, que pode me auxiliar nesse processo com tanta inteligência, cuidado, paciência e afeto e que me mostrou formas lindas de ser psi, de ser crítica e de manter a esperança.

À professora Ciça Roth, que ao longo do Núcleo de Saúde demonstrou as diversas potências do SUS, o que me fez acreditar ainda mais no meu projeto. A ela também que topou conceder seu parecer a essa pesquisa.

Agradeço também às professoras Ana Laura Schliemann e Elisa Rosa por colaborarem de forma tão potente e enriquecedora durante nossas entrevistas.

À Psicolata, que proporcionou meu primeiro contato com a Luta Antimanicomial e que tanto me ensinou sobre grupalidade, amizade, pertencimento, e talvez o mais importante: a música. Obrigada por me mostrarem os caminhos para entender que samba é libertação e samba é resistência!

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E disso, estendo meus agradecimentos às amizades lindas que se formaram por meio dessa entidade, Kiki, pela sua parceria; Quel, pela musicalidade; Dan, pelos conselhos sábios; Laza, pela presença; Renatinha, pelo carinho; Nalu, pelas risadas; Ju, pela força.

Agradeço também às minhas amizades antigas que levo comigo desde a escola. Em especial à Ana, que desde então me acompanhou de perto, sempre me oferecendo cuidado, carinho, escuta, conselhos e uma amizade genuína, também agradeço pela sua disposição em me ajudar com a pesquisa.

À Mari, que ao longo do processo de feitura do TCC esteve ao meu lado me dando apoio, carinho e potência, além de ter se disponibilizado a realizar uma leitura cuidadosa e atenta, que muito me ajudou para a finalização da pesquisa.

À Rapha, amizade que me movimenta, me instiga e muito me inspira. Minhas lembranças na PUC-SP são entremeadas com nossas risadas.

Ao Caio, que desde as primeiras semanas na faculdade esteve comigo, que das gargalhadas na Cruz às seriedades da vida, pudemos construir caminhos de amor e cuidado juntos.

E finalmente, agradeço a todos e todas profissionais de saúde, usuários da rede e militantes antimanicomiais, que estiveram nesse movimento há tempos, resistindo e lutando pela construção de um mundo livre de manicômios.

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Que o estudo da medicina seja mais humanizado dia após dia, e se eu me enraizar na dor, que a morfina permaneça qual um beija-flor verde a nidificar sua calma em minha alma

- Eu sobrevivo ao não-eu (anotações do exílio infeliz em “Clorpromazine Island”. Ou: inventário das pérolas) trecho do livro Na Tinta do Polvo por Helder de Oliveira Lima Ribeiro

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Victoria Sanzer Kalil. DEBATES SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA NA GRADUAÇÃO: uma pesquisa comparativa entre a Psicologia e Medicina da PUC-SP. São Paulo, 2021. Orientadora: ProfaDraCris Andrada. Área: 7.07.05.00-3 - Psicologia Social.

RESUMO

A presente pesquisa configura-se como um estudo de Psicologia, nível graduação, de cunho qualitativo, baseado nos marcos teórico-metodológicos da Psicologia Social crítica e na perspectiva antimanicomial. O objetivo principal deste estudo é identificar e analisar como os cursos de Medicina e Psicologia da PUC-SP abordam os temas da Reforma Psiquiátrica e das práticas antimanicomiais ao longo dos anos de graduação. Levando em conta o contexto atual de desmonte de políticas públicas e de uma constante ameaça de retorno de práticas manicomiais, é importante identificar a qualidade dos contatos que são promovidos para os alunos de Medicina e Psicologia acerca dos paradigmas reformistas durante a graduação. Do ponto de vista empírico, foram adotadas as seguintes direções de método (duas etapas): 1) análise documental sobre os currículos dos cursos em questão, tendo em vista o objetivo proposto; 2) entrevistas semi-estruturadas prolongadas com docentes vinculadas a ambos os cursos sobre o tema foco do estudo. Para a realização da análise, os dados obtidos foram separados em três eixos temáticos: eixo institucional, eixo ético-político e prático, e o eixo dos processos históricos. Em termos gerais, concluiu-se que apesar de existirem caminhos institucionais e curriculares que se alinham aos pressupostos da Reforma Psiquiátrica nos dois cursos, o processo de lutas e conquistas antimanicomiais está imerso em um cenário de desafios mais amplo, que envolve embates políticos e históricos importantes, e que ainda demandam vigília e enfrentamento permanentes.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica; Medicina; Psicologia.

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SUMÁRIO

Apresentação……….1

1. Introdução………..…3

1.1 A Reforma Psiquiátrica……….……….3

1.2 A Reforma Psiquiátrica no Brasil……….7

1.3 Atenção psicossocial em contraponto ao modelo biomédico………12

1.4 A Reforma Psiquiátrica em tempos de desmonte………...15

2. Método...………...23

3. Resultados e discussão………...28

3.1 Medicina PUC-SP…...…………..……….……….………...28

3.2 Psicologia PUC-SP………...……....……….…………29

3.3 Síntese das entrevistas………..30

3.4 Análise e discussão………....31

3.4.1 Eixo Institucional…….………....32

3.4.2 Eixo ético-político e prático………38

3.4.3 Eixo dos processos históricos………..43

4. Conclusões………..……....51

5. Considerações finais……….54

6. Referências………..57

7. Anexos………..64

7.1 Roteiro da entrevista (Psicologia)………..……….………...66

7.2 Roteiro da entrevista (Medicina)…..……..……….………...68

7.3 Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)..….………...70

7.4. Carta aos professores e alunos de Psicopatologia..….…….………...72

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABP – Associação Brasileira de Psiquiatria

ABRASME – Associação Brasileira de Saúde Mental CAPS – Centro de Assistência Psicossocial

CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde

CFP – Conselho Federal de Psicologia CT – Comunidades Terapêuticas

DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ESF – Estratégia de Saúde da Família

FACHS – Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde FCMS – Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde MEC – Ministério da Educação

MLA – Movimento da Luta Antimanicomial

MTSM – Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental NAPS – Núcleos de Atenção Psicossocial

NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família PL – Projeto de Lei

PET-Saúde – Programa de Educação para o Trabalho em Saúde PNAB – Política Nacional de Atenção Básica

PSF – Programa de Saúde da Família

PROMED – Programa de Incentivos às Mudanças Curriculares dos Cursos de Medicina

PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo RAPS – Rede de Atenção Psicossocial

SRT – Serviço de Residencial Terapêutico SUS – Sistema Único de Saúde

TALP – Técnica de Associação Livre de Palavras TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UBS – Unidade Básica de Saúde

UPA – Unidades de Pronto Atendimento

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APRESENTAÇÃO

O presente trabalho surgiu de uma inspiração fruto da minha trajetória particular como estudante de psicologia, bem como das influências sociais que eu pude perceber que a Luta Antimanicomial e a reforma psiquiátrica têm na vida dos seres humanos, principalmente daqueles que fazem uso dos dispositivos de saúde mental e dos estudantes das áreas de saúde.

Em 2017, quando entrei na faculdade de psicologia eu não sabia o que era a luta antimanicomial, entretanto, através das aulas e da vivência no meio acadêmico eu pude ter contato com a causa, com suas inspirações e com seus paradigmas.

Essa temática me chamou muito a atenção, e dessa forma fui me debruçando cada vez mais nos estudos e na compreensão acerca da reforma psiquiátrica

Apesar das experiências que tive em sala de aula, das atividades propostas pelo centro acadêmico de psicologia, e das trocas dialógicas com outras estudantes de psicologia, um momento específico da minha vivência durante o curso foi a que mais me marcou, e esse momento foi quando estive presente nos atos do 18 de maio (em 2018 e 2019), Dia da Luta Antimanicomial. Através da conjunção de indivíduos defendendo um mesmo ideal, eu pude entender a magnitude e a potência dessa causa, estar presente no ato e observar o contingente de pessoas lutando por um mundo que fosse capaz de abarcar e cuidar de tantos outros mundos possíveis, foi algo que me mobilizou muito, a partir disso percebi que essa era uma luta que eu gostaria de lutar, tanto como futura profissional da área da saúde, como ser humano que acredita que existam formas mais justas e livres de viver nessa sociedade.

Através da minha presença nos atos eu pude contemplar como era feita a militância da luta pelo fim dos manicômios, mas ao longo da minha formação também pude conceber, na concretude, a necessidade da reforma psiquiátrica. Eu tive a oportunidade de fazer visitas a um hospital psiquiátrico e foi uma experiência extremamente negativa, em que eu presenciei maus tratos a paciente e percebi resquícios nítidos da lógica manicomial naquele espaço. Conquanto, quando visitei dispositivos substitutivos aos manicômios, como é o caso do CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), a experiência foi totalmente distinta, estive presente em reuniões de equipe multidisciplinar, que pude entender a importância do trabalho em

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rede, participei de grupos terapêuticos que respeitavam a individualidade de cada participante e estive na vivência do CAPS, onde observei pessoas cantando, conversando, convivendo e tendo a liberdade de ser.

Através dessas vivências que fui angariando ao longo dos meus anos de graduação, decidi me debruçar academicamente no movimento antimanicomial. O que me influenciou mais presentemente para pensar nessa pesquisa foi o meu interesse em entender como a luta antimanicomial era concebida por profissionais da saúde de diferentes áreas e entender se eles estariam em consonância em relação aos pressupostos da reforma, tendo em vista o trabalho interdisciplinar que ocorre na área da saúde mental. Decidi focar nos cursos de medicina e psicologia da PUC-SP, que são os dois maiores cursos da área de saúde da universidade, com o intuito de investigar os processos de ensino que a PUC promove em relação a luta antimanicomial, visando analisar se em ambas as áreas existe um projeto pedagógico alinhado com a reforma psiquiátrica, e se os futuros profissionais dessas duas áreas terão uma formação em saúde mental com uma perspectiva pautada pela não manicomialidade.

Ao longo desses anos percebi que a luta antimanicomial não é uma luta que visa apenas acabar com os manicômios, é a luta pela construção de uma sociedade justa e diversa. E através desta pesquisa espero poder corroborar, nem que minimamente, para a construção de um mundo com liberdade, diversidade e solidariedade.

Pela liberdade de ser, de estar e de poder.

Manicômios nunca mais!

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1. INTRODUÇÃO

1.1. A Reforma Psiquiátrica

A Reforma Psiquiátrica é um movimento que foi constituído por distintas experiências e produções teóricas no mundo, que teve uma grande expansão ao longo da segunda metade do século XX, principalmente na Europa, que na época estava sendo assolada por empecilhos socioeconômicos do momento pós Segunda Guerra Mundial, além dos debates acerca dos Direitos Humanos (ROSA, 2016).

Sobre os Direitos Humanos a autora acrescenta:

A questão dos Direitos Humanos pautada a partir das barbáries assistidas ao longo da Segunda Guerra ganha importância no debate internacional e culmina com a proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Nesse cenário, além da importante questão relativa à recuperação de mão de obra essencial para a reconstrução das nações devastadas pela Guerra, é comum a comparação da situação dos hospitais psiquiátricos com os campos de concentração, assim como uma contundente crítica às práticas dessas instituições, com ênfase em aspectos como a privação de liberdade e a violação de direitos humanos. (ROSA, 2016, p. 14)

Para além disso, durante o pós guerra a crise da psiquiatria, que já se delimitava desde o começo século XX com a crise da Psiquiatria Fenomenológica na Europa e o surgimento da Psiquiatria Behaviorista americana (BIRMAN e COSTA, 1994), se acentuou com a distinção de dois aspectos:

[...] por um lado, a preocupação dos próprios psiquiatras com relação à sua impotência terapêutica; por outro, as preocupações governamentais geradas pelos altos índices de cronicidade das doenças mentais, com sua consequente incapacidade social. Dessa forma, a psiquiatria social aparece, transferindo o campo da atuação da psiquiatria da doença mental para a saúde mental. Várias experiências de transformação do hospital psiquiátrico passaram a ser desenvolvidas, sobretudo, a partir da década de 1940. (Birman e Costa, 1994, apud HEIDRICH, 2007, p. 36)

Com esse processo de reformulação e transformação dos hospitais psiquiátricos, são delineados dois principais períodos que redimensionaram o campo teórico e assistencial da psiquiatria. Primeiramente, a crítica à estrutura asilar, pois tal estrutura é posta como uma das causas do alto número de doentes crônicos, e a questão central desse momento envolve a “crença de que o manicômio é uma

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'instituição de cura' e que se torna urgente resgatar este caráter positivo da instituição através de uma reforma interna da organização psiquiátrica”

(AMARANTE, 1995). Posteriormente, a Psiquiatria Social torna-se Psiquiatria Comunitária ou Preventiva nos Estados Unidos, na década de 1960, e de Setor na França, que teve seu surgimento por volta do ano 1945, num movimento que colocava a comunidade como ponto crucial no tratamento e promoção de saúde mental (BIRMAN e COSTA, 1994).

Assim, Amarante (1995) enfatiza um novo paradigma, que é anteriormente traçado por Birman e Costa, com o intuito da propagação da saúde mental coletivamente:

A hipótese dos autores é a de que, tanto em um período quanto em outro, assim como tanto numa estrutura quanto nas demais, a importância dada pela psiquiatria tradicional à terapêutica das enfermidades dá lugar a um projeto muito mais amplo e ambicioso, que é o de promover a saúde mental, não apenas em um outro indivíduo, mas na comunidade em geral. Visto de outra forma, a terapêutica deixa de ser individual para ser coletiva, deixa de ser assistencial para ser preventiva. De uma forma ou de outra, o certo é que a psiquiatria passa a construir um novo projeto, um projeto eminentemente social, que tem consequências políticas e ideológicas muito importantes. (AMARANTE, 1995, p. 22).

Para além dos movimentos que ocorreram na França e nos Estados Unidos, na Inglaterra, em 1950, surge a Antipsiquiatria a partir das produções de David Cooper, e a Itália também foi palco de uma importante reforma psiquiátrica com a experiência gerida por Franco Basaglia no Hospital Provincial de Gorizia em 1961, até a célebre experiência de Trieste na década de 1970 (ROSA, 2016). Entretanto, essas experiências se distinguiram das anteriores, pois, no processo francês e norte americano, apesar do reconhecimento da importância de outros locais de tratamento para além do hospital, a doença mental, propriamente dita, pouco foi problematizada, já as reformas inglesas e italianas:

[...] colocam em questão a própria concepção de doença mental, a partir da crítica ao processo e ao projeto histórico que permitiram sua fundação, abandonando a categoria médica e o conceito de doença mental, recusando assim, a tomada da loucura como algo a ser curado (ROSA, 2016 p. 18)

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É importante ressaltar, em especial, a importância da reforma italiana na transformação da psiquiatria e dos saberes sociais (AMARANTE, 1994), e essa reforma também é apontada como inspiração para o processo brasileiro (HEIDRICH, 2007). Rosa esclarece em sua tese, retomando a visão defendida por Basaglia, que o Brasil necessitaria da sua própria técnica para promover a destruição dos manicômios, mas acrescenta que:

[...] na medida em que a nossa Reforma Psiquiátrica se projetou também como uma intervenção radical, comprometida com a revisão de nossas estruturas sociais, da trajetória italiana retiramos referências que podem servir como pontos de diálogo e categorias de análise do patamar a que chegamos. (ROSA, 2016, p. 60)

A reforma italiana é centrada em um novo dispositivo chamado dispositivo da desinstitucionalização, que pretende ir além de uma simples desospitalização, indo de encontro ao rompimento dos saberes fundantes da psiquiatria clássica (AMARANTE, 1994).

É uma negação radical que inclui a instituição, a doença como rotulagem, a psiquiatria, a hierarquia, os papéis, sociedade, a partir da análise do que produz poder como forma de regressão, doença, exclusão e institucionalização em todos os níveis (BASAGLIA, 1968,1 nota introdutória, tradução livre)

O caminho traçado por Basaglia vinha de uma indignação e uma compreensão do atraso da psiquiatria italiana frente aos outros países da Europa.

Ao longo da sua carreira acadêmica se aproximou de visões e pensadores existencialistas, e assim foi fundamentando sua crítica, que muitas vezes não era bem aceita pela comunidade médica da época. Em 1961, como diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia, institui a proibição do uso de eletrochoques, a erradicação da camisa de força e a remoção do uso de jaleco, o qual reforçava as relações hierárquicas dentro do hospital (SERAPIONI, 2019).

Essas medidas iniciais vão ao encontro das premissas de ações práticas que delinearam a trajetória de Basaglia no campo da saúde mental. Sendo essas ações, (a) a luta contra a institucionalização, promovendo desmantelamento do aparato

1tratta di una negazione radicale che comprende l'istituzione, la malattia come etichettamento, la psichiatria, la gerarchia, i ruoli, la società, partendo dall'analisi di ciò che produce il potere «come fonie di regressione, malattia, esclusione e istituzionalizzazione a tutti i livelli».

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manicomial e substituição por práticas multidisciplinares e multiinstitucionais exercidas em diferentes esferas sociais; (b) a luta contra a tecnificação, que se refere a não substituição de outros saberes sobre a doença; (c) a invenção e constituição de uma relação de contrato social, substituindo a relação de tutela por uma relação de contrato; (d) a consciência das transformações, que vem da prática efetiva de luta no âmbito político e social (AMARANTE, 2007). Rosa acrescenta:

O mais contundente da crítica de Basaglia está em nos alertar para a necessidade de superação da estrutura psicopatológica como condição para a superação da objetalização à qual se relega o sujeito. E, nesse sentido, as referências questionadas não são apenas as da psiquiatria. O autor denuncia o modo como outros saberes científicos, ao adentrarem nas organizações hospitalares, foram incapazes de se transformar abrangendo os atos da vida institucional, mantendo-se intocada a estrutura autoritária, coercitiva e hierárquica dessas instituições. Se não superamos o caráter objetal a que reduzimos o doente, seremos incapazes de reverter a tutela que a ciência o imputou ao considerá-lo resultado de uma alteração biológica diante da qual resta aceitar sua diferença em relação à norma, limitando-se a definir, catalogar e gerir a doença mental.

(ROSA, 2016, p. 57)

Nesse aspecto, a autora delimita quatro pontos de partida que merecem ser destacados na produção da reforma italiana que terão reflexos na discussão fomentada no Brasil (ROSA, 2016, p. 60.). O primeiro está na redefinição do objeto, que não deve mais ser a doença, mas aquilo que se fez dela, tendo em vista que a sociedade operou mecanismos de exclusão dos doentes, impossibilitando a eles uma vivência como cidadãos, assujeitando-os da sua própria história. O segundo ponto diz respeito à “[...] desconstrução dessa operação de dominação do sujeito para reconquista da cidadania” (ROSA, 2016, p. 61), colocando em foco como dispositivos terapêuticos aqueles que possibilitam novas formas de sociabilidade e de novas trajetórias de vida. O terceiro aspecto seria o enfrentamento direto ao dispositivo mais representativo do discurso psiquiátrico patologizante: o hospital psiquiátrico, e isso implica questionamentos radicais “[...] das práticas e relações estabelecidas nessa instituição, sendo a tomada de consciência condição para os sujeitos fazerem como tal o caminho da porta para fora” (ROSA, 2016, p. 62). Com a destruição do hospital psiquiátrico e das lógicas imbricadas nele, é possível implantar dispositivos no território e na comunidade sob novas diretrizes, que

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tenham como foco uma terapêutica que promova a liberdade. E finalmente, é imprescindível o protagonismo e a tomada de consciência do próprio sujeito no processo de suplantação dos mecanismos a que esteve subjugado (ROSA, 2016, p.

62).

Frente a esse breve panorama histórico e a contextualização das influências da reforma italiana no processo brasileiro, é preciso que se entenda mais a fundo como a reforma psiquiátrica se desencadeou em território nacional.

1.2. A Reforma Psiquiátrica no Brasil

Nos anos 1970 o Brasil foi palco de diversos embates políticos que compunham o cenário de redemocratização do país.

É neste cenário de redemocratização e luta contra a ditadura, relacionando a luta específica de direitos humanos para as vítimas da violência psiquiátrica com a violência do estado autocrático, que se constituiu o ator social mais importante no processo de reforma psiquiátrica. (AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2068)

Entretanto, é impossível falar da Reforma Psiquiátrica sem contextualizar o

“movimento sanitário” que tomou forças nessa época. Esse movimento defendia mudanças dos modelos de atenção e gestão nas condutas referentes à saúde, além de pleitear por saúde coletiva, pela equidade na oferta de serviços e pelo protagonismo dos usuários e dos trabalhadores dos serviços de saúde (BRASIL, 2005).

Embora a discussão de saúde mental estivesse circunscrita ao processo da reforma sanitária, a reformulação das práticas psiquiátricas se constituía em um processo amplo e complexo (AMARANTE e NUNES, 2018), assim trilhando sua própria história dentro de um “contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar” (BRASIL, 2005, p.01).

Com a crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico e com os esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, a Reforma Psiquiátrica no Brasil foi tomando forma e força dentro da sociedade brasileira (BRASIL, 2005, p.01). O primeiro momento do processo de participação social na reforma se deu com a formação do Movimento dos Trabalhadores em

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Saúde Mental (MTSM) em 1978, que foi “primeiro sujeito coletivo com o propósito de reformulação da assistência psiquiátrica''. (AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2068).

[...] o MTSM se autocaracterizava por ser "múltiplo e plural", isto é, por articular não só profissionais de todas as categorias, mas simpatizantes não-técnicos. Talvez por inspiração das bandeiras de

"desinstitucionalização" do saber e das práticas psiquiátricas [...]

Nesse sentido, o MTSM prefigura, de certa forma, o formato organizacional que predominou no movimento de reforma sanitária (RAMOS, 2004, p. 1075)

Em 1986, em meio à crise financeira da Previdência Social e de mudanças políticas, muitos dos participantes do MTSM se envolveram em propostas de reformulação da assistência médica e de saúde, e nesse cenário foi convocada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que revolucionou a forma de participação social na elaboração de políticas públicas. Após a 8ª Conferência, que havia temáticas brandas, foi decidido que seria importante convocar debates mais específicos, dentre eles a discussão de Saúde Mental (AMARANTE e NUNES, 2018).

Com a convocação do II Congresso Nacional do MTSM no ano de 1987 em Bauru, foi posto que não bastariam apenas as mudanças institucionais e a modernização de serviços. “Por essa razão, o MTSM retomou suas lutas originais de questionamento ao saber psiquiátrico e a institucionalização” (HEIDRICH, 2007, p.106-107). A partir desse momento, o movimento assumiu a denominação de Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e adotou o lema “Por uma sociedade sem manicômios”.

“Por uma sociedade sem manicômios” revela duas transformações significativas no movimento. Uma, que diz respeito à sua constituição, na medida em que deixa de ser um coletivo de profissionais para se tornar um movimento social, não apenas com os próprios “loucos” e seus familiares, mas também com outros ativistas de direitos humanos. Outra, que se refere à sua imagem-objetivo, até então relativamente associada à melhoria do sistema, à luta contra a violência, a discriminação e segregação, mas não explicitamente pela extinção das instituições e concepções manicomiais. A partir de então se transforma em Movimento da Luta Antimanicomial (MLA). (AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2069).

Esse projeto de ruptura radical e de transformação da assistência em saúde mental estava afirmado na carta de fundação do movimento, o Manifesto de Bauru, que teve como uma das referências, a Reforma Psiquiátrica Italiana (ROSA, 2016).

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Manifesto de Bauru

Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo momento na luta contra a exclusão e a discriminação.

Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos.

O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada.

O manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.

Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.

Contra a mercantilização da doença!

Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988!

Por uma sociedade sem manicômios!

Bauru, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental.

Com esse manifesto adotou-se a bandeira “Por uma sociedade sem Manicômios”, foi definido o dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial, e foi fundado o Movimento pela Luta Antimanicomial, composto por usuários dos serviços de saúde mental, seus familiares, trabalhadores, sindicatos,

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conselhos profissionais da área de saúde, parlamentares, artistas e todos aqueles que apoiassem a luta (GRADELLA JR., 2012). O manifesto tinha como objetivo:

o fim dos hospitais psiquiátricos pelo gasto inútil de verbas públicas e forma de atenção ultrapassada, sem resolutividade, excludente e violenta. Sua proposta era a criação de serviços substitutivos em saúde mental, tais como: CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), NAPS (Núcleo de Apoio Psicossocial), Hospital-dia, Ambulatórios, Unidades Básicas de Saúde com Equipes Mínimas (1 psiquiatra, 1 psicólogo, 1 assistente social), Emergência Psiquiátrica, Leitos Psiquiátricos em Hospital Geral, Enfermaria Psiquiátrica em Hospital Geral, Centro de Convivência, bem como outras formas de atenção com conteúdo não manicomial. A loucura concebida como desrazão, como erro, como periculosidade (Iluminismo) transforma-se para a noção de diferença, de produção de vida, de subjetividade.

(GRADELLA JR., p. 5, 2012)

Vale ressaltar ainda, que em 1987 é inaugurado no país o primeiro Centro de Assistência Psicossocial, o CAPS Itapeva, na cidade de São Paulo. Esse serviço cumpre a função de “oferecer cuidado intensivo a usuários com quadro psiquiátrico grave sem lançar mão da hospitalização ou do frágil modelo ambulatorial”

(AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2071) e surge como um dispositivo extra-hospitalar baseado nos conceitos de regionalização, hierarquização e integração (ROSA, 2016).

Também nesse período, o município de Santos é palco de uma importante intervenção da Secretaria Municipal de Saúde no hospital psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta “em função das atrocidades, incluindo-se mortes, cometidas por pacientes lá internados” (YASUI, 2010, p. 47). Nesse contexto, são instaurados em Santos, os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), bem como residências para egressos do hospital, e uma cooperativa de trabalho (AMARANTE e NUNES, 2018).

A experiência do município de Santos passa a ser um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira. Trata-se da primeira demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possível e exequível. (BRASIL, 2005, p. 2)

Outro grande marco para a discussão da saúde mental no Brasil foi a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que assegurou a implementação do

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Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como seus princípios, a universalização, integralidade, descentralização e o controle social (BRASIL, 1988).

São os princípios do SUS que norteiam a reforma psiquiátrica.

Primeiro deles, a universalidade do atendimento. Todos têm direito ao atendimento pleno. O segundo princípio é a equanimidade, a ideia da justiça. Não podemos estigmatizar, deixar de fora ninguém que por algum motivo não esteja a nosso alcance. Em terceiro, a descentralização. Evitar a desterritorialização e ter serviços descentralizados cada vez mais perto das pessoas. Alas psiquiátricas em hospital geral, portas de entrada universal, integração programada na saúde da família e ver a internação, quando necessária, como proteção e acolhimento pessoal, e não como horas leito, inadequada à natureza do cuidado psiquiátrico.

O quarto princípio é a integralidade dos serviços e dos dispositivos para o paciente e suas necessidades. Da vacina ao transplante, do velho calmante aos neurolépticos de última geração, todos têm que estar à disposição do paciente, para que ele crescentemente possa sair do tratamento compulsório e caminhar para o voluntário.

O quinto é o controle social derivado de discussões e decisões de Congressos, Conferências e Conselhos protegendo os Conselhos de Saúde da manipulação política e da desinformação. (DELGADO, 2011, p. 4704)

Entretanto, foi especialmente com a sanção da Lei Federal nº 10.2162 (BRASIL, 2001), que redireciona a assistência psiquiátrica no país, defendendo o estabelecimento de uma rede de serviços comunitários substitutos aos hospitais psiquiátricos (ANDRADE e MALUF, 2017), que a reforma psiquiátrica é impulsionada e ganha um novo ritmo no país (BRASIL, 2015). Foi a partir dessa lei que os CAPS passaram a receber investimentos públicos massivos, com o intuito de extinguir progressivamente os manicômios do território nacional (BERNARDO e GARBIN, 2011).

Enquanto esse Projeto de Lei (PL) ainda tramitava, algumas outras leis foram aprovadas, dando destaque a lei que institui o Serviço de Residenciais Terapêuticos (BRASIL, 2000), que teve um grande impulsionamento com implantação do Programa de Volta Para Casa (AMARANTE e NUNES, 2018) - Lei nº 10.708 -3 (BRASIL, 2003).

3Lei Federal nº 10.708: Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações

2Lei Federal nº 10.216: Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

(20)

Na história da atenção às pessoas com transtornos mentais no Brasil, por muito tempo o tratamento foi baseado no isolamento dos pacientes em hospitais psiquiátricos. Isso acabou gerando um grande contingente de pacientes afastados por longo tempo do convívio social e que precisam de especial apoio para sua reinserção na sociedade.

Visando promover e facilitar esse processo, o Ministério Da Saúde está lançando o Programa “De Volta para Casa”, que tem por objetivo a inserção social de pessoas acometidas de transtornos mentais, incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados. (BRASIL, 2003, p.1)

Amarante e Nunes (2018) ainda pontuam alguns outros marcos fundamentais das políticas de saúde mental do SUS, como a redefinição dos CAPS levando em conta sua organização, o porte e a especificidade da clientela atendida (Portaria/GM nº 336, de 19/02 de 2002), passando a existir CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi (infantil ou infanto-juvenil) e CAPSad (álcool e drogas). Em 2008, através da Portaria 154, foi firmado o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) “com o objetivo de propiciar ‘apoio matricial’ às equipes de Saúde da Família, cumprindo um importante papel de dar suporte tanto técnico quanto institucional na atenção básica”

(AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2072). Já em 2011 foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Portaria GM/ MS nº 3.088 de 23/12 de 2011), dentre os objetivos principais estavam: o aumento ao acesso à atenção psicossocial por parte da população, bem como disponibilização dos pontos de atenção para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas e suas famílias, e por fim, a garantia “da articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências”

(AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2072).

1.3. Atenção psicossocial em contraponto ao modelo biomédico

Após essa contextualização histórica sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil e no mundo, é fundamental que sejam pontuadas as diferenças entre as visões do modelo biomédico e da atenção psicossocial, dois paradigmas que olham para os processos promoção de saúde mental - e de saúde como um todo - de formas distintas e contrastantes.

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O modelo biomédico ou mecanicista teve seu início vinculado ao contexto renascentista e a todas as revoluções artísticas, culturais da época, para além das diversas mudanças de ordem técnico-científica ocorridas a partir do século XV, e apesar deste modelo datar de vários séculos passados, ainda é predominante na medicina atual. (BARROS, 2002)

Nesse paradigma, o alvo do interesse médico passou a ser a descrição clínica dos achados propiciados pela patologia (BARROS, 2002). Dessa forma, a doença foi postulada como um desvio do normal com uma ênfase voltada exclusivamente às anormalidades biológicas (RAMOS, 2018).

A ênfase sobre os sistemas corporais como um todo foi substituída pela tendência a reduzir os sistemas a partes menores, de modo que cada sistema era considerado separadamente. Ao mesmo tempo, o olhar clínico saiu do individual e voltou-se para os aspectos universais da patologia. [...] A busca de uma etiologia específica apoiou ainda mais essa tendência em direção ao reducionismo, pois procurava uma única causa específica de doença [...] Além do mais, o reducionismo era indispensável à experimentação em laboratório, a qual exigia que um sistema fosse controlado por uma ou poucas variáveis. [...] A referência ao paciente como indivíduo foi posta de lado porque se acreditava que essas normas eram essencialmente universais [...] Medidas, testes e diagnósticos podiam ser feitos sem considerar as características sociais, morais e psicológicas do paciente. Desse modo, a prática de enfocar as qualidades específicas do paciente foi desencorajada. [...] Concluindo, ao entrarmos no século XX com uma visão fragmentada do homem, percebemos no campo médico uma ênfase na compartimentalização, objetividade, concretude e padronização de sintomas. (RAMOS, 2018. p 32 - 34)

Sobre a medicina, Canguilhem acrescenta em seu texto que:

[...] a medicina de hoje fundamentou-se, com a eficácia que cabe reconhecer, na dissociação progressiva entre a doença e o doente, ensinando a caracterizar o doente pela doença, mais do que identificar uma doença segundo o feixe de sintomas espontaneamente apresentado pelo doente (CANGUILHEM, 2005, p.

24)

A partir disso, é possível afirmar que essa perspectiva também pauta a psiquiatria hegemônica, que por sua vez, alicerçada pela legitimidade atribuída à ciência, se usa das classificações de transtornos mentais, construindo modelos de classificação que são reivindicados como seus objetivos de pesquisa. Nesse contexto que surgiram os manuais de diagnósticos, como é o caso do Diagnostic

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and Statistical Manual of Mental Disorders4 (DSM), considerado a “bíblia” da psiquiatria contemporânea, não só pela sociedade, como também por inúmeros profissionais da saúde mental (FREITAS e AMARANTE, 2017).

Tal modelo psiquiátrico, moldado à luz dos pressupostos biomédicos, foi obtendo como sua característica mais fundante um sistema ‘terapêutico’ baseado na hospitalização (AMARANTE, 2007):

O hospital tornou-se, a um só tempo, espaço de exame [...], espaço de tratamento (enquadramento das doenças e doentes, disciplina do corpo terapêutico e das tecnologias terapêuticas) e espaço de reprodução do saber médico [...]. Mas, se é verdade que este novo modelo produziu um saber original sobre as doenças, em contrapartida, é verdade que este saber referia-se a uma doença institucionalizada, isto é, a uma doença modificada pela ação prévia da institucionalização. Em outras palavras, a doença isolada, em estado puro, como pretendia a história natural, terminava por ser uma doença produzida, transformada pela própria intervenção médica. (AMARANTE, 2007, p. 26)

Ademais, a psiquiatria hegemônica, por considerar a doença como um objeto natural e externo ao indivíduo, passou a se ocupar exclusivamente da doença, esquecendo-se dos indivíduos, que ficaram simplesmente como pano de fundo, ou seja, o sujeito é colocado em parênteses para analisar a doença. Franco Basaglia, precursor da reforma psiquiátrica italiana, por sua vez, propôs o contrário: colocar a

“doença em parênteses” para se ocupar do sujeito em sua experiência. Essa proposta não recusaria, porém, a existência do sofrimento, da dor, do mal-estar e até da doença em si:

A estratégia de colocar a doença entre parênteses é, a um só tempo, uma ruptura com o modelo teórico-conceitual da psiquiatria que adotou o modelo das ciências naturais para conhecer a subjetividade e terminou por objetivar e coisificar o sujeito e a experiência humana.

E na mesma medida em que a doença é posta entre parênteses, aparecem os sujeitos que estavam neutralizados, invisíveis, opacos, reduzidos a meros sintomas de uma doença abstrata. (AMARANTE, 2007, p. 67)

Através dessa troca de posições, em que o sujeito, em sua complexidade, toma a centralidade, é possível ampliar as concepções de integralidade no campo da saúde mental e da atenção psicossocial (AMARANTE, 2007). Dessa forma,

4Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

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podemos definir as abordagens psicossociais como aquelas que visam a (des)institucionalização, a construção da autonomia possível e a superação de práticas de saúde curativas individuais, que promovem um distanciamento estrutural para com as relações sociais e subjetivas do indivíduo (SOALHEIRO e MARTINS, 2017). Ou seja:

Na saúde mental e atenção psicossocial, o que se pretende é uma rede de relações entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam - médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentre muitos outros atores que evidenciados neste processo social complexo - com sujeitos que vivenciam as problemáticas - os usuários e familiares e outros atores sociais [...]

Os serviços de atenção psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexível para que não se tornem espaços burocratizados, repetitivos, pois tais atitudes representam que estariam deixando de lidar com as pessoas e sim onde a crise possa ser com as doenças.

Como devem ser lugares onde a crise possa ser acolhida (AMARANTE, 2007, p. 84 - 85)

Dessa forma, fica claro o alinhamento entre o modelo reformista às práticas de atenção psicossocial. E para que atenção psicossocial, focada em práticas não manicomiais, possa ter êxito, é indispensável “defender mecanismos e critérios de financiamento que reforcem as propostas da Reforma - como a construção de redes territoriais de assistência, o estímulo a dispositivos do tipo CAPS, a implantação de programas de moradia e assim por diante” (BEZERRA JR., 2007), ou seja, é necessário defender dispositivos do sistema público de saúde brasileiro.

Dado que o SUS é elementar para a existência de uma política de saúde antimanicomial e psicossocial, é preciso entender o momento atual de desmonte dessa política pública, além das aproximações com as noções biologizantes e manicomiais que o campo da saúde vem sofrendo, principalmente, a partir de 2015 com a entrada de governos neoliberais no país.

1.4. A Reforma Psiquiátrica em tempos de desmonte

Até o ano de 2015, continua o alargamento do acesso aos cuidados, tanto para transtornos mentais graves e persistentes como para transtornos mentais menos acentuados, seguindo um contínuo desenvolvimento de serviços e renovação de processos de trabalho (DELGADO, 2019).

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Todavia, apesar dos diversos avanços que a Reforma Psiquiátrica vinha conquistando, esse panorama sofreu mudanças bruscas a partir de 2016 com os projetos de saúde do governo ilegítimo de Michel Temer e do atual governo de Jair Bolsonaro (DELGADO, 2019). O projeto de ambos os governos aponta para o desmonte do SUS, focando em um “Projeto Privatista que tem sua lógica orientada pelas regras de mercado e pela exploração da doença como fonte de lucros”

(BRAVO, PELAEZ e MENEZES, 2019, p. 02), seguindo um caminho oposto aos direitos pleiteados pelos movimentos antimanicomiais e reformistas.

A partir do Governo Temer verifica-se a aceleração e a intensificação das políticas que contribuem com o desmonte do Estado brasileiro.

No governo Bolsonaro tem-se a perspectiva de aprofundamento das contrarreformas iniciadas no governo anterior. (BRAVO, PELAEZ e MENEZES, 2019, p. 02)

No artigo Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte, Delgado (2019) retoma medidas que foram definidas entre 2016 a 2019. Dentre elas estão: (1) a modificação do Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que altera os parâmetros populacionais e dispensa a determinação da presença do agente comunitário de saúde nas equipes de saúde da família, “com consequências imediatas de descaracterização e fragilização da atenção básica” (DELGADO, 2019, p.02); (2) A expansão do financiamento de hospitais psiquiátricos; (3) Diminuição dos cadastros de CAPS, “em proporção ainda imprecisa, uma vez que o Ministério da Saúde deixou de fornecer os dados sobre a rede de serviços de saúde mental”

(DELGADO, 2019, p.02); (4) Amplificação do financiamento para vagas em Comunidades Terapêuticas (CTs); (5) Restauração da centralidade do hospital5 psiquiátrico “e recomendou a não utilização da palavra ‘substitutivo’ para designar qualquer serviço de saúde mental” (DELGADO, 2019, p. 02-03); (6) Reconstituição do hospital-dia “um arcaísmo assistencial, vinculado aos hospitais psiquiátricos, sem definir sua finalidade, em evidente reforço ao modelo desterritorializado”

5 Embora em sua origem histórica, conceitual e metodológica, o movimento das CT tenha muitas mais semelhanças do que diferenças com o proposto pela Reforma Psiquiátrica e o Movimento de Luta Antimanicomial, na prática, pelo menos no Brasil, a realidade é diferente, como confirmado por diversas investigações realizadas na atualidade. De fato, uma boa parte das CT no Brasil possui práticas tão desumanas e iatrogênicas quanto às das antigas instituições asilares manicomiais, sem garantir minimamente a preservação dos direitos humanos mais básicos. (PERRONE, 2013, p. 578 )

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(DELGADO, 2019, p.03); (7) Recriação do ambulatório de especialidade, também sem referência territorial.

Além disso, em 2019 é assinada a Nota Técnica 11/2019 (BRASIL, 2019), que reafirma as medidas tomadas na gestão de Temer.

[...] o documento apontou as mudanças realizadas na direção da política. Além da crítica genérica sobre a ‘ideologia’ presente na política de saúde mental (reproduzindo a retórica ideológica

‘anti-ideologia’ do governo Bolsonaro), substituída por uma visão

‘científica’, alguns pontos devem ser destacados, pois representam uma medida direta de desconstrução da reforma psiquiátrica: reforço do papel estratégico do hospital psiquiátrico; ênfase na internação de crianças e adolescentes; ênfase em métodos biológicos de tratamento, como a eletroconvulsoterapia; disjunção entre a saúde mental e a política de álcool e outras drogas; e condenação das estratégias de redução de danos. (DELGADO, 2019, p.03)

O que foi iniciado em 2019 foi só o início de uma política genocida que foi se desenrolando de forma desenfreada nos anos que se seguiram. Em 2020, o Brasil viveu um ano caótico com a chegada do coronavírus no país, somado à péssima gestão do governo durante a maior crise sanitária do mundo contemporâneo. Em 2021, esse cenário se intensificou e o Brasil se tornou um dos principais epicentros de Covid-19, ultrapassando o número de 500 mil mortes no mês de junho .6

Além dessa ineficaz gestão governamental no combate à crise sanitária, que envolveu, por exemplo, a troca de ministro da saúde quatro vezes durante a pandemia , a recusa de compra de milhões de doses de vacinas, a indicação de7 remédios sem eficácia comprovada para tratamento de Covid-19 e o descaso com as mais de 500 mil vidas perdidas decorrentes do vírus, o governo Bolsonaro favoreceu caminhos cada vez mais concretos para o desmonte do SUS, durante um momento em que o SUS nunca se fez tão imprescindível.

7Dados referentes ao período de produção dessa pesquisa (até junho de 2021)

6 Epicentro do vírus, Brasil tem percentual de positivos 6 vezes acima do almejado, CNN NEWS.

Disponível em

<https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/12/epicentro-da-pandemia-brasil-reduz-testagem-e-tem -percentual-de-positivos-6-vez> Acessado em 08/05/2021

Brasil atinge marca trágica de 500 mil mortes pela Covid, G1. Disponível em

<https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/06/19/brasil-atinge-marca-tragica-de-500-mil-morte s-pela-covid.ghtmll> Acessado em 19/06/2021

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O trecho a seguir refere-se a uma publicação da Revista Piauí, nesta notícia são apresentadas algumas diretrizes do governo federal para 2021 no tocante a saúde:

[...] o SUS enfrenta a perspectiva de redução de gastos em 2021 – uma redução que decorre inclusive de medidas que Mandetta adotou ou apoiou. O orçamento do Ministério da Saúde chegou ao Congresso com quase 43 bilhões de reais a menos do que os gastos autorizados neste ano.

Como se não bastassem os possíveis cortes, há pressões no Congresso Nacional para ampliar o espaço da iniciativa privada no sistema de saúde, em debate que aguarda o fim das eleições municipais. [...]

Objeto de um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de outubro e revogado dois dias depois, a construção e a ampliação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) terão menos verbas federais em 2021, de acordo com o projeto de lei orçamentária enviado pelo governo ao Congresso (500 mil reais a menos). O mesmo acontece com os investimentos federais na estruturação da rede de atenção primária à Saúde, a porta de entrada no SUS, hoje bancada majoritariamente pelos próprios municípios. Nesses investimentos, a redução chega a 30%, um corte de 15 milhões de reais.(SALOMON, 2020, n.p)

Além dos cortes orçamentários, as políticas de saúde mental também sofreram diversos retrocessos ao longo do governo Bolsonaro, um desses retrocessos foi a proposta de revogação de portarias e o encerramento de programas de saúde mental. “Em meio à pandemia da Covid-19 e durante o recesso do Congresso Nacional, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho que busca repensar os serviços e revogar as portarias ligadas à política de saúde mental. Essa proposta colocaria em risco o modelo de atenção psicossocial e ameaça a luta da história da saúde mental no Brasil.” (POLAKIEWICZ, 2021).

O “revogaço” pretende, entre outras medidas: extinguir o Programa De Volta pra Casa, instituído por lei em 2003, que visa à reinserção social de pacientes com transtornos mentais que tenham permanecido por um longo tempo internados em instituições psiquiátricas; acabar com mecanismos de fiscalização e estímulo à redução dos hospitais psiquiátricos e com equipes que atuam na transferência de pacientes com transtornos mentais dos hospitais para serviços comunitários; encerrar o funcionamento da estratégia Consultório na Rua, que oferece atendimento à saúde voltado para pessoas em situação de rua; flexibilizar o controle sobre internações voluntárias, com a revogação de uma portaria que determina que o Ministério Público seja comunicado nesses casos. [...] Para Leonardo

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Pinho, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), a notícia não foi uma surpresa. Segundo ele, a revogação das portarias estaria alinhada com um processo de

“contrarreforma psiquiátrica” que vem se desenrolando ao longo dos anos. (ANTUNES, 2020, n.p.)

Além disso, foi demonstrada a participação da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) no processo de feitura da planilha que propunha a revogação:

A ABP desde o início está integrada ao processo de elaboração do revogaço. O material começou a ser preparado em agosto (2020), após reunião entre representantes da Associação e a então coordenadora de saúde mental Maria Dilma. Na ocasião, a ABP apresentou o documento Diretrizes Para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil, que se tornaria a base da planilha vazada pela imprensa na última semana. Criticado por psiquiatras e outros profissionais ligados à reforma psiquiátrica, o material defende, por exemplo, a volta dos ambulatórios especializados, que, se implantados, tirariam dos CAPS a função de atender emergências e de realizar intervenções ambulatoriais, enfraquecendo o serviço. Questionado sobre as intenções por trás da proposta, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental Leonardo Pinho, é enfático: “A volta das clínicas e hospitais psiquiátricos atende aos interesses da iniciativa privada Internações em leitos privados, por um lado, ambulatórios especializados em substituição ao atendimento psicossocial dos CAPS, por outro. Isso favorece dois segmentos de mercado: o das clínicas e hospitais, que ganham com as internações; e o da indústria farmacêutica, porque a ambulatorização na saúde significa aumento da quantidade de remédios receitados. Exatamente o contrário do que propõe a Rede de Atenção Psicossocial, cujo objetivo é, sempre, diminuir a medicação e preservar a dignidade do usuário do sistema de saúde mental.” (MARTINS, 2020, n.p.)

Levando em conta este cenário de retrocessos às bases asilares e manicomiais e de desmonte de políticas públicas que o Brasil vem enfrentando, principalmente frente aos governos neoliberais vigentes desde 2015, cabe aos estudantes, aos trabalhadores da área da saúde e a sociedade como um todo, fazer resistência e se conscientizar do momento político presente. E nesse sentido, Delgado termina seu texto, anteriormente citado, com o seguinte apelo:

No campo da atenção psicossocial, há um vasto movimento de luta, formado por dezenas de milhares de profissionais diretamente implicados nos serviços, aliados a estudantes, usuários e familiares.

A trincheira da resistência está nos serviços territoriais. (DELGADO, 2019, p. 4)

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Assim, alinhando o que foi apresentado até agora com o tema desta pesquisa, e tendo em vista que um dos preceitos que a reforma psiquiátrica defende é o trabalho em rede com uma equipe multidisciplinar alinhada, é importante que se entenda como os futuros profissionais da área da saúde articulam seus saberes acerca de uma visão antimanicomial em relação às questões de saúde mental, podendo assim fazer oposição contundente aos retrocessos atuais e, exercer serviços de saúde de qualidade, respeitando a individualidade e a liberdade de todos.

Alguns estudos atuais abordando essa temática, apontam a não superação dos modelos biomédicos, principalmente em áreas como enfermagem e medicina.

Na pesquisa Atitudes e Representações em Saúde Mental: Um Estudo com Universitários buscou a obtenção de dados referentes às representações sociais de estudantes das graduações de Psicologia, Medicina e Enfermagem sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre a figura do doente mental, associando-as com a adesão aos paradigmas de atenção à saúde mental (SOUSA et al, 2016). Foi demonstrado, a partir da coleta de dados, feita com a Escala de Atitudes em Saúde Mental (SOUSA et al, 2015) e da Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP), que há

[...] entre os universitários, um conhecimento acerca dos preceitos teóricos que caracterizam a Reforma Psiquiátrica, dado evidenciado pela atitude dos universitários dos três cursos ser pautada no paradigma psicossocial e pelas suas representações acerca da reforma estarem de acordo com o que preconiza a atual política do campo da saúde mental. Contudo, esses estudantes demonstraram uma representação do doente mental marcada pelo medo e exclusão, pautada no paradigma biomédico. No núcleo central das representações sociais do doente mental, onde se concentram os elementos mais rígidos e de mais difícil mudança, observaram-se palavras como “doença” e “doido”, demonstrando o quão fortemente a visão estigmatizada do doente mental ainda se faz presente.

(SOUSAet al, p. 535, 2016)

Foi indicada ainda, através de análises de variância, uma diferença entre as médias dos universitários no paradigma biomédico, apontando para Medicina como o curso com a maior pontuação nesse paradigma, e a Psicologia com a maior pontuação para o paradigma psicossocial.

Ao final da pesquisa, as autoras apontam para a importância da análise das atitudes e representações sociais em relação a Reforma Psiquiátrica e a figura do

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doente mental no meio universitário, e também indicam a relevância da compreensão do comportamento dos futuros profissionais do campo da saúde mental, “permitindo identificar como esses universitários compreendem as mudanças ocorridas no âmbito da saúde mental, em decorrência da Reforma Psiquiátrica, e em quais aspectos teóricos estarão pautadas suas futuras práticas”

(SOUSA et al, p. 535, 2016). Ademais, as pesquisadoras demonstram a relevância de novos estudos acerca do doente mental, do preconceito e do processo de inclusão social, para servir de embasamento na “proposição de políticas públicas que favoreçam a efetivação do paradigma psicossocial na sociedade, enfatizando a desconstrução de representações negativas e o incentivo de atitudes mais positivas e inclusivas (SOUSA et al, p. 536, 2016).

Já na pesquisa Processos formativos da docência em saúde mental nas graduações de Enfermagem e Medicina (LINO et al, 2016), são levantadas inquietações a respeito do ensino nos cursos de Medicina e de Enfermagem com a temática da saúde mental alinhada com os princípios da reforma psiquiátrica, buscando contribuir para o debate sobre a formação comprometida com “a produção de práticas pedagógicas profícuas no contexto da saúde mental, e de perspectivas mais críticas em relação às práticas desenvolvidas nos cursos” (LINO et al, p.85, 2016). Através da aplicação de uma entrevista semiestruturada sobre os conhecimento acerca de saúde mental dos docentes, realizada com nove professores dos cursos de Enfermagem e Medicina de cinco universidades públicas do estado da Bahia, efetuada no ano de 2008, foi concluído que em ambos os cursos há um discurso oriundo de uma imagem distorcida da saúde mental, vinculada a teorizações e práticas reducionistas características da psiquiatria tradicional.

Assim como a pesquisa citada anteriormente, nesse estudo as autoras também afirmam a relevância da continuidade das pesquisas referentes à formação em saúde mental, alegando uma escassez de produções acadêmicas nessa temática. E por fim, expõe a importância da intensificação dos conhecimentos em saúde mental como forma de superação das “fragmentações no campo da pesquisa, ensino e assistência de melhor qualidade, como preconiza o Sistema Único de Saúde.” (LINOet al, p.91, 2016).

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Frente ao cenário político atual que exige resistência aos desmontes sistemáticos promovidos pelo governo neoliberal vigente, e as pesquisas recentes que demonstram uma não superação dos modelos asilares de saúde mental, é necessário a continuidade nos estudos acerca das práticas atuais de saúde mental e seus alinhamentos com o paradigma antimanicomial.

Dessa forma, a presente pesquisa tem como objetivo identificar e analisar como os cursos de Medicina e Psicologia da PUC-SP abordam os temas da Reforma Psiquiátrica e das práticas antimanicomiais ao longo dos anos de graduação.

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2. MÉTODO

Tendo em vista o objetivo acima descrito, a seguir serão apresentadas as estratégias metodológicas para alcançá-lo de modo efetivo e obter resultados analisáveis e fidedignos.

Para embasar a pesquisa foi efetuada uma revisão bibliográfica que orientou a elaboração do projeto de modo transversal. Foram efetuadas leituras em bases nacionais e internacionais a respeito da reforma psiquiátrica, para entendimento mais aprofundado da temática, leituras sobre o sistema de saúde brasileiro e sua história e, por fim, foi realizado um levantamento de pesquisas acadêmicas que pudessem servir de luz a esse projeto, seja pela proximidade temática ou pela semelhança metodológica.

Inicialmente, o projeto contaria com a aplicação de um questionário semi-dirigido com alunos do último ano de graduação de Psicologia e Medicina da PUC-SP, acerca das noções que esses estudantes têm a respeito da Reforma Psiquiátrica e das práticas antimanicomiais. Entretanto, devido aos empecilhos causados pela pandemia de Covid-19, a realização presencial desses questionários seria impossibilitada.

Foi escolhido um rumo distinto, visando uma análise voltada para instituição de ensino e não mais para seus estudantes. Essa análise teve como intuito qualificar os contatos promovidos ao longo da graduação de Medicina e Psicologia em relação à reforma psiquiátrica e às práticas antimanicomiais. Para isso foram escolhidas duas estratégias de método:

Primeiramente, foi feita uma análise documental através dos planos curriculares de ambos os cursos com o intuito de traçar os processos de construção teórica dos saberes em saúde mental e os possíveis alinhamentos com as pautas levantadas pela reforma psiquiátrica. A importância dessa etapa de análise documental se faz dado que o uso de documentos em pesquisa permite uma riqueza de informações que podem ser extraídas dos mesmos, justificando o uso em diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, uma vez que possibilita a ampliação do entendimento de objetos cuja compreensão necessita de contextualização histórica e sociocultural (SÁ-SILVA, ALMEIDA, GUINDANI, 2009).

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A segunda estratégia foi a efetuação de entrevistas semiestruturadas prolongadas com docentes de ambos os cursos, essas entrevistas tinham como objetivo proporcionar um maior embasamento aos dados curriculares colhidos, além de permitir uma análise qualitativa através do relato e das experiências profissionais das professoras.

Para atingir o objetivo descrito acima foram convidadas duas docentes de referência, uma de cada curso.

A professora escolhida para relatar suas experiências na faculdade de Psicologia da PUC-SP foi a Profa Dra Elisa Z. Rosa. A professora é formada em psicologia pela PUC-SP (1999), local onde concluiu também seu mestrado (2005) e doutorado (2016). Atualmente, é professora do departamento de Psicologia Social e do Núcleo de Saúde Mental da faculdade, além de já ter ocupado cargos de gestão no curso. A professora é uma grande referência interna e externa nos debates acerca da reforma psiquiátrica e da Psicologia no geral, fator que foi decisivo para que ela fosse pensada como figura importante na composição dos relatos desta pesquisa.

Já a professora convidada da Medicina da PUC-SP foi a ProfaDraAna Laura Schliemann. Assim como a professora Elisa, Ana também tem sua formação acadêmica pela PUC, especificamente na área de psicologia. Atualmente é docente do curso de Psicologia da PUC-SP, que foi coordenadora de estágios e ministrou aulas em disciplinas como: Desenvolvimento, Psicologia Construtivista e Trabalho de Grupo em Instituição de Saúde. Porém, apesar da sua notória carreira acadêmica na psicologia, a ideia de chamar essa professora para integrar o projeto com sua experiência, veio da sua atuação como docente na Medicina da PUC-SP, onde trabalha com os estudantes questões como empatia, comunicação, comunicação não verbal e mais especificamente comunicação de notícias ruins. A vinculação de Ana Laura com ambos os cursos foi um dos motivos centrais para a pesquisadora efetuar o convite para a entrevista, uma docente com experiências em ambos os cursos poderia agregar com uma visão aprofundada tanto da Medicina como da Psicologia.

Por conta da situação pandêmica enfrentada na época da elaboração da pesquisa, as entrevistas foram realizadas a distância pela plataforma virtual Teams,

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