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Reparação civil dos incapazes pelos atos ilícitos praticados

2.2 A RESPONSABILIDADE CIVIL POR FATO DE TERCEIROS

2.2.2 Reparação civil dos incapazes pelos atos ilícitos praticados

O contexto histórico que gerou a hipótese de reparação dos incapazes pelos atos ilícitos praticados, além do que já vimos sobre a evolução do princípio da reparação integral à vítima, foi, sem dúvida, o questionamento doutrinário acerca de uma pessoa incapaz, que com bem suficientes para reparar o dano, não o faz por falta de prescrição legal e por ausência de bens dos responsáveis representantes.

No contexto do Código Civil de 1916, a responsabilidade civil das pessoas privadas de discernimento já era um tema de grande debate e interesse, em seu estudo sobre a temática Orozimbo Nonato (1940, p.371) asseverou: “Em face dos fundamentos psicológicos e morais da responsabilidade, o dano praticado pelo amental, quando não possa ser satisfeito pelo investido no dever de vigilância, é irreparável”. Porém, já naquela época havia a discussão se tal ausência de reparação não afrontava a justiça e os dever de não lesar. Em continuidade, o autor pondera que “[...]se a lógica se tranquiliza com essas consequências, a equidade não aceita em determinados casos, quando, por exemplo o autor do dano é abastado de bens e a vítima por via dele, se arruina”. Extraindo-se, portanto, que quando havia grande desproporção de patrimônio entre a vítima e o autor do dano, mesmo que privado de discernimento, aplicaria-se a reparação em sua inteireza. De mesmo modo, Orozimbo Nonato chega a afirmar que o princípio da chamada responsabilidade mitigada e subsidiária já vinha dominando em seu tempo (NONATO, 1940, p. 374).

Agostinho Alvim (1980, p.263) dá o exemplo clássico: “o que perturba é, por exemplo, a situação do louco rico, que causa prejuízo a uma pessoa pobre”. No mesmo sentido, Pontes de Miranda (1972, p.167) dá o exemplo do caso do louco de muitos haveres que quebrou a vitrine do farmacêutico, ou do menor que absolutamente incapaz, porém rico, fere alguém que não tem recursos para o tratamento e o sustento, seu e de sua família, nos dias ou meses em que não trabalha.

Após o Código de 1916, houve tentativas de alteração da questão da irresponsabilidade (ou irreparabilidade) do incapaz quando havia um dano que não era reparado pelos responsáveis, pois não tinham condições de fazê-lo ou não estavam obrigados legalmente. O Anteprojeto do Código de Obrigações de 1941 procurou resolver a questão em seu artigo 153:

Quando o prejuízo é causado por menor de dezesseis anos, ou por pessoa privada de discernimento, e não caiba a obrigação de repará-lo aos encarregados de repará- lo aos encarregados da sua guarda e vigilância, ou não a possam estese cumprir, é a indenização satisfeita, na medida equitativamente fixada pelo juiz, á custa do patrimônio do autor do dano, que não poderá, todavia, ser privado do necessário à sua manutenção ou à das pessoas que alimenta.(ALVIM, 1980, p.263).

O Código Civil de 2002, ao tratar o tema no art. 92818, caput e parágrafo único, estabeleceu que o prejuízo causado por quem não tenha capacidade civil e não caiba a obrigação de repará-lo aos encarregados de sua guarda ou vigilância, ou não possam cumpri- la, a reparação, moderadamente fixada pelo juiz, incidirá no patrimônio do incapaz, salvo se, em razão desse encargo, ficar ele privado do necessário à sua manutenção, ou das pessoas que dele dependem.

A mudança de paradigma no atual Código com a objetivação dos responsáveis demonstrou a evolução da nossa legislação para uma unicidade com as demais legislações19, sobretudo as ocidentais, de cláusulas gerais de reparação.

Assim, podemos dizer, que a disposição do artigo 928 no Código Civil de 2002 trouxe dupla inovação: a primeira, sendo a possibilidade de responsabilização dos incapazes, pois conceitualmente, não poder afirmar que eles agiram com culpa, uma vez que lhe faltam a imputabilidade, sem o que a culpa tecnicamente não se caracteriza, sua responsabilização se dá de forma objetiva, obtendo-se, assim, uma mudança de paradigma. A segunda, é a circunstância de que a indenização, nos casos que se enquadrem na moldura legal, poderá ser equitativamente fixada, isso implicaria dizer uma exceção ao princípio da reparação integral do prejuízo (restitutio in integrum)20 (FACCHINI NETO; ANDRADE, 2017, p.94).

Aos pupilos e curatelados impõe o Código Civil de 2002 a imputabilidade análoga à dos filhos sob patria potestas, se tiverem patrimônio que possa responder pelo dano causado, com ressalva, porém, do necessário à própria manutenção, e das pessoas que deles dependam.

18 Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem

obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

19 No direito comparado, temos de forma simplificada as soluções normativas que contemplam uma regulação

específica sobre o tema, como a do Código das Obrigações suíço (art.54); a do Código Civil italiano (art. 2.047); a do Código Civil alemão (§829), a do Código Civil português (art. 489), e mais recentemente o código peruano (Art.1975 a 1977). (FACCHINI NETO; ANDRADE, 2017, p.97)

20 Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Com isso, observa-se que trata de uma norma de natureza residual, isto é, somente deverá ser utilizada quando o responsável pelo incapaz não possuir patrimônio suficiente para ressarcir o prejuízo causado ao terceiro (FRASCINO, 2008, p. 112).

Em análise aos termos, pode-se concluir que não há uma “responsabilidade civil do incapaz”, pois, como vimos a responsabilidade civil subjetiva pressupõe culpa e esta necessita do elemento imputabilidade que é ausente aos incapazes. Ainda, os incapazes não respondem objetivamente pelos seus atos, então a regra disposta no Código para este caso é a responsabilidade subjetiva. Mesmo assim, para justificar o termo, alguns, imputaram ao incapaz uma espécie de responsabilidade objetiva, com o único fim de reparar os danos causados. Caso adotássemos ao incapaz a responsabilidade objetiva, iria criar-se um regime jurídico tanto no plano material quanto processual mais gravoso do que o capaz, sob pena da sua inimputabilidade ser contraditoriamente o elemento que lhe agrava a situação e não que a amenize ou até a afaste (FRASCINO, 2008, p. 86).

Em concordância com o descrito acima, adotou-se o termo “reparação civil do incapaz” em face da responsabilidade.

Em análise ao direito comparado, Alvino Lima (1938, p.122) estabeleceu que:

A responsabilidade do alienado é, em regra, proclamada no direito inglês, respondendo o autor pelos danos causados, considerando-se a solução do problema sob seu aspecto exclusivamente econômico. Toma-se apenas em consideração o estado mental do agente quando há necessidade de se verificar se houve realmente intenção de prejudicar, como nos casos de calúnias e injurias, porque nesses casos o “tort” reside justamente nesta intenção distinguindo-se dos casos em que o “tort” resulta não da intenção do autor, mas dos resultados objetivos.[...] Se passarmos em revista as legislações positivas, verificaremos que são três os sistemas adotados: - 1.0) Das que, não contendo preceitos expressos sôbre a matéria, a regulam pelos princípios gerais da responsabilidade dos alienados; tais são os Códigos civís francês, italiano, e holandês; 2.°) O sistema da responsabilidade absoluta adotado na Inglaterra ; 3.°) O sistema da responsabilidade subsidiária ou mitigada, adotado pelos Códigos civís alemão (art. 829), suíço (art. 54), português (arts. 2377-2378), espanhol (art. 19), e austríaco (art. 13 10).

A observância normativa, pormenorizada, é necessária para evitar injustiças. Assim, o artigo 928, dispõe que os incapazes respondem pelos prejuízos que causarem. Nesse sentido, o legislador não faz diferenciação entre as espécies de incapacidade - se absoluta ou relativa-elegendo assim, conforme já defendido, a adoção do princípio da reparação à vítima, diferentemente do Código de 1916 onde estas pessoas não respondiam em nenhuma hipótese pelo dano causado. Além disso, na segunda parte do caput do artigo, dispõe: “se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios

suficientes”. Tal positivação, apresenta de maneira clara a subsidiariedade do incapaz frente as pessoas responsáveis por reparar o dano primeiramente.

Questão interessante é a generalidade de incapacidades que adota o código civil, cabe questionar se tal generalidade atende o princípio da justiça na reparabilidade. O sentido da regra contida no artigo 928 do CC é de amparar o incapaz, aquele que na ordem jurídica possui uma capitis deminutio que lhe subtrai a capacidade, a integralidade da aptidão para exercer pessoalmente direitos e deveres na esfera jurídica. No que concerne à solução aplicado pelo direito brasileiro, poder-se-ia questionar se foi correta a opção legislativa tão generalizante, que abrange hipótese tão diversa de incapacidade, sem observar as nuances existentes entre elas, como a que concerne a um menor de dezesseis anos e que, em princípio terá como responsável os pais, e pessoas maiores, como, por exemplo, os pródigos, que possuem uma problemática não diretamente capaz de lhe subtrair a imputabilidade, e por conseguinte, de lhes configurar uma posição especial quanto ao dever de indenizar (FACCHINI NETO; ANDRADE, 2017, p.101).

O aspecto é relevante, com a alteração na teoria das incapacidades promovida pelo Estatuto da pessoa com Deficiência no Código Civil, em especial no artigo 3º, onde apenas os menores de 16 anos são absolutamente incapazes, enquanto os relativamente incapazes, nos termos do artigo 4º, são: a) os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos; b) os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; c) aqueles que, por causa transitória ou permanente não puderes exprimir sua vontade; d) os pródigos.

Quanto ao parágrafo único do mesmo artigo, estabelece que “A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. ”, de modo que o legislador adota a equidade em face do princípio da reparação integral dos prejuízos, de modo a tutelar e proteger o futuro do incapaz, sem privá-lo do necessário, sendo assim mitigada.

Pontes de Miranda (1972, p.167) concluiu que a equidade concreta (Prinzip der

konkreten Billigkeit), enquanto elemento de reparação nos casos de responsabilidade civil do

incapaz, repercutiu nos códigos suíços, alemães e soviéticos. Ainda, o autor considera que a equidade não é fonte da responsabilidade, nem fundamento para atenuação da responsabilidade, mas sim, conforme o princípio, o ajustamento dos patrimônios. É de se considerar o que tem de patrimônio o agente incapaz ou mentalmente perturbado e o que tem lesado, no momento da sentença (1972, p.269).

Outra questão interessante levantada pela doutrina seria a possibilidade de ampliar o dispositivo do parágrafo único do artigo 928 do CC para os responsáveis, sobre isso a I Jornada de Direito Civil consignou no Enunciado 39 (Brasília - setembro de 2002) que:

A impossibilidade de privação do necessário à pessoa, prevista no art. 928, traduz um dever de indenização equitativa, informado pelo princípio constitucional da proteção à dignidade da pessoa humana. Como consequência, também os pais, tutores e curadores serão beneficiados pelo limite humanitário do dever de indenizar, de modo que a passagem ao patrimônio do incapaz se dará não quando esgotados todos os recursos do responsável, mas se reduzidos estes ao montante necessário à manutenção de sua dignidade.

Embora o disposto no enunciado tenha embasamento constitucional, no sentido de proteção da dignidade humana, vai de contrariedade ao disposto na lei específica, que não amplia para os responsáveis a hipótese da mitigação da reparação dos danos.

Observa José Fernando Simão (2008, 188-190) que embora o patrimônio dos representantes possa ser suficiente para suprir os valores indenizatórios, o pagamento poderia reduzir os genitores ao estado de miséria. Assim, a consequência extrema aos representantes tornaria o incapaz responsável direto pela indenização, ante a ausência de “meios suficientes para indenizar” dos representantes, isentando estes de qualquer obrigação.

A questão é complexa, sob o risco do douto julgador não se atentar em ambas as situações. A primeira de família abastada que defende a tese para ter os danos mitigados e da diligência necessária caso o magistrado se depare com família que pela indenização perderá parte de seus bens. Nesse sentido, faz sentido a mitigação dos danos para os representantes, com a ressalva da verificação de estados patrimoniais de ambas (ofendido e ofensor).

A reparação civil do incapaz pelo ato praticado é subjetiva, ou seja, depende de dano, culpa e nexo causal e da conduta antijurídica. Se presentes esses requisitos para caracterização da responsabilidade civil, os pais, tutores e curadores, terão, obrigatoriamente, pois vinculados a uma responsabilidade objetiva por esse ato, a responder e integralizar a reparação do dano. Logicamente, se não atendido os pressupostos da responsabilidade civil, os responsáveis estarão isentos de qualquer reparação pelo ato-fato jurídico praticado pelo incapaz. Assim, pode-se dizer que incumbe ao terceiro, então, quando demandado, provar que o causador não agiu com culpa.

Eugênio Facchini Neto e Fábio Siebeneichler de Andrade (2017, p.103-104) dizem que na sociedade contemporânea, pode acontecer que menores, em algumas áreas, como no entretenimento ou no esporte, desde logo recebam considerável remuneração, direta, ou indireta – por meio de patrocínio –, de sorte que sejam estes menores, incapazes, detentores

de patrimônio superior ao de seus responsáveis. Uma frequência maior poderá ser observada no caso dos pupilos e curatelados, em que se configure a situação na qual o patrimônio destes seja maior que o daqueles. Os autores defendem que não são infrequentes as hipóteses de um órfão que tenha herdado vultoso patrimônio de pais falecidos num acidente, e que, sendo menor, seja colocado sob a tutela de outro parente que não tenha fortuna. Nessa hipótese, vindo o pupilo a causar danos de monta a outrem (um atropelamento fatal, por exemplo), poderá ele vir a ser diretamente acionado pela vítima, diante da hipótese de não ter o tutor bens suficientes para garantir o pagamento da indenização.

Assim, feita a análise do dispositivo legal, podem-se extrair as exigências para que ocorra a responsabilidade direta do incapaz. Conforme sistematiza Antunes Varela (2003, p.556 apud SIMÃO, 2008, p. 134-135), as exigências são as seguintes: a) a ocorrência de um fato ilícito; b) a presença de dano a terceiro, decorrente do ato ilícito; c) o nexo de causalidade entre fato e dano; d) que o fato tenha sido praticado com culpa (análise por equiparação, culpa técnica); e) a impossibilidade de obtenção da reparação do dano por conta do representante legal do incapaz; f) que a equidade comporte a responsabilização do incapaz.

Por fim, após estabelecido o conceito e o contexto da reparação civil do incapaz no âmbito da responsabilidade civil, observar-se-á a seguir as particularidades desse instituto, tendo por base a legislação civil. Assim, analisaremos a suposta antinomia presente entre os artigos 928 e 942 do CC/2002, tratando especificamente da solidariedade e subsidiariedade.