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Repercussões do neoliberalismo na sociedade (países da OCDE, 2011)

2 CONDICIONALISMOS POLÍTICOS E IDEOLÓGICOS DA DESVALORIZAÇÃO DAS

2.4 Condicionalismos ideológicos da desvalorização das Humanidades: o neoliberalismo

2.4.5 Repercussões do neoliberalismo na sociedade (países da OCDE, 2011)

Segundo Marta Costa, determinadas opções políticas foram sendo abandonadas nas últimas décadas: aquelas que vinham duma linha keynesiana de desenvolvimento, definidas sobretudo após a Grande Depressão de 1930 e após a II Guerra Mundial. Em termos práticos, o neoliberalismo começou a dominar a esfera política ainda na década iniciada em 1970, transformando-se “progressivamente num consenso global hegemónico” (Costa, 2014: 290). Assim, o anterior consenso em torno de questões políticas como a aceitação do Estado social, o desejo de um poder descentralizado, o sistema de economia mista e o pluralismo político, que Daniel Bell constatava ser uma realidade em 1960, foi desaparecendo90.

Boltanski e Chiapello colocam o ano de 1973 como referência para o início da ascensão de um capitalismo pautado pela desregulamentação dos mercados financeiros, pelas políticas governamentais em matéria fiscal, social e salarial, que facilitaram os movimentos de fusão-aquisição de multinacionais, a par de uma crescente flexibilização do mercado de trabalho (Boltanski e Chiapello, 1999). De acordo com vários autores (por exemplo, Centeno e Cohen (2012), Hall (2011), e Saud (2014)), esta viragem implicou quebras em termos da redistribuição da riqueza, da segurança económica garantida pelo Estado, dos serviços públicos prestados, do património nacional, do controlo de sectores-chave da economia, de proteção social, da salvaguarda da estabilidade no trabalho e de melhores salários, de justiça social, etc.

Em páginas anteriores foi constatado como, de 1980 à atualidade, se multiplicaram e disseminaram internacionalmente os governos neoliberais, aos quais já sabemos que por princípio não são atribuídas competências para atenuar as desigualdades geradas pela atividade económica. Consequentemente, a desigualdade de rendimentos intensificou-se.

90 Bell considerava que, existindo um acordo geral sobre estas questões, isso também era sintoma de que o

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Falamos de seguida desta evolução, fazendo uso da informação disponível no relatório da OCDE (2011a) intitulado Divided We Stand. Why Inequality Keeps Rising.

Em primeiro lugar, a desigualdade de rendimentos começou por agravar-se em países como o Reino Unido e os EUA nos fins de 1970s e princípios de 1980s; nos últimos anos de 1980s, o acréscimo de desigualdade de rendimentos já tinha alastrado a outros países. Na primeira década de 2000 continuou a aprofundar-se, mesmo em países onde tradicionalmente não existia um fosso tão grande entre pobres e ricos, como a Alemanha, a Dinamarca, a Suécia e ainda outros países nórdicos91. Vemos assim como o desinvestimento geral nos mecanismos de redistribuição da riqueza contribuiu para aumentar a distância entre ricos e pobres, a qual atingiu o nível mais elevado nos últimos 30 anos, quando os países ainda atravessavam um período de crescimento económico e emprego sustentado (OECD, 2011a).

No mesmo sentido, um documento publicado pela Oxfam em Janeiro de 2014, relata como, nos últimos 25 anos, as desigualdades sociais se intensificaram, como já há muito tempo não acontecia: as riquezas concentram-se cada vez mais nas mãos de um pequeno número de pessoas e a pobreza agrava-se. Considera-se que este é um fenómeno mundial. São aí tecidas várias considerações relativamente ao facto dos riscos sociais inerentes a esta situação serem enormes, para além de se julgar que ela não é moralmente aceitável, decorrendo de grande injustiça social (Oxfam America, 2014).

Em convergência, segundo Firmino da Costa, “[a]s dinâmicas sociais atuais voltaram a dar grande visibilidade às desigualdades, recolocando-as sob intensa atenção pública e analítica” (Costa, 2012: 9).

O citado relatório da OCDE aprofunda as causas deste desequilíbrio. A crescente desigualdade salarial é tida como o fator que mais contribuiu para o agravamento das desigualdades sociais, assim como contribuiu em particular para o aumento da desigualdade de rendimentos das famílias. Neste contexto, reconhece-se que o progresso tecnológico, tido como o motor do desenvolvimento económico, não beneficiou de igual modo os trabalhadores: os mais qualificados, os melhores pagos, colheram grandes ganhos; os menos preparados, ficaram para trás. A globalização dos mercados também favoreceu essa tendência.

The rise of the share going to the top earners is also the result of companies operating in a global market for talent, a spectacular rise in pay of executives and bankers, and the emergence of a winner-takes-all culture in many countries (OECD, 2011a: 18).

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Outro fator explicativo do agravamento da desigualdade é a crescente instabilidade laboral: o mercado de trabalho nos países da OCDE sofreu profundas alterações desde a década iniciada em 1980, no sentido de se alcançar uma maior flexibilização. Os mercados de bens e serviços foram desregulados e implementaram-se políticas e reformas no sentido de aumentar a competição, de promover a produtividade e o desenvolvimento económico. Mais pessoas entraram no mercado de trabalho mas muitos desses postos ou são em part-time ou são mal pagos (e decerto ambas as situações, acrescentamos) (OECD, 2011a).

Havendo mais pessoas a necessitar de suporte social, os sistemas sociais tornam-se menos capazes de dar uma resposta, como antes o faziam. Ao mesmo tempo, as despesas com a proteção social diminuíram, não por serem menos necessárias mas devido à alteração das regras de acesso (OECD, 2011a).

Resumindo a uns poucos traços o panorama do empobrecimento crescente de uma parte considerável da população mundial: a forte polaridade nos salários, a maior precariedade laboral, menos apoios sociais, as tendências enquadradas num contexto alargado de globalização, de progresso tecnológico, de alterações demográficas (envelhecimento da população, tendência para a diminuição da dimensão dos agregados familiares), a par de alterações nas instituições e nas políticas (OECD, 2011a). O impacto que mudanças como estas causam na vida dos indivíduos é percetível num estudo de 2000 realizado nos EUA (Reich, 2000), país com um dos primeiros governos neoliberais e, naturalmente, um dos primeiros a ressentir-se deste tipo de problemas. Dada a finalidade do nosso estudo, focamo- nos nas conclusões que têm algum impacto na forma como as Humanidades são valorizadas.

Antes de passarmos para a próxima secção, gostaríamos de sublinhar o desajustado que é referir que a OCDE tem uma visão política neoliberal, sem acrescentarmos qualquer outro juízo, reforçando o que já anteriormente fomos dizendo. O relatório que acabámos de citar é um estudo que evidencia haver na OCDE uma capacidade de análise crítica relativa aos resultados de políticas neoliberais. Põe-se assim de manifesto uma certa diversidade de pensamento que existe nesta organização internacional, pese embora não estar em causa o pensamento ortodoxo que a domina. Para além da análise da realidade, também as recomendações aí feitas manifestam a possibilidade de uma visão alternativa à neoliberal: o investimento crucial no capital humano, visto como a força que vai reduzir a dispersão salarial e favorecer melhores taxas de emprego; o apelo à disponibilização de serviços públicos de alta qualidade e de acesso livre (nomeadamente, saúde, educação e apoio às famílias); e o apelo a políticas que fomentem um desenvolvimento inclusivo. Paradoxalmente, “[t]his report provides powerful evidence of the need to ‘go social!’” (OECD, 2011a: 19).

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