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Repercussões do neoliberalismo nos indivíduos (EUA, 2000)

2 CONDICIONALISMOS POLÍTICOS E IDEOLÓGICOS DA DESVALORIZAÇÃO DAS

2.4 Condicionalismos ideológicos da desvalorização das Humanidades: o neoliberalismo

2.4.6 Repercussões do neoliberalismo nos indivíduos (EUA, 2000)

O referido estudo de Reich, relativo aos EUA e publicado em 200092, tem por título O futuro

do sucesso. Viver e trabalhar na nova economia. O autor analisa o que mudou no dia-a-dia

dos indivíduos, num mundo onde a turbulência, a par da precariedade na esfera laboral e económica, é muito maior do que há alguns anos atrás. As implicações que podem resultar deste novo contexto interessam-nos, na medida em que nos ajudarão a compreender a tendência de desvalorização das Humanidades ao nível dos indivíduos, e dos estudantes em particular, num contexto de políticas neoliberais.

Podemos começar por dizer que o estudo de Reich deteta um paradoxo. Comparando a sua atualidade com tempos anteriores – retrocedendo 25 anos, Reich constata que se vive melhor no fim do século XX, mas em termos materiais. Isto porque “hoje” a dedicação ao trabalho remunerado implica mais tempo, um maior frenesim, mais angústia, restando pouco tempo e energias para outras atividades, quando as expectativas indiciavam que o uso das tecnologias iria trazer mais tempo livre. E “não é que ganhemos mais porque trabalhamos mais; trabalhamos mais devido ao que podemos ganhar se o fizermos” (Reich, 2000: 298).

Em geral, comparando com outros países, o autor constata que, se há uma década atrás os norte-americanos não trabalhavam muito mais do que outros povos, “agora” cada um trabalha mais 350 horas por ano do que um europeu, ainda mais do que os diligentes japoneses. Quanto à preocupação dos americanos adultos relativamente à preparação dos seus filhos para a vida, de 1986 para 1998, o único atributo que ganhou importância – entre vários – foi o “trabalhar muito” (de 11% para 18%)93

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Foca-se ainda a alteração das preferências dos estudantes universitários: em 1968, só 41% dos estudantes universitários do 1º ano consideravam o “desafogo financeiro” como um objetivo pessoal muito importante (a maioria estava interessada em “desenvolver uma filosofia de vida com sentido”); contrapõe-se a situação em 1998, altura em que já 74% desses estudantes universitários consideravam que o desafogo financeiro era essencial. É também apresentado o caso particular dos licenciados: por um lado, estes “ganham em média 70 a 80

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Recordamos que os EUA foram dos primeiros países a estarem sujeitos a políticas neoliberais (Ronald Reagan foi eleito para a presidência em Novembro de 1980). Contas feitas, quando o estudo de Reich foi publicado, já se tinham vivido cerca de 20 anos de implementação destas políticas.

93 À questão “Que atributo é mais importante na aprendizagem de uma criança para que ela se prepare para a

vida: pensar por si própria, obedecer, trabalhar muito, ajudar os outros ou ser estimada e popular?”, cerca de metade dos inquiridos continua a escolher “pensar por si própria”.

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por cento mais do que as pessoas só com o curso dos liceus” mas, no entanto, são eles “que acumulam mais horas de trabalho”; por outro lado, os licenciados ganham por vezes o dobro daquilo que ganhava um licenciado há 25 anos mas, no entanto, estão mais focados no êxito financeiro do que estavam outros no passado (Reich, 2000: 35). Achamos esta constatação coerente com o afastamento dos cursos superiores em Humanidades, devido à pouca atratividade em geral das remunerações na respetiva esfera profissional.

Como causa destas mudanças de atitude, mudanças que colocam em risco o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal (“quanto mais ricos somos, mais provável é que dediquemos mais tempo ao trabalho, e com mais angústia”, (Reich, 2000: 35)), Reich considera que não está em jogo uma alteração da personalidade (“Não é provável; a personalidade de um povo não se altera tão depressa”, (Reich, 2000: 36), como se todos se tornassem, de um dia para o outro, mais ambiciosos e mais obcecados por dinheiro). Afirma que as opções pessoais, quer profissionais quer privadas, não se processam num vazio social, sendo sensíveis às mudanças sociais. Por isso, “[e]scolhemos isto ou aquilo, porque as nossas opções têm determinadas consequências, as quais dependem em parte do modo como a sociedade decidiu organizar-se” (Reich, 2000: 300). E nos EUA, Reich constata que o trabalho está organizado e é remunerado de uma maneira que induz a trabalhar mais, para além do facto dos mecanismos de discriminação na esfera profissional exercerem mais pressão sobre o indivíduo.

A nova tendência é vista, então, como resultado da “lógica da nova economia”, à qual dedicámos a secção 2.3.2, a qual faz com “que se preste mais atenção ao trabalho do que à vida pessoal” (Reich, 2000). Daí que, porventura e mais do que nunca, estamos perante o homem-empresa de que nos falava Foucault. Reich considera que a nova economia tem muitas vantagens (a prosperidade, a inovação, novas opções e oportunidades) mas também, como contrapeso, “o desgaste das nossas famílias, a fragmentação das nossas comunidades e o desafio que é manter a nossa integridade” (Reich, 2000: 33).

A questão tecnológica continua a ser central. Vimos atrás que em torno dela giravam as preocupações políticas; em torno dela, giram também as vidas profissionais e pessoais dos indivíduos, dado o desvanecimento das fronteiras entre elas. Sempre, a mesma terminologia: produtividade, tecnologia, competição, inovação, redução de custos, etc. Introduzimos de seguida um extrato do texto de Reich que nos descreve o ambiente desassossegado em que vivem os indivíduos no seu dia-a-dia.

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[As] tecnologias estão a intensificar radicalmente a concorrência entre vendedores, o que por sua vez provoca uma onda de inovação. Para sobreviver, todas as organizações são obrigadas a introduzir aperfeiçoamentos contínuos, nomeadamente reduzindo custos, acrescentando valor e criando novos produtos. O resultado desta agitação é o aumento de produtividade […] Quanto mais fácil é para nós, compradores, mudar para algo melhor, mais difícil é para nós, vendedores, tentar manter todos os clientes, agarrar todas as oportunidades, conseguir todos os negócios […] Quanto mais depressa a economia muda […] mais difícil é manter a confiança no que qualquer um de nós vai ganhar no ano ou no mês seguinte, no que estará a fazer ou onde (Reich, 2000: 36).

Em consequência, “as recompensas da nova economia pagam-se com vidas mais agitadas, menos seguras, mais divergentes na esfera económica e mais estratificadas no domínio social” (Reich, 2000: 38). A diminuição da estabilidade é um aspecto central na forma como mudou o modo de encarar o dia-a-dia e as prioridades que se estabelecem na vida de cada um.

Em suma, Reich caracteriza a sociedade que observa como sendo uma sociedade cada vez mais fragmentada, onde os salários relativos aos perfis mais inovadores (os “vencedores”) – porque insuficientes e muito desejados – aumentam consideravelmente acima dos salários relativos aos trabalhos de rotina (os “perdedores”), aumentando assim o fosso salarial entre uns e outros. Ou seja, a uma nova economia corresponde uma nova sociedade (“Hoje, caminhamos a passos largos para uma nova economia e uma nova sociedade” (Reich, 2000: 323). A forma como esta dinâmica social altera as prioridades nos jovens é identificada.

Os jovens universitários estão mais interessados em ter uma boa situação financeira do que antes, porque as potenciais recompensas financeiras são maiores do que eram há anos, e as consequências do insucesso mais onerosas” (Reich, 2000: 304).

O panorama social que o estudo de Reich identifica colide com a forma como o próprio Reich considera que se deve estabelecer a conexão entre a economia e os valores reconhecidos numa sociedade.

Afinal, uma economia forte não é um fim em si mesmo. Do mesmo modo, uma sociedade não existe para reforçar a sua economia. Uma economia devia ser avaliada pelo modo como apoia e fomenta os valores mais profundos de uma sociedade (Reich, 2000: 33).

As coincidências entre as tendências patentes neste estudo de 2000 e as tendências traçadas no relatório da OCDE de 2011 são consideráveis. Em geral, as constatações retiradas da observação de um universo particular (EUA) são verificáveis, praticamente uma década

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depois, para o conjunto de países da OCDE. Para qualquer dos casos será possível afirmar que, mesmo com todos os seus efeitos negativos,

o neoliberalismo tem vindo a infiltrar-se em todas as esferas da vida pública e privada dos cidadãos, moldando inclusivamente a forma como os indivíduos hoje pensam sobre as suas necessidades e expectativas, e como criam a sua própria concepção de boa vida (Costa, 2014: 290).

A rematar estas elaborações em torno dos impactos do neoliberalismo a nível social, uma constatação de Habermas.

No se ve por qué habría de esperarse un nuevo impulso desviando de nuevo hacia el mercado aquellos problemas que durante el siglo XIX, por muy buenas razones, se vieron desplazados del mercado al Estado, y reacentuando así el ir y venir de los problemas entre los medios dinero y poder (Habermas, 1992 [1981]: 12).

Na próxima secção, orientados pela questão da desvalorização das Humanidades, tentamos perceber um pouco mais em que medida esta contradição (implementação e manutenção do neoliberalismo versus graves efeitos sociais) se mantém. Em 2.4.2, o contributo de Gilbert tinha possibilitado uma explicação para esta situação: em vez da adesão ao neoliberalismo derivar de um conjunto de crenças – diríamos – positivas, ela deriva do receio dos riscos que podem advir de uma desobediência às políticas neoliberais. Esta situação terá por fundamento mais do que esta crença negativa?