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4. FATORES A SEREM CONSIDERADOS NA RESOLUÇÃO DO PROBLEMA DA

4.1 RELAÇÃO ENTRE A CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA E O CONTRATO AO

4.1.1 Relação de autonomia

A primeira consideração a ser feita é sobre o termo autonomia. Nas palavras de Fouchard, Gaillard e Goldman, o que é tradicionalmente chamado de autonomia da convenção arbitral é, na verdade, a autonomia da convenção em relação ao contrato ao qual se reporta109. A autonomia surgiu com o objetivo de proteger a validade da cláusula compromissória em relação ao contrato ao qual se reporta, “colocando-a ao abrigo de incursões dilatórias”110. Por exemplo, se uma parte resolve alegar a invalidade do “contrato principal”111, isso não afasta a jurisdição do árbitro para dirimir a controvérsia112.

Dessa forma, entende-se que o referido princípio não surgiu para resolver a questão da transmissibilidade da cláusula compromissória, mas sim para evitar o “bloqueio do procedimento arbitral”113. Caso não existisse, o Poder Judiciário se manifestaria primeiro sobre a validade do contrato, bloqueando a atuação do árbitro.

O termo separabilidade (severability/separability) também é usado para se referir à relação de independência entre a convenção arbitral e o contrato ao qual se refere. É utilizado principalmente nos países de common law. Embora tais países tenham certas restrições em relação à terminologia “princípio da autonomia da convenção de arbitragem”, é costume usá-la na Europa Continental114.

109FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Fouchard, Gaillard, Goldman on a

International Commercial Arbitration. Kluwer Law International: The Hague, Boston, London, 1999, p. 198: "What is traditionally meant by the autonomy of the arbitration agreement is its autonomy from the main contract in which it is found or to which it relates.”

110ANCEL, Jean-Pierre. A Corte de Cassação Francesa e a Arbitragem. Revista Brasileira de Arbitragem, v. 2,

n. 7, p. 47, 2005.

111Contrato que contém a cláusula compromissória ou contrato ao qual esta se reporta.

112Em tese, caso o contrato principal fosse nulo, nula também seria a cláusula nele inserida, o que retiraria o

fundamento da competência do árbitro. Entretanto, a autonomia vem sanar esse problema lógico, com o objetivo de fortalecer o instituto.

113PINHEIRO, Luís de Lima. Arbitragem Internacional – A determinação do estatuto da arbitragem. Coimbra:

Almedina, 2005, p. 119 apud CARAMELO, António Sampaio. A competência da competência e a autonomia

do Tribunal Arbitral. Disponível em: <https://portal.oa.pt/upl/%7B19b0df1c-938f-47c7-ab2d- c63e3542bfa8%7D.pdf>. Acesso em: 06 de fev. 2018, p. 355.

A existência de uma elevada autonomia da cláusula compromissória, para Girsberger e Hausmaninger, torna obrigatório o consentimento expresso e em termo apartado (duplo consentimento) para que se opere a transferência da cláusula arbitral a terceiro115. Esse modelo não é compatível com o ordenamento jurídico pátrio. Técio Spínola Gomes afirma a legislação brasileira não impõe a obrigatoriedade da dupla manifestação da vontade para a transmissão da cláusula compromissória116.

No mesmo sentido, Pedro Antônio Batista Martins dispõe que não há que se sustentar o princípio da autonomia da cláusula compromissória como argumento para sujeitar sua eficácia ao expresso consentimento do cessionário, pois a gênese do princípio da autonomia não se presta a atender a esse entendimento117. A autonomia serve para justificar o não bloqueio do procedimento arbitral em caso de eventual alegação de nulidade do contrato ao qual se reporta.

O segundo indicador é o fato de a legislação de cada país geralmente permitir que o contrato que prevê a cláusula compromissória seja regulado por uma lei e a convenção arbitral por outra. O Brasil adota este posicionamento, no artigo 2º, § 1º da Lei nº 9.307/1996118.

O terceiro fator é o fato de a nulidade do contrato não “contaminar” a convenção arbitral. A maioria dos países de civil law adota essa corrente, como o Brasil. Alguns países reconhecem a autonomia total da convenção, como a Holanda. O artigo 1053 da Lei de Arbitragem Holandesa dispõe que a convenção arbitral deverá ser considerada e julgada como um acordo separado do contrato principal”119.

No Brasil, adota-se a autonomia da cláusula compromissória, mas alguns doutrinadores ainda associam a sua transmissão automática na cessão de posição contratual a algum tipo de acessoriedade, posição da qual se discorda. A transmissão da

115GIRSBERGER, Daniel; HAUSMANINGER, Christian. Assignment of Rights and Agreement to Arbitrate.

Arbitration International, v. 8, iss. 2, p.137, jun. 1992.

116GOMES, Técio Spínola. A transmissibilidade da cláusula arbitral diante da cessão de posição contratual.

Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 5, ano 2, p.71, out./dez., 2015.

117MARTINS, Pedro Antônio Batista. Arbitragem, capacidade, consenso e intervenção de terceiros: uma

sobrevista. In: FERRAZ, Rafaella; MUNIZ, Joaquim de Paiva. Arbitragem doméstica e internacional: estudos em homenagem ao prof. Theóphilo de Azeredo Santos. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.300.

118Lei nº 9.307/1996, art. 2º, § 1º: Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão

aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.

119O Instituto de Arbitragem Holandês (The Netherlands Arbitration Institute) obteve uma tradução da Lei de

Arbitragem Holandesa, que serve como uma tradução não oficial, aqui utilizada: THE NETHERLANDS ARBITRATION INSTITUTE. The Dutch Arbitration Act, 1º jan. 2015. Disponível em: <http://www.nai- nl.org/downloads/Book%204%20Dutch%20CCPv2.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018: “An arbitration agreement

shall be considered and decided upon as a separate agreement. The arbitral tribunal shall have the power to decide on the existence and the validity of the main contract of which the arbitration agreement forms part or to which it is related.”

cláusula compromissória ocorre em razão da adoção da teoria unitária da cessão de posição contratual, e não porque seria acessória.

José Eduardo Carreira Alvim compartilha desse entendimento. A cláusula compromissória é um negócio jurídico distinto do contrato no qual se insere e, na cessão de posição contratual, não é necessária aceitação expressa (duplo consentimento) do cessionário, porque deve-se considerá-la absorvida pela relação (per relationem) decorrente da aceitação do contrato pelo cessionário, sendo transferida como uma cláusula “parte de uma complexa regulamentação contratual”120.

O arbitralista Pedro Antônio Batista Martins defende a dualidade da cláusula compromissória, associando-a a um acessório do contrato “principal” nos casos de transferência121. Como já afirmou-se, não é necessário adotar referido entendimento para justificar a sua transmissão. A própria teoria unitária da cessão de posição contratual já teria o condão de transferir esse negócio jurídico processual que é a cláusula compromissória122.

A maioria das cortes de países de civil law segue o entendimento de que se aplicam (por analogia) as regras relativas à transferência de acessórios à transferência da convenção arbitral123, mesmo havendo autonomia. Percebe-se, assim, que a relação proposta por Girsberger e Hausmaninger, não é aplicável ao Brasil.

Embora o esquema proposto pelos autores tenha a vantagem de simplificar o raciocínio acerca da transmissibilidade da cláusula compromissória, não corresponde à realidade da maioria dos sistemas jurídicos. Essa divergência entre o modelo proposto por eles e práxis jurídica deixa em aberto a questão de saber qual seria o fator determinante para saber se haveria transmissibilidade automática ou não da cláusula.

Propomos a adoção do consenso para resolver questões relativas à transmissibilidade da cláusula compromissória, respeitadas as devidas formalidades. Havendo consenso entre as partes, a cláusula se transmite automaticamente. O modelo proposto por Girsberger e Hausmaninger, ao contrário, defende uma pureza metodológica

120CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Tratado geral da arbitragem: interno. Belo Horizonte: Mandamentos,

2000, p.238-239.

121MARTINS, Pedro Antônio Batista. Arbitragem, capacidade, consenso e intervenção de terceiros: uma

sobrevista. In: FERRAZ, Rafaella; MUNIZ, Joaquim de Paiva. Arbitragem doméstica e internacional: estudos em homenagem ao prof. Theóphilo de Azeredo Santos. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.300: “Conquanto esta seja autônoma em relação ao acordo em que esteja inserta, por certo se vale da instrumentalidade contratual para fins de transferência ou repasse de seu conteúdo e eficácia a terceiros.”

122Ibid., p.300.

123GIRSBERGER, Daniel; HAUSMANINGER, Christian. Assignment of Rights and Agreement to Arbitrate.

que não é compatível com a práxis jurídica, pois defende que uma convenção arbitral teria que ser unicamente acessória para que pudesse ser transferida automaticamente.