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4. FATORES A SEREM CONSIDERADOS NA RESOLUÇÃO DO PROBLEMA DA

4.1 RELAÇÃO ENTRE A CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA E O CONTRATO AO

4.1.2 Relação de acessoriedade

Existe uma tendência geral, tanto da doutrina brasileira quanto da estrangeira, de considerar a convenção de arbitragem como um acordo totalmente autônomo. Ainda assim, a maioria dos países trata a cláusula compromissória como parte acessória do contrato124, o que gera inconsistência metodológica. Entende-se que a cláusula compromissória é parte integrante do contrato e, por isso, é cedida junto com o contrato ao qual se reporta, em caso de eventual cessão de contrato.

Girsberger e Hausmaninger alertam para o fato de que alguns doutrinadores consideram autônoma a cláusula arbitral apenas em relação à sua validade, mas acessória em relação à sua transferência. Criticam a incoerência da posição e afirmam que geralmente as cortes não explicam a distinção. Apesar da tendência geral de ver a convenção de arbitragem como um acordo inteiramente autônomo, a maioria das jurisdições ainda trata a cláusula compromissória como uma parte integrante do contrato125, no que toca à questão da transferência126.

António Caramelo destaca que o conceito técnico de autonomia não corresponde bem à relação que se estabelece entre a cláusula arbitral e o contrato, no caso da sua transferência na cessão de posição contratual. Na maioria dos sistemas jurídicos, a cláusula compromissória, em que pese seja autônoma, é transmitida automaticamente junto com o

124RECHSTEINER, Beat Walter. Arbitragem privada internacional no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2001, p.53: “A convenção de arbitragem é autônoma, juridicamente, perante o acordo principal estabelecido entre as partes, embora, em muitos casos, a primeira possa ser uma parte integrante da segunda.”

125 Quando os autores mencionam o termo “parte integrante”, querem dizer “parte acessória”. No Brasil, existe

diferença doutrinária entre a cláusula ser parte integrante de um contrato e ser acessório dele. Tal diferenciação não parece ser feita no artigo de Girsberger e Hausmaninger, de forma que a crítica dos autores não vilipendia a nossa posição de que a cláusula compromissória é autônoma e também parte integrante do contrato, podendo ser cedida junto com ele, por meio de apenas uma manifestação de vontade.

126GIRSBERGER, Daniel; HAUSMANINGER, Christian. Assignment of Rights and Agreement to Arbitrate.

Arbitration International, v. 8, iss. 2, p. 138, jun. 1992: “Despite a general tendency to view the arbitration

agreement as a fully autonomous agreement, however, most jurisdictions still treat the arbitration clause as an integral part of the contract when it comes to the issue of transfer. Treating the arbitration agreement at the same time autonomous and as an integral part of the main contract is somewhat inconsistent and calls for justification. Courts and commentators fail, however, to justify this disparate treatment of the arbitration agrément.”

contrato “principal”127, o que para ele é inconcebível, pois só um acessório seria também transferido. Discorda-se do referido posicionamento, pois basta a cláusula ser parte integrante do contrato para também ser transferida.

Caramelo prefere, assim, o uso do termo “instrumentalidade da cláusula compromissória”, para afastar a sua autonomia nos casos de cessão. Entretanto, considera-se, no presente trabalho, que não é preciso apelar para o argumento da acessoriedade para justificar a transferência da cláusula compromissória. O uso da corrente unitária da cessão de posição contratual fornece o arcabouço teórico necessário para que a cláusula compromissória seja também transferida.

Girsberger e Hausmaninger, buscando sistematizar as hipóteses de “transmissão automática da convenção arbitral”, propõem o seguinte modelo, ao nosso ver didático, porém extremamente purista, pois somente as convenções arbitrais consideradas acessórias poderiam ser transferidas automaticamente:

Relação de baixa autonomia

Em arbitragem comercial internacional, o princípio da autonomia da convenção de arbitragem já está consagrado e não impede que se opere a transferência automática da cláusula compromissória. O fato de a cláusula ser autônoma não significa que seja um negócio jurídico completamente alheio ao contrato no qual se encontra inserida, demandando consentimento em termo apartado para que seja transferida. Na verdade, a autonomia defendida pela maioria dos países de civil law se refere ao condão que a cláusula

127CARAMELO, António Sampaio. A "autonomia" da cláusula compromissória e a competência da

competência do Tribunal Arbitral. Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 68, p.360, jan., 2008. Disponível em: <https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2008/ano-68-vol- i/doutrina/antonio-sampaio-caramelo-a-autonomia-da-clausula-arbitral/>. Acesso em: 18 fev. 2018.

Convenção de arbitragem (arbitration agreement) Acessório (accessory right) Transferência automática (sem duplo consentimento)

Contrato principal (main contract)

arbitral tem de não ser extinta com a extinção do contrato ao qual se refere e nem de ser considerada nula, obrigatoriamente, em caso de nulidade do contrato.

Se a validade da cláusula compromissória dependesse da validade do contrato no qual está inserida, bastaria que uma das partes invocasse a invalidade do primeiro para que a atuação do árbitro fosse afastada. Dessa forma, a eleição da via arbitral perderia sua efetividade, pois seria necessário que, primeiramente, o Poder Judiciário concluísse pela validade do contrato antes que o árbitro pudesse atuar.

Tendo a arbitragem internacional se tornado o modo normal de solução de litígios econômicos internacionais, passou a ser necessário um regime jurídico específico aplicável à cláusula compromissória inserida nos contratos internacionais. Importava, em primeiro lugar, proteger a validade da cláusula arbitral, colocando-a ao abrigo de incursões dilatórias, principalmente nos casos de questionamento da validade do contrato que a estipulou. Com base nessas premissas, a jurisprudência estabeleceu a regra chamada de autonomia da cláusula de arbitragem internacional.

Em uma ótica estritamente lógica, caso o tribunal arbitral decidisse que certo contrato era, em sua integralidade, inválido, a cláusula compromissória nele incluída também seria inválida, caso não possuísse autonomia. Dessa forma, o instrumento por meio do qual o árbitro obtinha a sua competência desapareceria, o que tornaria um contrassenso aceitar a sentença arbitral proveniente de um árbitro sem investidura128.

Neste ponto, vigora a lição de Pontes de Miranda sobre a teoria das nulidades, em que utiliza a expressão “separabilidade” como decorrência do brocardo utile per inutile no

vitiatur. No caso da cláusula compromissória, com base em expressa autorização legal, é

possível destacar a parte válida da parte inválida, mesmo que a regra geral do direito dos contratos seja pela inseparabilidade.

A inseparabilidade resulta da natureza do negócio ou do ato jurídico stricto sensu, ou da subordinação do todo à parte nula129. No caso da cláusula compromissória, a sua autonomia faz com que subsista ainda que o contrato que a previu deixe de existir, de forma que o procedimento arbitral poderá ser iniciado, para solucionar questões decorrentes do contrato extinto.

128REDFERN, Alan; HUNTER, Martin. On International Arbitration. 5. ed. Oxford: Oxford University Press,

2009, p. 117.

129PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. T. IV. Atual. por Marcos

Nem sempre a cláusula arbitral será invalidada diante da invalidação do resto do contrato. Por exemplo, a cláusula compromissória teria sua validade preservada em um contrato de cessão de herança de pessoa viva, que é inválido por constituir pacta corvina vedado pelo art. 426 do CC. As posições de direito material do contrato ofenderiam a lei, mas o negócio jurídico processual celebrado pelas partes de resolver os seus litígios por via da arbitragem, permaneceria válido e eficaz.

Registre-se que o fato de uma cláusula arbitral poder ser válida, apesar da invalidade do contrato que a contém, não significa necessariamente que o seja, de forma que, caso o árbitro decida equivocadamente sobre a validade da cláusula arbitral, sua decisão não escapará ao escrutínio do Poder Judiciário.

António Caramelo critica a adoção apenas do conceito de autonomia. Para ele, se dois contratos são considerados autônomos quando são independentes entre si, conclui- se que a cláusula compromissória não pode ser considerada autônoma, porque é inconcebível existir uma cláusula arbitral na ausência do resto do contrato. Da mesma forma, seria inconcebível haver um compromisso arbitral inexistindo um litígio ao qual se reportasse, visto que não se pode prever a arbitragem in vacuo130.

Concorda-se com as premissas adotadas pelo autor, mas discorda-se da conclusão. O fato de a convenção arbitral não poder existir sem um contrato ao qual se reporte não lhe retira a autonomia em relação ao contrato principal em aspectos como validade e extinção. No mesmo sentido, Pedro A. Batista Martins afirma que “o direito rechaça a cláusula compromissória aberta”, “sem fronteiras”. Na referida cláusula “sem fronteiras”, “as partes convencionam submeter à arbitragem litígios futuros desvinculados de qualquer relação jurídica preexistente”131, isto é, in vacuo.

Entende-se que a vedação à arbitragem in vacuo é completamente razoável. Sugerimos que a literalidade do artigo 4º, caput, da Lei de Arbitragem brasileira, também fundamenta a vedação: “as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir”. Concorda-se, dessa forma, com as

130CARAMELO, António Sampaio. A "autonomia" da cláusula compromissória e a competência da

competência do Tribunal Arbitral. Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 68, p. 359, jan., 2008. Disponível em: <https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2008/ano-68-vol- i/doutrina/antonio-sampaio-caramelo-a-autonomia-da-clausula-arbitral/>. Acesso em: 18 fev. 2018.

131MARTINS, Pedro Antônio Batista. O Poder Judiciário e a Arbitragem. Quatro anos da lei n. 9.307/96 (Parte

IV). Disponível em: <http://batistamartins.com/wp-content/uploads/kalins-pdf/singles/o-poder-judiciario-e-

premissas traçadas por António Caramelo, mas não adere-se à sua conclusão de que a convenção arbitral não possui autonomia.